terça-feira, 29 de julho de 2014

O pensar musicado de Criolo

Em entrevista exclusiva, o compositor reflete sobre as manifestações recentes e sobre a sua produção musicalpor: *Marcus Preto é jornalista
Fotos: Patricia Araujo
publicado: Revista Cult

O papo é reto, mas vem por linhas sempre tortuosas e inesperadas. Kleber Cavalcante Gomes, 38 anos – conhecido artisticamente como Criolo – não poupa o interlocutor. Faz questão de tirá-lo da zona de conforto, do raciocínio convencional, da discussão viciada. É assim quando canta e é assim quando fala, como se pode notar na entrevista a seguir.

Alguém pode argumentar que isso é coisa de quem está enfeitiçado com o sucesso recente, que lhe subiu à cabeça. Não. Criolo já era desse jeitinho na entrevista que eu mesmo fiz com ele semanas antes do estouro, às vésperas do lançamento de Nó na orelha (2011), álbum que o revelou para além do universo do rap.

A história ficou bem conhecida. Após duas décadas dedicadas ao rap, Criolo Doido (como assinava então) decidiu que estava na hora de parar com a música. Mas tinha algumas canções – não apenas rap, mas também samba, bolero, balada. O baixista Marcelo Cabral ficou maravilhado com o material e, junto com Daniel Ganjaman (do coletivo Instituto), produziu as faixas. E aquele que seria o canto do cisne de Kleber Gomes na música se tornou o começo de uma história.

Criolo e seu Nó na orelha acabaram por criar uma ponte entre o rap e outras facções da música popular brasileira. Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento e Ney Matogrosso, para falar apenas nos medalhões, se interessaram por sua música. Mais do que isso: misturaram-se a ele, cada um ao seu modo.

A música “Não existe amor em SP” poderia ter se tornado um hino das manifestações políticas recentes, mas extrapolou esse status. Quase como um organismo racional, ajudou a organizar as ideias e intenções que essas mesmas manifestações teriam. Fez que se levantasse a questão fundamental: por que não existe amor em SP? Ou no Rio? Ou em Brasília? Ou em qualquer canto do Brasil? Que tal mudar isso tudo?

Mais do que dar as respostas, Criolo ilumina as questões.

CULT – A canção “Não existe amor em SP” acabou por se tornar um hino. Ela também provocou reações nas pessoas, e muitas quiseram provar que “existe, sim, amor em SP”.

Criolo – Olha, eu acredito que em cada lugar tem alguém com coração. Para cada mil sem coração, existe um com coração. E esse um tem o poder de dar a redenção para os outros mil. Não estou falando desse coração romântico. Falo de alguém que se permite viver, sofrer, enxergar o sofrimento do viver e a beleza que é respirar. Então, acredito que chegou o momento em que essas pessoas se encontraram. Sou apenas mais uma dessas pessoas, mesmo que ainda capenga, mesmo que ainda cheio de situações a serem vistas e revistas. Assim como é cada poeta. É da essência das pessoas querer contribuir, querer fazer parte de algo sem exigir qualquer luz de protagonismo. Já ouviu falar naquele lance de que uma andorinha não faz verão? A andorinha não tem nome, é a espécie. Assim somos nós.

Mas, no caso de “Não existe amor em SP”, essa andorinha fez muito verão. Virou um símbolo, puxou toda uma revoada para junto dela.

Quando você vê os pássaros no ar, tem a impressão de que é um triângulo, de que um está na frente dos outros. Não. Quando o primeiro se cansa, vai lá para trás e vem outro ocupar a dianteira. É muita ingenuidade do poeta, ou do marceneiro, achar que aquilo que ele criou e dividiu com o mundo ainda é ele.

Como você entendeu as manifestações recentes? Penso que esse tempo que nos separa delas é importante na avaliação, porque, no calor da hora, tudo era confuso demais. E o que valia na véspera soava como um equívoco completo no dia seguinte.

É. É o organismo vivo. Você está lidando com pessoas, desejos, frustração, esperança. E ninguém ainda achou o ovo de Colombo do pensar humano. Mas o que acontece agora é algo inédito. As pessoas acham confuso, mas o que está acontecendo é o mais límpido possível.

Límpido? Por quê?

Sim! Porque todo mundo está falando. Não é mais só uma pessoa falando e uma massa humana assinando embaixo. Nessa massa humana, cada um está falando de suas questões. Para mim, isso não é confuso. Deixa a situação mais límpida. A gente está acostumado com aquele lance de saber quem é o cabeça, qual a fala, a frase. Agora, todo mundo está falando. Todo mundo está pondo a sua frase. Cada um com sua vivência, sob sua ótica. Uns entendendo, outros nem tanto. Mas, independentemente disso, e antes de querer tirar a força do que aconteceu no Brasil nesses últimos meses, é preciso entender que, de uma forma ou de outra, todos se movimentaram. E só isso já é fato para entrar nos livros de história. Não precisa de enfeites.

Enfeites?

É. Porque a história exige enfeites. Mais do que um barroco, existe uma necessidade de um rococó para justificar determinadas situações. E o que aconteceu foi justamente a mão na madeira para se fazer o móvel, a mão no barro para se fazer a escultura. Então, há de se valorizar essa situação e as instâncias de roda de conversa em um botequim, em uma biqueira, em uma casa de família, em uma repartição pública ou em um gabinete. Não podemos tirar a força do que aconteceu. As canções e os poemas viram mero detalhe quando você vê o jovem indo para a rua. Ele é a canção, a poesia, a força de um país. Você vê uma pessoa falando: “saia daqui que eu não gosto de você”. Quer mais sinceridade do que isso? Eu já havia dito isso, e o rap nacional já diz há 30 anos: não subestime a nossa juventude, não rotule a nossa juventude. Porque a juventude é livre, despida de determinados protocolos. E as pessoas se conhecem e se conectam por afinidade.



O modo como o governo lidou com o que aconteceu nas ruas foi adequado?

Quem sou eu para falar do governo, eu que não sou letrado?

Quem disse que precisa ser letrado para falar do governo?

O sistema disse.

Precisamos obedecer ao sistema?

A gente depende dele. Vai falar para um garoto que mora lá no meu bairro se, na hora de entregar um currículo, ele não tem que ter o segundo grau e falar duas línguas para ser um simples limpador de rua. Não venha com essa, não, porque isso é coisa de quem não precisa de dinheiro. Que pode se dar ao deleite. Maquiavel é um cara de sacada. Mal sabia ele que seria um divisor de águas. Porque quando eu procurava emprego (porque agora eu sou vagabundo de carteira assinada), eu implorava. Não tinha o segundo grau completo. Quando tinha o segundo grau completo, eu implorava porque não tinha o nível universitário. Aí, depois, eu implorava porque eu não sabia inglês e espanhol. Olha que jogo bonito. Olha que interessante. Porque eu cresço quando a Dona Vilani, minha mãe, me faz uma tapioca de manhã.
Você foi um dos primeiros artistas a fazer uma ponte entre o universo real do rap e os outros gêneros musicais, as outras classes sociais e os outros ouvidos e corações.
É muito simples. Se cada uma dessas pessoas pensarem na cor azul, todos iremos pensar na cor azul, mas cada um em sua nuance de azul. É só isso. O verbo é falho. Clarice [Lispector] já tinha gritado isso. Você já observou um jardim? O que é um jardim pra você? Já reparou que é a mão do homem moldando a natureza ao seu bel prazer? Todos os dias nós nos moldamos. Com ou sem querer. Não existe resposta para o seu questionamento porque não existe resposta para a vida. Apenas vivemos. E, nesse balbucio entre alma e carcaça, tentamos fazer o melhor que podemos fazer.

Você se vê nesse papel de ponte?
Eu? Vou repetir o que lhe falei três anos atrás: sou o equívoco, mas um equívoco com reticências.

Por que um equívoco?

Meu berço é o rap, sou filho de preto nordestino. Filho de benzedeira que, com 50 anos de idade, se formou em Filosofia. E eu digo que ela é filósofa não pelo diploma. Ninguém é filósofo porque fez Filosofia. Ela é filósofa porque sabe viver a vida. Por si só, todo mundo é um filósofo. Dona Vilani me ensinou isso. É a potencialidade humana. Os quereres, as inteligências, sobretudo as potencialidades. O problema são as potencialidades. Quando as descubro, não sei o que faço. E quando faço, me questiono. O grande lance é se questionar. Porque é tudo muito frágil. O pensar é frágil. O devaneio é forte. Eu sou filho de um senhor que foi metalúrgico a vida toda. E de uma senhora que foi rodomoça, servia cafezinho nas viagens de ônibus. Depois, foi empregada doméstica no Rio de Janeiro. Depois, lavadeira. E, com 40 anos de idade, voltou a estudar. E era benzedeira do bairro por mais de dez anos. E hoje tem mais de oito títulos. Então, essa incógnita já existe no seio de minha família há muitos anos.

E você?

Eu sou o mais fraquinho da turma. Cresci em um ambiente extremamente hostil, no extremo sul da Zona Sul da cidade de São Paulo. Vi gente morrer na minha frente, de morte matada. Vi amigos me estenderem a mão em um pronto-socorro do meu bairro – eu sabendo que a pessoa ia morrer. Precisei de hospital público e não tive. Senti dor, passei fome. Mas lhe digo isso com coração aberto, não para glamourizar uma história. Eu lhe digo isso para implorar às nossas autoridades que não deixem isso acontecer.

Você acha que a situação está melhorando?

Não. Nós nunca vamos ter o número real de quantas pessoas são assassinadas. Nós nunca vamos ter o número real de quantos pais de família perderam seus empregos. Nós nunca vamos ter o número real de nada. Porque saber das coisas é um poder absurdo. Por isso que nossa juventude está na rua. Meu amigo, você pode assassinar uma pessoa dando um tiro na cabeça dela. Mas também pode assassinar uma pessoa acabando com toda a sua ideologia.





Você considera que seu primeiro disco foi devidamente compreendido?

Eu não tenho a pretensão de que as pessoas me compreendam. Isso aí é se achar demais. Meu desejo é dividir o meu pensar. Isso para mim já é tudo. O que vai acontecer é da natureza. Meu desejo é que as pessoas me permitam esse processo de comunicação – que nem sempre é comunicação, porque eu me expressar não significa que eu me comuniquei.

Eu tenho a impressão que você cria essa comunicação não apenas com as ferramentas lógicas e racionais, mas também por meio da intuição. Uma comunicação entre o seu inconsciente e o das pessoas.

Acredito que exista intuição. Mas também existe o sol quando bate na sua pele. Você sente o calor. Do mesmo jeito que existe dor quando um cassetete lhe pega a costela. Existe intuição e existe reação. Não no sentido de um rancor, mas no sentido de dar a volta por cima. Sou filho de cearenses que fugiram, no início da década de 70, da seca e da fome. Chegaram aqui em plena ditadura e foram morar em um porão. Existe, então, viver a sua realidade em sua cidade. Existe você envelhecer em sua cidade. E existe tentar compreender o porquê de algumas coisas, embora a gente nunca vá saber, porque é a mesma coisa que achar a galinha dos ovos de ouro. Somos não sei quantos bilhões na nossa espécie e sabemos também que são de cinco a dez corporações que mandam no planeta. E eu vou morrer, meu neto e meu bisneto vão morrer, e isso não vai mudar. Ou será que vai mudar? Mas o que é que muda? E quem muda? É a mesma coisa que você reclamar do tempo sobre suas rugas. O tempo está parado, é você que passa.

O disco novo está pronto?
Não.
Mas está bem encaminhado? Ou ainda está na sua cabeça?
Muita coisa na cabeça. E muita coisa na mente. Porque eu acho que “cabeça” e “mente” são compartimentos diferentes no mesmo espaço físico. Na mente, talvez pelo processo de ainda mastigar algumas coisas. E, na cabeça, com algumas coisas já mastigadas, outras por mastigar e outras que iremos cuspir. Muita coisa na cabeça: as canções antigas do Ainda há tempo[álbum de estreia], do Nó na orelha, e as canções que _z de três anos para cá. E sempre me perguntando: “Será que realmente existe a necessidade. De quem é a necessidade de outro disco?”

Não é uma necessidade sua?
Eu tenho vontade de dividir o meu pensar. E o meu pensar vem musicado. Mas o que isso representa para tudo o que está em torno da música? Para tudo o que está em torno de quem vive música e de quem trabalha com música? Aí, é outra questão. Eu tenho o desejo de dividir o meu pensar. Enxergar um artista em um CD é muito pouco. Para cada compositor, para cada músico, para o vocalista existe um universo. Um universo que gira em torno desse ser. E ele, por si só, já é outro universo.

Você criou uma relação, inclusive afetiva, com outros nomes que fizeram a história da música e da sociedade brasileira, como Milton Nascimento e Caetano Veloso. Como essa relação se dá?

São pessoas extremamente generosas, inteligentes, doces. A sensibilidade fez com que eles passassem por décadas, e todas as gerações, de um jeito ou de outro, não perdem contato com eles. Eu sempre procuro preservar o pouquinho de colegas que tenho. Fico na minha. Olha, cara, vou te falar um lance: estou tentando entender o que está acontecendo. Que maravilhoso isso das pessoas me darem a oportunidade de eu me manifestar. Porque é o povo que põe a comida na minha mesa. Porque, até então, com 30 anos de idade, eu vivia dependendo da minha mãe e do meu pai. Por isso que eu fiz [canta]: “Eu não tenho casa/ Eu moro em casa de mãe”. Por isso eu fiz: “Às quatro da manhã ele acordou / Tomou café sem pão e foi à rua por o bloco pra desfilar / Atravessou o morro”. E eu não estou falando só de dinheiro.

Graças a sua visibilidade, outros artistas ligados a você também se tornaram mais visíveis, como foi o caso de Kiko Dinucci, Pagode da 27, Rodrigo Campos…
[interrompendo] O Rodrigo Campos. Eu queria deixar sublinhado isso. Que saia na matéria. O Rodrigo Campos é de uma elegância pungente. Mas eu também queria sublinhar aqui um cara muito especial que eu tenho guardado no meu coração. E que é um grande artista: o [saxofonista] Thiago França. Ele ultrapassou a barreira do instrumento. O Thiago França por si só é um instrumento.


O Thiago já estava com você no começo dessa transformação, quando você decidiu que ia parar de fazer música e registrar um disco de canções, por brincadeira…
Ele é maravilhoso! Marcelo Cabral, esplendoroso. Daniel Ganjaman é esplendoroso. Eu tenho o luxo de andar com esses caras. Tem o Mauricio, fundador do Mestre Ambrósio. Quando eu subo no palco e faço referência a esses caras, tem gente que acha que eu estou fazendo média. Mas é porque não conhece a história de vida de cada um deles. Do mesmo jeito que eu falei que sou café com leite lá em casa, eu sou café com leite quando subo no palco. Eu tenho o [guitarrista] Guilherme Held, que é pupilo do Lanny Gordin [guitarrista dos discos tropicalistas]. O negócio é pesado. Estou falando de Lanny Gordin! E você sabe muito bem quem é Lanny Gordin e sua importância.

Quem mais?

Kiko Dinucci é um dos grandes escritores de nossa geração. E, ao mesmo tempo que Chico [Buarque] me acena, Mano Brown está no meu DVD. Pô, cara, eu peço desculpa então se está todo mundo errado. Mas, ao mesmo tempo, eu não quero glamourizar isso. Eu não quero paetês.

Sua mãe é benzedeira. Tem um Deus aí envolvido. Como ele chega a você?
Tem um Deus. Mas e se for com outro nome? E se fosse pedra? E se fosse luz? E se fosse gelo? Minha guerra já está comigo, é interna: [canta] “Pare de correr pra aprender a andar/ Eu falei demais / Pare de falar pra poder dizer / Que eu cuspi no amor / Pra depois de amor vir a padecer / Eu reclamei demais e aprendi a viver depois que morri / E fui pro inferno bater um papo com o cão / Onde ele disse que não era pra eu estar ali / Mas como assim, então? / Gelo no inferno eu colhi / E corri / Corri demais”. É uma dízima periódica, porque a vida é isso. Nossos questionamentos são dízimas periódicas porque fazem parte da essência da fome da alma humana. Se é que o humano tem alma. Porque nós somos uma espécie no meio de 300 milhões de espécies e estamos acabando com tudo. Será que a gente tem alma? Por isso que digo que dessa ponte que você disse que eu construí, eu estou na água. Mergulhei e tenho inveja dos peixes.

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