Luma Oliveira*
publicado: blogueiranegras.org
Faz muito tempo que gostaria de compartilhar um pouco da minha história, que não é só minha, mas de várias outras mulheres negras. Uma história cujos caminhos não foram fáceis, mas sim cruéis e dolorosos. Muitas vezes nos sentimos sem força para percorre-lo, ficamos nos perguntando se terá de fato um fim, sem as angústias cotidianas e marcas que o racismo deixa para além de nossa pele, estou falando de um caminho e uma história cheia de reticências para nós. Antes que eu comece, quero perguntar para você, mulher negra que está lendo agora: quanto tempo levou para que você se reconhecesse como NEGRA? Pense um pouco e depois pensaremos juntas acerca desta questão.
Vamos lá pra nossa história. Bem, agora estou na casa dos vinte de idade (21), fico recordando por várias vezes como aconteceu e começou o processo desencadeador para que eu pudesse gritar ao mundo: sou negra! A gente sabe (nós, mulheres negras) desde que nascemos, geralmente, sempre fazem questão de destacar em nossa aparência qualquer traço/característica que nos remeta ao branco, nos fazendo odiar qualquer característica de África que possa surgir desde os nossos olhos até a pele. Sou de uma família que fazia questão de exaltar os antepassados de todas as nacionalidades possíveis, menos a nossa ascendência negra e até mesmo indígena, que temos por parte das duas famílias inclusive. Eu ouvia vários relatos, especulações sobre a presença européia, principalmente de dizerem “seu tataravô era português”, “sua tataravó tinha o cabelo liso”, “fulano era loiro”, mas nunca ouvi falar nada sobre a parte negra e indígena da família. Da parte do meu pai, a família é toda negra, pouca coisa ele mesmo sabe sobre ela, visto que meus avós faleceram quando ele era uma criança. Os meus tios mais velhos que chegaram à conhecê-los falam de suas características, dentre elas, alguns fazem questão de falar sobre os cabelos da minha avó paterna, dizendo que lembram pouco, mas têm quase certeza que ele eram lisos. Essas incertezas permeadas de “certezas” trabalhadas no estereótipo europeu é que carreguei por um longo tempo da minha vida, e carrego até hoje, não posso negar. Sendo assim, ficaria cada vez mais difícil me orgulhar ou sequer lembrar de onde vim, quem eu poderia ser – minha construção ficava cada vez mais lenta- embora essas questões e características se façam presentes entre a minha família, há algumas pessoas que sabem e destacam histórias e cores sobre minha africanidade, mas demorou muito para que eu pudesse e quisesse contar ao mundo essa parte da história.
Imersa nesse contexto, sempre fui cheia de incertezas e só quis acreditar naquilo que seria mais agradável para a sociedade, naquilo que fazem todos os dias as meninas pretas acreditarem: que nós somos “exóticas”, “devemos nos orgulhar dos traços brancos”, “quanto mais traço branco, mais bonita”, etc. Fatores que colaboraram ainda mais para que eu pudesse esconder minha cor e identidade. Falava aos quatro ventos quando alguém perguntava sobre meus traços, das histórias europeias que me contavam, mas era evidente que minha vida não tinha apenas uma face. Tentava negar até as últimas consequências qualquer semelhança e identidade negra que pudesse haver em mim, lembro da minha infância, início de adolescência e não foram fases muito diferentes.
Um segundo processo foi querer esconder meus cabelos do mundo, para isso utilizava qualquer processo que necessitasse para vê-lo liso. Progressiva, alisamento, chapinha e eram processos sofridos. Já tive muitos problemas por isso, cheguei até a não sair de casa, caso não conseguisse sair com os cabelos lisos por preguiça de fazer alguns dos processos, falta de dinheiro ou algo que me impedisse de alisar os cabelos. Muita gente pode achar que quando cito “cabelos” estou falando de algo fútil e sem importância, mas não estou: estou falando de “ser”, resistência, história e identidade. Acredito que nunca usei meus cachos antes da ruptura que em breve vou contar pra vocês, só usava os cabelos lisos e o mesmo processo se arrastou para todas as mulheres negras de minha família: primas, tias, irmã, menos para minha mãe que é branca. Por falar nela, não devo esquecer de destacar: em meio aos meus devaneios escrevendo esse texto, carrego na lembrança o tratamento que me davam ao ser vista com minha mãe, tratamento dado até hoje. Muita gente acha estranho quando digo que ela é minha mãe biológica, fazem colocações racistas, colocações que faziam desde que eu era criança, mas hoje sei muito bem me defender e resistir, naquela época não. Hoje vejo e lembro da dor que isso me causava, não só a mim quanto à minha irmã, que também passou por isso.
Após querer camuflar meus cabelos, o outro processo era querer exaltar e ficar procurando na frente do espelho qualquer traço branco que eu pudesse tentar enxergar, traços dos quais as revistas, televisão e novelas me faziam lembrar constantemente. E cada traço identificado era uma festa, cada estratégia utilizada era uma vitória. Cada vez mais eu deixava de ser eu, de ser exatamente quem eu era, e passava a ser aquilo que esperavam de mim, aquilo que me causava vergonha era preciso ficar na gaveta. Na adolescência, eu nunca fui a garota que alguém queria namorar, nunca fui a garota elogiada, no início da adolescência comecei a querer ser amada, e eu via quem eram as pessoas amadas nos meios em que convivia, e de todas as diferenças, estava um ponto comum entre elas: eram todas brancas. Quando você está passando de uma fase pra outra, principalmente nessa, a mente e o corpo são um turbilhão de sensações. Quando paro pra pensar em tudo isso, vejo e entendo a importância em construir a auto-estima das crianças negras desde o berço, penso que se talvez isso tivesse acontecido, eu teria conseguido resolver vários processos de outras maneiras. O racismo iria doer, ele sempre dói, anula e machuca de alguma maneira, não posso negar, mas as estratégias como podemos enfrentá-lo, se trabalhada nossa auto-estima, podem tentar, tentar mas não vão nos destruir, não mesmo. Se um dia pensar em ter filhxs, acredito que é um dos ensinamentos que aprendi e vejo junto às mulheres negras que quero tornar como um dos ensinamentos primeiros da vida de uma criança.
Após me anular por anos, tentar atingir um padrão que estava bem longe do meu e negar toda a minha ancestralidade, veio então com mais clareza o que era o feminismo. Sempre tive uma criação e presenças femininas em minha vida, femininas e feministas. Mas não o feminismo que está na academia e notas de rodapé, mas o feminismo da faca que corta a carne, das mulheres nordestinas, negras, da periferia, aquelas que não tiveram oportunidade de frequentar universidades. Estou falando de mulheres não só do meu sangue, mas também aquelas que compartilharam conosco o cotidiano de muita luta por uma vida sem violência, luta por liberdade. Acredito que meus primeiros contatos com o feminismo, foi o trabalho feito em casa com as mulheres de suas vidas que fazem parte da minha, sobretudo, mãe e irmã. Foi no meio de relatos, experiências, diálogos, luta conjunta e todo esse processo é que me formei, não sabíamos ao certo naquele tempo o que era feminismo, apesar de ouvirmos falar esse nome na TV, mas a gente já vivia o feminismo, que anos depois veio ganhar nome. A luta feminista junto à essas mulheres foi libertadora, e não foi uma liberdade individual, foi um processo coletivo de luta, desconstruções de pensamentos, aceitação de nós mesmas, de luta constante de nós por nós. Em meio a essa efervescência de ideias, identidades e vivência é que fomos nos desconstruindo e construindo cada canto que precisasse. Foi por meio do feminismo que me reconheci pela primeira vez como negra, que não me bastou mais chamarem-me de “morena”, “mulata” ou “café com leite” ; foi aí que eu aprendi a gritar, viver e resistir: SOU PRETA!
Foi uma ruptura que me abriu um mundo, não menos doloroso – contudo, com mais força para que eu conseguisse compreender e enxergar o verdadeiro sentido da resistência. Não aceitei mais as palavras usadas como bem entendem para negarem nossa cor e identidade, não aceitei mais que tentassem mandar direta ou indiretamente em como meus cabelos deveriam ficar: é, resolvi soltá-los e libertá-los junto comigo. Hoje “ostento”, saio por aí balançando-os sem medo e sou adepta da frase “quanto mais volume, mais poder”. Não quero mais saber de um só lado da moeda, não quero mais que minha imagem seja apagada, minha história descrita e escrita pelo lado que a sociedade aceitou, quero ela escrita com toda tinta preta que merece. Antes de soltar os cabelos, vieram outras mulheres que também foram fazendo-o, e aos poucos fui entendendo, sentindo e dizendo NÃO para toda sociedade racista que por anos tentou me matar. Foi um processo que vivi com minha irmã, uma das pessoas que mais me ensinaram e aprendi, igual à frase da música “1 de julho” que diz: eu vejo que aprendi, o quanto te ensinei. Hoje desfilo a minha cor em meio ao racismo, que tentou por tantas vezes me apagar. Tenho orgulho da minha história, luta… na verdade, de NOSSA história e luta. Não deixo mais ninguém usar de “eufemismos” para falar da minha cor, minha pele preta é minha essência, meu poema.
Doeu muito me esconder por tanto tempo, não ter forças suficientes para tentar lutar. A luta contra o racismo e suas raízes fincadas na sociedade é diária, ela continua doendo. Primeiro tentam te anular, mesmo você tentando chegar ao que esperam de você, não é isso que te dará algum ponto de paz. Depois, se você tentar existir e resistir, tentarão derrubar você das piores maneiras possíveis. A dor não passa, a dor não diminui – você sente e vê o racismo o tempo inteiro. Da hora que acorda até a hora que consegue encostar a cabeça no travesseiro. Para muitos, nossa luta, nossas história e resistência são exagero, para muitos isso não passa de “qualquer coisa” – agora, para quem sente desde que nasceu as correntes do racismo, a gente não está falando de qualquer coisa – estamos falando do direito de viver. Voltando à pergunta inicial, sabe quanto tempo demorei para reconhecer-me negra? 18 anos da minha vida! Sabe o que isso significa pra mim? Anos tentando buscar e entender quem eu era, quem eu queria ser. Anos sem poder levantar da cama e me sentir feliz por ser quem eu era, imersa em fantasmas e histórias mal contadas. Foram anos difíceis, não que agora esteja tudo mais fácil, porque não está. Continua doendo, continua me cortando dia após dia. Enxergo com mais clareza o que eu fechava os olhos para não crer, enxergo e sinto a cada esquina o peso do machismo e racismo sobre mim, mas e o que eu aprendi no caminho? No caminho conheci gente, fortaleci os meus laços, vi de que lado quero sambar, qual é o lado em que vou lutar. Aprendi que ouvir é uma das armas mais preciosas de luta, reconhecer-me negra é uma arma revolucionária. E a gente tem que sonhar, lutar e tentar todos os dias existir – lutar por um mundo preto. Quero que um dia as meninas pretas não demorem tanto quanto eu, quero que as meninas pretas se enxerguem em cores, amores e poesia. Quero as mulheres pretas na luta, olhando seu reflexo e dizendo: SOU PRETA! Não houve nada mais libertador na minha vida do que sentir-me e reconhecer-me: nem morena, nem mulata: SOU NEGRA! Apesar de toda luta e espinhos por esses caminhos de resistência, que a gente tenha ainda umas as outras para nos fortalecer, seja no sangue à poesia:
“Disseram-te ontem, menina preta
Que tu não servia pra casar
Venderam tua imagem pros turistas
Dizendo que teus quadris só servem pra sambar
Ensinaram-te, menina preta
Desde o berço,
A teus cabelos desprezar
Fazer progressiva, chapinha e teu afro alisar
Nunca teve, menina preta
Uma boneca da tua cor
Diziam que boneca loura era a única
Que merecia o teu amor
Fiz estes versos, menina preta
Para teu black libertar
Que da solidão desta cidade, tu não sejas mais refém
Que os teus quadris dancem quando tu quiser
Não para agradar turista, carregando etiqueta de passista
A poesia pra menina preta,
Tem seu som, tua cor
Força e garra, te libertando das amarras
E mostrando o quão bela tu és
Não te envergonhe nunca da sua história
Saiba que nestes versos
Estão luta, liberdade e por ti amor
Voe, sonhe, pise no chão, terreiro, na rua e realize,
Faça dessas letras a tua caneta com tinta preta
Inspire-se nessas linhas tortas,
E escreva agora a tua própria história…”
Luma de Lima Oliveira*
feminista, negra, poeta, socialista, periférica, educadora popular, estudante de Letras e blogueira no Entre Luma e Frida.
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