quarta-feira, 16 de julho de 2014

Anderson Silva




Marcos Vilas Boas
publicado: revista Trip

Quando o assunto é racismo, Anderson Silva costuma fazer como nos ringues: mais esquiva do que ataca. Mesmo assim, não escapou de passar por situações de preconceito ao longo da vida. Quais? ele conta a seguir. E fala também sobre aposentadoria, homossexualidade e de como ficou careca depois de tanto alisar o cabelo
Anderson Silva tinha 16, 17 anos, um currículo que incluía aulas de capoeira, tae kwon do, balé e sapateado, e fazia o melhor cover de Michael Jackson das festinhas black de Curitiba. Ele montou com os amigos um conjunto que imitava as coreografias dos grandes grupos de funk, soul e disco americanos; sua tia Edith costurava as roupas, todas iguaizinhas, com a indefectível calça meia canela acompanhada de meias brancas. Mas Anderson só saía de casa depois de um ritual sagrado: aplainar o cabelo crespo com generosas quantidades de creme Alisabel.
Problemas de autoimagem? Racismo às avessas? Imposição da sociedade de consumo? Desejo inconfesso de se tornar branco como seu ídolo Jackson? Anderson tem uma explicação mais singela: “Eu só queria poder jogar meu cabelo nas festinhas”. O resultado foi desastroso: os cachos alisados à força foram substituídos por uma lustrosa careca – que, por ironia, acabou virando marca registrada. Até hoje há quem ache que o lutador raspa a cabeça para atemorizar adversários. A verdade é que Alisabel venceu Anderson por nocaute.

Para um garoto negro, pobre e que havia sido enviado de São Paulo pela desesperançada mãe, aos 4 anos, para ser criado por uma tia e sua família, não foi moleza crescer na pálida Curitiba. Anderson diz ter enfrentado inúmeros episódios de racismo durante a infância e a adolescência. Houve a vez em que um policial o abordou num ponto de ônibus, lhe deu um peteleco na cabeça e um soco no estômago – porque ele, único pele preta num grupo de amigos brancos
ali reunidos, havia tido a desfaçatez de dizer que voltava de um shopping naquela longínqua era pré-rolezinho. E também a ocasião em que era atendente do McDonald’s, e um cliente se recusou a ser atendido por um negro. E ainda a desconfiança de que o pai de uma namorada, por quem foi profundamente apaixonado, não apertava sua mão, não o recebia em casa e sabotou o relacionamento por causa de sua cor.

SÃO SEBASTIÃO DE BERMUDAS
Corta para um estúdio de São Paulo, março de 2014. Anderson posa calado e paciente para o fotógrafo Marcos Vilas Boas com seis flechas cortadas e coladas a seu corpo, com sangue falso escorrendo pela regata branca. A imagem produzida pela Trip homenageia a clássica capa da revista norte-americana Esquire de abril de 1968, em que o boxeador Muhammad Ali aparece em pose que remete ao martírio de São Sebastião, o militar que foi flechado por ordem do imperador Diocleciano por proteger cristãos.

Naquele momento, o martírio de Ali – célebre por sua luta pelos direitos civis dos negros e contra o racismo – era político: ele havia sido preso e destituído de seu título de boxe por se recusar a se alistar na guerra do Vietnã. Já o martírio de Anderson hoje é sobretudo físico: ele se recupera de uma delicada cirurgia depois da chocante fratura de sua tíbia e sua fíbula esquerdas durante o combate de dezembro passado contra Chris Wideman, em que perdeu a chance de reaver o cinturão dos pesos médios do UFC (Ultimate Fight Championship).

Embora seus estilos de boxeadores-bailarinos se assemelhem, Ali e Anderson são bastante distintos nos posicionamentos políticos. Ao contrário do americano, o brasileiro se recusa a levantar bandeiras quando o assunto é racismo. Seu discurso remete ao de outro grande atleta negro, Pelé – que, ao fazer seu milésimo gol em 1969, dedicou-o às criancinhas brasileiras, em frase que à época foi tachada de demagógica pelas patrulhas ideológicas. “Quando perguntam minha opinião, eu dou, mas prefiro evitar polêmicas”, afirma Anderson. “Há outras coisas mais importantes em que a gente tem que focar, como as crianças do nosso país.”

"Me arrependi de usar alisabel, perdi meu black power"

Depois de meia hora parado como um São Sebastião de bermudas brancas e bíceps inflados, Anderson pede pressa porque começa a sentir câimbras – ainda um efeito colateral da delicada cirurgia por que passou há três meses. Considerado por muitos o maior lutador da história do MMA (artes marciais mistas), prestes a completar 39 anos neste 14 de abril, ele dá nota 9 para a recuperação da sua perna, confirma que pretende voltar a lutar no ano que vem, mas ainda não sabe dizer quando e como pretende encerrar sua carreira. De certeza, apenas uma: na ativa ou aposentado, nunca mais veremos seus cabelos encaracolados. “Me arrependi de usar Alisabel, perdi meu black power.”

Você acaba de refazer uma foto clássica do Muhammad Ali, que é um dos seus ídolos. Além de um grande boxeador, ele foi um cara que usou a fama para combater o racismo. Você às vezes sente vontade de fazer o mesmo aqui no Brasil? Quando sou abordado para falar sobre qualquer assunto político, seja racismo ou não, eu dou minha opinião. Mas prefiro me manter calado e evito polêmicas nesse sentido.

Por quê? Não acho legal. Não que não seja importante. Mas tem outras coisas mais importantes em que a gente tem que focar e gastar mais energia.

No esporte, na família? Na família. Nas crianças do nosso país. Hoje eu fui ao hospital do Graacc [Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer] e vi um monte de crianças que estão ali passando por milhões de dificuldades, muitas sem perspectiva de vida, mas lutando para ser felizes. Então eu prefiro focar nessas coisas. Serve para que a gente entenda que nossos problemas são tão pequenos perto do que algumas pessoas passam.

O jornalista Ali Kamel, da TV Globo, escreveu um livro chamado Não somos racistas. Você concorda com a afirmação do título? O Brasil não é racista? Eu não acredito que o Brasil seja um país racista. Nós temos casos isolados de racismo. O Brasil tem muita coisa pra melhorar em relação ao racismo, política, saúde, educação. Mas acredito que a gente tem chances de mudar. Só não podemos perdê-las.

Você se lembra da primeira vez em que foi tratado de forma diferente por causa da cor da sua pele? Houve várias situações. Mas eu nunca tive problema com isso porque lá em casa a gente sempre foi muito bem instruído pela minha tia Edith a lidar com essas situações.

Que tipo de coisa sua tia falava? Ela sempre reforçou que somos todos iguais, independentemente de ser negro, branco, amarelo, roxo, de ser rico, pobre. Quando você tem essa consciência, tem capacidade de lidar com certas situações. Por mais que elas acabem te deixando um pouco constrangido, por mais que elas te magoem, você aprende a lidar.

Mas você pode falar de alguma situação específica? Uma vez eu trabalhava como atendente em uma lanchonete, e um cliente perguntou: “Não tem ninguém para me atender?”. Eu respondi: “Estou aqui para atendê-lo”. Aí ele falou: “Eu não quero ser atendido por um negro”. Fui até meu gerente e falei que tinha um senhor que não queria ser atendido por mim. O gerente foi até o balcão, e o cliente falou: “Não quero ser atendido por um negro, isso é um absurdo”. Aí o gerente respondeu: “Se você não for atendido por ele, você não vai ser atendido por mais ninguém aqui”. Aí aquele senhor saiu da loja meio bravo.

"Nós estamos vivendo um momento em que não cabe racismo no mundo"
Hoje, olhando esse caso tantos anos depois, você acha que tomou a melhor atitude na situação ou acha que deveria ter processado essa pessoa? Caberia esse processo. Mas aí eu iria perder meu dia de trabalho, teria que ir até a delegacia e não daria em nada. Porque nossa lei, por mais que exista, é muito falha. Principalmente em relação a esse tipo de coisa. Na época, meu caso não teria nenhuma repercussão. Agora, sim. Mas antigamente eu era uma pessoa comum. Hoje em dia eu tenho uma vida um pouco mais restrita, tem alguns lugares aonde não vou, por causa do assédio. Nos últimos anos, não tenho passado por nenhum constrangimento desse tipo.

Você acha que a fama que conquistou nos últimos anos protege você do racismo ou você acaba sendo mais visado? Depende muito das situações. Quando se fala em racismo, a fama acaba me deixando mais visível e mais desprotegido em alguns sentidos. Mas depende muito da sua postura, da forma como você lida com isso.

Você agora mora em Los Angeles, mas passa muito tempo no Rio. Você acha que o racismo é mais grave no Brasil ou nos Estados Unidos? Racismo é ruim em qualquer canto do planeta. Nos Estados Unidos existe também, até muito mais que no Brasil. Eu nunca tive problema com racismo em Los Angeles. Acho que as coisas estão mudando, as pessoas estão aprendendo que todos são iguais perante Deus, independentemente de cor, de raça. Eu costumo dizer que o confronto é inevitável no homem, que a cor é só uma desculpa para desencadear essa loucura, essa falta de respeito que as pessoas têm umas com as outras. Eu sou muito bem resolvido com essa coisa de racismo. Nós estamos vivendo um momento em que não cabe racismo no mundo.

Houve alguns exemplos recentes muito duros de racismo envolvendo atletas. O jogador de futebol Tinga foi xingado no Peru, o Arouca foi ofendido no Brasil, jogaram bananas no carro de um juiz. Quando você lê notícias como essas, como se sente? É triste, é desagradável. Nós estamos numa era de evolução. Mas não adianta. São coisas que vão acontecer. Muitas vezes as pessoas nem sabem o que estão falando. No caso do juiz, elas estavam ali porque eram torcedores e queriam atingir o juiz de alguma maneira. Como ele era negro, foi a maneira que encontraram de hostilizá-lo. Se fosse outro juiz, japonês, branco, não ia sofrer a mesma coisa, mas ia sofrer algum tipo de vandalismo.

Quando você começou nas artes marciais lá em Curitiba, era um meio que... Que tem muito racismo...

Como foi sua entrada, um rapaz pobre e negro, nesse universo? Minha tia e meu tio me ensinaram a entrar e a sair dos lugares de cabeça erguida. Em todas as academias que eu frequentei, sempre fui muito bem recebido por ter a disciplina e a educação que adquiri na minha casa. Quando comecei a treinar tae kwon do, na academia tinha muito coreano e branco, eu era talvez o único negro. Eu limpava a academia e treinava de graça. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito dentro da academia. Sempre fui bem recebido, sempre fui respeitado. Tenho grandes amigos que fiz nas academias até hoje. Dentro do ambiente esportivo, você tem que aprender a conviver com diferentes opiniões, diferentes raças, classes sociais. É todo mundo igual.

Então no esporte você não sofreu racismo. Mas e nas ruas de Curitiba? Você sofreu muito com batidas policiais? Várias vezes. Teve outra situação em que sofri racismo. Eu estava voltando do treino com amigos, fui passear no shopping e estava no ponto de ônibus, de bermuda e chinelo, com uma mochila nas costas. Parou uma viatura de polícia. Um PM desceu e me abordou, perguntou de onde eu estava vindo. Eu respondi que vinha do shopping. “Como assim do shopping?”, ele perguntou. Ele poderia ter feito isso com todos os outros meninos, mas fez só comigo. Eu era o único negro. Pensei: “Vou responder o que ele precisar e tá tudo certo”. Ele foi um pouco rude, mas eu não dei muita bola.

Como você se sente ao ler outras notícias de violência policial contra negros, como o caso da Claudia Silva Ferreira, que foi arrastada no asfalto pendurada em um camburão no Rio de Janeiro? Foi um episódio horrível. Como sou de família militar, acho que houve despreparo dos policiais. O que a gente pode fazer é abrir os olhos e prestar atenção nas coisas que estão acontecendo todos os dias e tentar mudar isso. Não adianta fazer manifestação e, depois que começa o Carnaval, está tudo certo. Não adianta fazer manifestação, ter feriado de Copa do Mundo, e está tudo certo. Estamos entrando numa época em que temos a oportunidade de fazer mudanças. É importante que as pessoas tenham consciência para exercer seus direitos, fazer manifestação sem serem violentas, agressivas, e sendo objetivas. Fica muito vago quando as pessoas são vítimas de alguma coisa, fazem um estardalhaço na mídia e depois deixam aquilo passar. Outros casos de violência e de racismo passaram, ficaram por isso mesmo. Acho importante as pessoas pararem um pouco e observarem o quanto elas podem mudar o país, as leis, o quanto a gente pode ter um país melhor.

Você perdeu seu cabelo usando Alisabel. Como foi isso? O problema não foi o Alisabel. O problema é que eu passava Alisabel todo dia! Minha tia falava: “Para, vai cair seu cabelo, você vai ficar careca”. Mas eu continuava passando todo dia, porque achava legal ficar com o cabelo liso, ir para os bailinhos. E, aí, de repente, caiu.

Quantos anos você tinha? Tinha 16, 17.

Por que você queria ter cabelo liso? Pegava mal cabelo crespo na época? Na minha turminha todo mundo tinha cabelo lisinho, eu queria ter igual, pra poder jogar o cabelo nas festinhas. Depois me arrependi de não ter meu black power.

Não tinha nada a ver com problemas de autoimagem, de querer parecer menos negro? Não era nada disso, até porque na minha turma havia pessoas de várias raças, japonês, árabe. Nunca foi por conta de ser negro que eu alisava o cabelo.

Você tinha um conjunto que fazia as coreografias do Jackson 5, né? Meus irmãos tinham um grupo, e minha turma sempre os via dançando, ensaiando. Aí a gente resolveu montar nosso grupinho e dançar também. A gente se reunia na garagem de casa e ficava fazendo as coreografias. Quando tinha as festinhas americanas, a gente saía dançando.

"Tem vários homossexuais no MMA que não se revelaram ainda"

dizem que você é um bom dançarino. Eu já fui. Hoje em dia não mais.

Sua tia colocou você para fazer balé na infância, não foi? Poxa, que fase... No começo eu não gostava não. Foi um castigo. Nenhum amigo fazia. Eu fazendo balé? Hello? Não era muito legal. Meus amigos ficavam: “Ah, menininha, mocinha”. E ainda com a minha voz fina... Sofri muito bullying.

E depois você começou a gostar do balé? Comecei a gostar, sim. Minha tia me botou também nas aulas de sapateado. Sou grato a ela porque me ajudou muito na luta. O [boxeador] Evander Holyfield fazia balé. Não tem muito a ver essa coisa, não. Você quer fazer balé, você faz balé. Quer fazer esgrima, faz esgrima. Você resolveu virar gay, vira gay, está tudo certo. Você respeitando o espaço das pessoas, elas respeitando teu espaço, está tudo certo.

No MMA tem muita discriminação contra gays? Acho que não tem preconceito, mas tem homossexuais no MMA. Tem vários que não se revelaram ainda.

Eles estão no armário porque, se saíssem, ia pegar mal nesse meio? Acho que hoje em dia é uma coisa tão boba não expressar o sentimento. Desde que você respeite o espaço das pessoas, respeite seus limites. Você tem que viver sua vida em paz e ninguém tem nada a ver com isso.

Quando entrevistei o Minotauro, há dois anos, ele disse que preferia não treinar com gay. Você treinaria? Claro, desde que me respeitassem, está tudo certo. Acho que não tem muito a ver. O fato de o cara ser gay não quer dizer que ele vai te assediar. Ele pode ser gay, ter um relacionamento, pode conviver em grupo com caras que não são gays. Ele faz o que quiser da vida particular dele.

Você é assumidamente vaidoso, metrossexual. Tiram muita onda com você na academia? Tiram. Às vezes a galera acha que eu sou gay. Várias pessoas já me perguntaram se eu sou gay. Eu respondo: “Olha, que eu saiba não. Mas eu ainda sou novo, pode ser que daqui um tempo eu descubra que eu sou gay” [risos]. Eu tomo muito cuidado com as minhas coisas, ponho todas as coisas na minha bolsa, coloco sabonete, passo um creme quando acaba o treino. A galera acha frescura. Mas é de cada um. Não quer dizer que você é mais macho ou menos macho, mais gay ou menos gay.

Você disse que sua tia Edith o orientou a lidar com o racismo. O que você fala para seus filhos sobre isso? Falo para eles não deixarem ninguém desrespeitá-los e para tomar cuidado para não desrespeitar ninguém. A vida se resume a dar para as pessoas respeito e receber de volta. Seguir por onde você resolver andar com a cabeça erguida, determinação e honra. É isso que eu passo pros meus filhos.

Eles já sofreram com o racismo? Eu acredito que não, porque teriam me falado. Nunca me falaram. Nos Estados Unidos, elas estudam em colégio público, convivem com outras crianças negras, brancas, japonesas, russas. Não têm essa proteção que tinham aqui. No Brasil, elas estudavam em colégio particular, mas nunca aconteceu nada.

Na infância, você gostava muito de quadrinhos, principalmente do Homem-Aranha, o que acabou lhe dando o apelido de Spider. E muita gente encarava você como um super-herói mesmo. Agora, com a lesão dessa última luta, você acha que estão encarando você de forma mais humana? Você virou o Peter Parker de novo? Acho que os últimos anos, as últimas lutas fizeram as pessoas entenderem isso, que sou uma pessoa comum como todas as outras, que não sou uma máquina, que eu posso falhar a qualquer momento e que estou tentando superar meus erros. Como todo brasileiro, todos os dias.

Você nunca caiu nessa de que era invencível? Nunca, jamais. Quando você pensa dessa forma, é o começo do fim.

Você reviu a luta da lesão? Eu vi uma vez, com olhos técnicos. Vi algumas coisas que eu poderia ter feito diferente.

Aquele chute você faria diferente? Hoje eu faria. Eu tentaria não fazer o chute tão isolado. Dei um chute isolado, sem colocar nenhum tipo de golpe antes. Foi falta de atenção naquele momento da minha parte.

Como você lidou com a dor? Ouvi dizer que você preferiu não se medicar para não se viciar. É verdade? O remédio que os médicos me deram pra dor era muito forte. Eu tomava o remédio, dava uns 3, 4 minutos, e a dor ia embora. Depois ela voltava. Tinha alguns momentos em que eu estava sem dor e estava tomando remédio. Eu resolvi parar, ficar com a dor e ver o que ia dar. Quando ela voltava, eu enchia a banheira de gelo e botava a perna dentro até passar. Fiz esse esforço para não viciar no remédio.

"[Depois da contusão] eu cheguei a me perguntar: 'será que vou conseguir voltar?'"

Você achou que não ia conseguir voltar? Eu cheguei a me perguntar: “Será que vou conseguir voltar?”. Mas o Marcio Tanure, meu médico e do UFC, que me trata há anos, me disse: “Relaxa, isso é mais fácil que cirurgia no menisco”. Aí eu fiquei mais tranquilo.

O Ronaldo, seu amigo e sócio da 9ine [que gerencia a carreira de Anderson], ajudou você nesse momento? Ele falou sobre como superou as cirurgias dele? A gente conversou bastante, ele falou da experiência que ele teve. Foi bacana, importante. Foi mais fácil lidar.

Como você está fisicamente? Fisicamente estou 100%. Minha perna, de 0 a 10, está 9. Estou me sentindo forte, treinando todos os dias.

O que falta pra perna ficar 10? Tempo. Mais alguns meses eu estou zerado. Estou fazendo a fisioterapia, já estou mais seguro, estou chutando. A única restrição é que eu não posso pular nem correr.

Como você enxerga sua carreira daqui pra frente? Eu tenho mais oito lutas no meu contrato. Estou com a cabeça boa, com o coração bom. Tô com muita vontade de continuar. Mas as coisas vão surgir com o tempo: os medos, as frustrações, a vontade, a falta de vontade de lutar. Por enquanto, eu estou bem, estou com vontade de continuar fazendo o que eu faço e não tenho mais nada para provar pra ninguém. É ir lá e fazer o que eu amo, independentemente do resultado.

A volta é para 2015? É. Este ano não.

Estão começando a falar de lutas com nomes como o [boxeador] Roy Jones Jr. Faz sentido? Muito. Agora o Roy Jones é o maior objetivo na minha carreira. É um sonho pessoal que eu tenho. Ele foi o melhor boxeador na época dele. Eu gostaria de ter essa oportunidade de fazer uma luta de boxe com ele, nas regras do boxe, fora do contrato com o UFC. Ele já se pronunciou e acha que seria fantástico.

Esse contrato de oito lutas com o UFC pode ser quebrado? Pode. Eu posso parar na hora que eu resolver parar. O tempo vai dizer. As oportunidades vão aparecendo, as limitações.

O Jon Jones deu uma declaração forte por esses dias, dizendo que você deveria se aposentar, fazer palestra, seminários. Como bate esse tipo de declaração? Cada um tem sua opinião. Minha mulher e meus filhos também acham que eu tenho que me aposentar. Lá em casa tem um pé de “acho” que nunca dá nada. Ninguém pode falar para você o que fazer dentro daquilo que você ama. Você é que tem que saber do seu limite e da sua hora de parar.

E, no caso do Minotauro, você acha que ele deveria se aposentar? O Rodrigo [Minotauro] é um cara que tem uma história dentro desse esporte e só ele pode dizer a hora de parar. Ninguém pode dizer. Eu não acho que seja um bom momento para ele parar, ou para qualquer pessoa parar, quando não sente isso dentro do coração. A gente conversa muito sobre isso, eu, Rodrigo, o Rogério [Minotouro]. É uma coisa que tem que surgir de cada um. Eu fiz minha história, estou caminhando, estou correndo atrás. Ninguém pode dizer para mim que é hora de eu parar. O Dana White não pode me aposentar, ele não tem esse direito. Ele pode cuidar do negócio dele, das coisas dele. Quem sabe quando e como parar é o atleta.

Uma geração de ídolos do UFC está perto do final da carreira. Você, o Georges St. Pierre, o Minotauro. Vai ser um baque pro UFC quando vocês pararem? Não houve uma renovação, não houve um trabalho de base com novos atletas. Os novos talentos já apareceram famosos. Assim fica difícil ver alguém que vá fazer algo diferente lá dentro. Tudo que está aparecendo hoje no UFC é normal, ninguém vai assistir a um cara porque acha que ele vai fazer algo diferente. As pessoas lutam com a regra, mostram que estão ali para fazer o trabalho delas, não demonstram um talento acima da média. É a evolução do esporte, é um negócio. Na minha época era uma coisa. Com as novas gerações é diferente.

Você se destacou pelo seu talento, mas também pelas polêmicas. Muita gente reclama das suas provocações, das brincadeiras no octógono, de lutar de guarda baixa. Hoje você faria diferente? Para mim, entrar no octógono, lutar e fazer o que eu faço é uma diversão. Tem que assumir o risco e entender que aquilo é seu jeito, você tem que estar feliz com o que está fazendo. Eu sempre fiz tudo com muita tranquilidade, com verdade. Não fazia para acharem que era melhor que meu adversário. Fazia porque eu gostava. Quando comecei a lutar, nunca tive pretensão de chegar ao UFC. Eu treinei para ser tão bom ou até melhor que meus professores, para ser melhor que eu mesmo no dia anterior. Acho que esse foi o caminho do meu sucesso dentro do octógono. As oportunidades foram aparecendo, nunca desafiei ninguém, nunca fiz menção de que queria lutar com esse ou aquele. Deus me deu aquilo que ele achava que era meu de direito.


Eu achava que era um jogo mental para desestabilizar o adversário... Era uma coisa que eu via nos meus ídolos, no Bruce Lee, no Muhammad Ali, até mesmo no Roy Jones Jr. Mas nunca fiz isso para me vangloriar sobre meus adversários ou para criar uma barreira psicológica. Fazia porque gostava, porque achava legal, porque me divertia. Sempre entro ali pensando na minha diversão. Esqueço meus fãs, esqueço as pessoas que estão à minha volta e tento fazer o que eu treinei, com respeito aos meus fãs, ao meu país. Mas eu não luto pelos meus fãs, eu luto por mim, eu luto porque eu amo lutar. Depois vêm as outras coisas, vêm os fãs, a fama, o dinheiro.

Como você vê o Anderson daqui a 20 anos? Um velho chato, enchendo o saco dos meus filhos, talvez brigando muito com meus netos. Não, tô brincando. Me vejo feliz, com meus filhos bem-criados, formados, cada um trilhando com sucesso o caminho que decidiu trilhar. E vivendo minha vida em paz, com dignidade.

O jornalista Eduardo Ohata, que ajudou você a escrever sua biografia, disse que sempre o viu mais como um professor do que como um lutador. Ele está certo? Está sim. Acredito que sou melhor professor do que lutador. Ainda tenho meus alunos, sei exatamente a forma de conduzir alguns treinos. Sei lidar muito mais com a coisa de ensinar do que com a coisa de lutar. Eu tenho dificuldade de relacionamento com os treinadores de uns anos para cá porque tem coisas que eu percebo que não vão funcionar e que eu acho que não devem ser treinadas.

Quando você decidir que é hora de parar, a ideia é que você seja um professor? Não sei se vou ter tempo de continuar fazendo isso depois de me aposentar. Eu gosto de ensinar, eu ensino meus filhos, apesar de nenhum querer ser lutador. Mas eu não sei se teria tempo para dar aula todos os dias. Minha vida mudou muito.

Como está o plano de fazer cinema? Tá bacana. Fiz uma participação no filme brasileiro Até que a sorte nos separe 2, ao lado do Leandro Hassum. Acabei de filmar o Tapped com o Lyoto Machida, sobre o mundo do MMA. Estou recebendo alguns roteiros, estudando qual vai ser melhor fazer. Acabei de assinar contrato com a ICM, terceira maior agência de atores em Hollywood. No Brasil, eu tenho aulas com o Luiz Mario, preparador de atores, com ajuda do Johnny Araujo, que é um excelente diretor. E, quando estou em Los Angeles, também tenho aula de acting.

O Steven Seagal deu uns toques a você sobre luta. Ele também está ajudando na atuação? O Steven Seagal é um amigo distante, que aparece quando pode. Numa época ele esteve mais perto, porque estava tranquilo no trabalho. Deu uns toques sobre treino, sobre luta. Mas, como ator, ainda não deu nenhuma dica.

Quando você parar de lutar, vai deixar inimigos no UFC? Espero que não. Eu não tenho inimigos dentro do UFC. Respeito todos os funcionários como parte da minha família. Quando parar, deixo uma história bonita e um legado. Há uma grande chance das novas gerações do UFC olharem para trás e falarem: “Eu tenho esse cara como exemplo. Ele fez a diferença”.

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