Lázaro Ramos percebeu em si próprio as mesmas questões que
ecoaram nas ruas
Texto: Pedro Só | Fotos: jorge bispo
publicado: revista Trip
Texto: Pedro Só | Fotos: jorge bispo
publicado: revista Trip
Um dos atores mais populares e elogiados de sua geração,
Lázaro Ramos, 35 anos, percebeu que estava vivendo pessoalmente a mesma
angústia que detonou as manifestações de rua no Brasil em junho de 2013. assim
como todo o país, em 2014 ele parou para ver a Copa e se emocionar com momentos
como o choro do goleiro Júlio César. Nas próximas páginas, um papo sobre tudo:
infância em Salvador, racismo, teatro, primeira vez, casamento, religião,
política, celebridade – e a busca por um sentido na profissão: “Não quero ficar
obsoleto”
“A grande alegria de trabalhar é poder potencializar minha
família, colaborar pras pessoas andarem com as próprias pernas. pagar plano de
saúde, ajudar um primo na faculdade”
“Alguém nos ajude, Lázaro, a entender...” A frase do cantor Criolo sobre a
ascensão da classe C no país foi ao ar em março de 2013 no programa Espelho,
que Lázaro Ramos comanda no Canal Brasil há nove temporadas. Por caprichos
internéticos, um ano depois, trecho dessa entrevista foi viralizado nas redes
sociais, enfatizando o discurso aparentemente desconexo do rapper paulistano.
Mas, para além do meme repetido com efeito humorístico, há uma discussão séria
e central entre os interesses e a trajetória do politizado ator baiano de 35
anos, reconhecido como um dos melhores e mais populares de sua geração.
Filho de um namoro de Carnaval entre Célia, empregada doméstica morta em 1999,
e Ivan, ex-operador de máquinas do polo petroquímico de Camaçari, hoje com 59
anos, ele passou a infância na casa da madrinha, Helenita, de 90 anos.
A convivência com o pai era boa e constante, nos fins de semana. “Como
funcionário de Camaçari, ele não levava vida de luxo, mas todo sábado tinha
almoço em restaurante, nunca faltou presente de aniversário ou Natal. Aí veio o
Collor...”. Sob nova realidade econômica, Lázaro saiu da escola particular para
a pública. Depois, aos 14 anos, foi morar com o pai – sem restaurante no
sábado.
O adolescente Lázaro fez teatro na escola pública, a Anísio Teixeira. Como só
podia frequentar o curso de teatro quem fizesse um outro curso
profissionalizante, ele foi cursar patologia clínica. Um emprego no Hospital
Ramiro de Azevedo o ajudou a dar apoio à mãe, que sofria de uma doença
degenerativa limitadora dos movimentos, em seus últimos anos de vida. A morte
dela abalou Lázaro, mas não o impediu de, pouco mais de um ano depois, em 2000,
ganhar projeção nacional ao lado dos amigos Wagner Moura e Vladimir Brichta com
uma montagem de A máquina, de João Falcão.
Na TV, que o cooptou depois que protagonizou o filme Madame Satã, de Karim
Aïnouz, em 2002, ele foi conquistando espaços com competência e versatilidade.
Em Elas por elas(2012), quebrou barreiras como o primeiro protagonista negro de
uma novela. Hoje vive o guru pop Brian Benson, em Geração Brasil. Mas o cinema
é sua área de atuação mais frequente. Está em cartaz com O vendedor de passados
(direção de Lula Buarque de Holanda), baseado no romance do angolano José
Eduardo Agualusa. Em breve será visto também em O Grande Kilapy (de Zezé Gamboa),
coprodução Brasil-Portugal-Angola, em que interpreta um malandro africano. Em
2015, estará em O grande circo místico, sob a direção de Cacá Diegues.
Outro projeto que gera muita expectativa é Acorda Brasil (cujo título pode ser
mudado ainda), dirigido por Sergio Machado. Baseado na experiência do maestro
Silvio Bacarelli na favela de Heliópolis, em São Paulo, o filme obrigou Lázaro
a contracenar com adolescentes inexperientes e dar vazão à inquietude que rege
sua carreira. Lázaro diz que as grandes transformações que teve enquanto ator
“vieram de provocações que os filmes lhe fizeram: Madame Satã, O homem que
copiava, Cidade Baixa, Ó paí, ó...”. Ser colocado à prova, no abismo, dá medo.
Mas traz recompensas definitivas. “Esse medo está aqui em mim, mas ao mesmo
tempo tem o sagrado do teatro, que fala: ‘Se joga no abismo, rei! Vá lá! Você
não tem nada a perder!’. E aí tem que tirar uma coragem do [põe a mão na boca e
fala baixinho] cu pra poder seguir, bicho! Porque dá um medo, rapaz! Mas é bom!
É isso que mantém a gente vivo.”
"As grandes transformações da que tive enquanto ator vieram de provocações
que os filmes fizeram: Madame Satã, Cidade Baixa..."
Morando no Rio de Janeiro há 14 anos, casado com a atriz Taís Araújo – um
relacionamento iniciado há quase dez anos, com oito meses de interrupção em
2008 – e pai de João Vicente, 3 anos, Lázaro não se contenta em apenas atuar.
Em 2010, lançou o livro infantil A Menina Sentada (depois adaptado para o
teatro). Em 2011, dirigiu a peça Namíbia, não!(de Aldri Anunciação) e, no
começo deste ano, estreou a peça As Pocorotas, também voltada para crianças.
Tem lido livros técnicos sobre roteiro, já com alguns projetos cinematográficos
em mente. E sem esquecer as convicções políticas.
Que passam por ideias como as do sociólogo Jessé de Souza, professor da
Universidade Federal de Juiz de Fora, entrevistado por Lázaro neste ano no
programa Espelho. O autor deBatalhadores brasileiros: Nova classe média ou nova
classe trabalhadora? questiona a classificação estabelecida a partir de
critérios estritamente econômicos. “Ele fala: ‘Peraí! Vamos ver! O que é a
ascensão da classe C? Que valor é esse que a gente teve agora?’. Eu gostaria de
avisar a todos: para você que não entendeu o Criolo, veja a entrevista do Jessé.”
Vamos do começo, sua infância. Sua mãe era empregada doméstica, certo? Sim.
Minha mãe trabalhava, minha família toda, então a maioria das crianças foi
criada por uma mulher chamada Helenita, que todo mundo chama de Dindinha e que
fez 90 anos há duas semanas. Uma mulher que nunca teve filhos, mas pegava os
sobrinhos e sobrinhos-netos e criava, dava educação. Minha mãe trabalhava numa
vizinha ao lado. Tive muito contato com essa patroa, os netos da patroa. Claro
que com os limites de um filho de empregada.
A Dindinha criou você? Isso. A mãe tava ali próxima, mas Dindinha foi a grande
educadora da família toda.
Vocês ainda têm contato? Sim, e ajudo, ela é minha família. A grande alegria
que eu tenho, de poder trabalhar com frequência, é poder participar, poder
potencializar minha família, colaborar pras pessoas caminharem com suas
próprias pernas. Felizmente eu tenho a possibilidade de fazer isso hoje. Pagar
plano de saúde, poder ajudar um primo na faculdade.
Você diria que teve uma infância feliz? Tive uma infância feliz, muito
protegida, numa casa com quintal. Mas fui um menino criado dentro de casa, a
gente não podia sair, as crianças brincavam com a gente no quintal de Dindinha.
Era tudo muito regrado, não tinha palavrão, não tinha essa de escolher o que
comer. Ao mesmo tempo, dava muita autoestima, e isso foi muito legal. Eu fui
perder a inocência sobre a dureza da vida quando saí da casa dela. Aí que eu
fui entender mais ou menos como era o mundo. Mas lá era assim, autoestima, me
chamavam de capaz, me estimulavam, uma família de pessoas bem-humoradas, minha
mãe inclusive. No túmulo da minha mãe tem a frase “Nunca esqueceremos seu
sorriso”, que é uma frase marcante, né? Engraçado que até hoje encontro gente
que foi amigo ou amiga da minha mãe e fala sempre isso: “Sua mãe era muito
engraçada”. Isso contamina a família, me contaminou também.
E como eram as questões materiais? Tinha presente de aniversário, Natal? Tem
duas fases. A fase farta é quando meu pai era do polo petroquímico de Camaçari,
operador de máquinas. Não era uma vida com luxo, mas tinha presente de
aniversário, ir a um restaurante todo sábado. Aí veio o [Fernando] Collor e
muda tudo: saí de escola particular e fui pra escola pública... sou filho da
época da inflação. Dinheiro era um negócio que perdia o valor rapidamente, a
gente saía do banco e ia correndo comprar as coisas. Depois do Collor, cortamos
todos os supérfluos, não tinha restaurante, virou outra vida.
Em que bairro você morava? Na Federação era a casa de Dindinha. E no Garcia
ficava a casa do meu pai, com quem fui morar aos 14 anos. Ele ainda não era
casado, mas ele já tinha a casa dele e tal. Meus pais nunca foram casados, sou
filho de namoro de Carnaval: nasci em novembro, nove meses depois do Carnaval.
Sou escorpião.
E a relação com seu pai foi boa? Sempre foi muito boa. Meu pai é um homem que
passou por uma grande transformação. Ele nunca foi um homem afetivo, era mais
disciplinador, muito correto, muito justo, eu tinha medo dele. Mais adulto,
quando saí de casa e fui seguir a vida, a gente foi criando uma relação afetiva
que eu nem sei o que é que disparou. Hoje a gente é amigo, tem uma relação que
não é nem parecida com o que era na infância. Meu pai não queria que eu fosse
ator. Muitos anos depois ele veio me dizer: era medo, imagina profissão de
ator, vai sobreviver como? De quê? Ele sempre quis que eu fizesse
escola técnica.
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