quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Renda dos negros cresce, mas não chega a 60% da dos brancos


Vinícius Lisboa - Repórter da Agência Brasil - Edição: Valéria Aguiar 

De 2003 a 2013, a renda da população preta e parda cresceu 51,4%, enquanto a da população branca aumentou 27,8%, divulgou hoje (30) o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar disso, a renda dos negros ainda corresponde a apenas 57,4% da dos brancos, percentual maior que os 48,4% de 2003. Nesse período, a renda média geral da pesquisa subiu 29,6%.

Enquanto a população de cor branca teve rendimento médio de R$ 2.396,74 em 2013, a população preta e parda recebeu em média R$ 1.374,79 por mês. O valor médio para toda a população das seis regiões metropolitanas pesquisadas no ano passado foi de R$ 1.929,03. Para a técnica da Coordenação de Emprego e Renda do IBGE, Adriana Araújo Beringuy, que apresentou a pesquisa, a retrospectiva dos 11 anos da Pesquisa Mensal do Emprego mostra que houve ganhos importantes para grupos historicamente mais vulneráveis:

"De fato melhorias têm ocorrido, mas a diferença ainda é muito importante. A melhoria pode ser atribuida a questões como escolaridade da população como um todo que vem aumentando, permitindo que as pessoas obtenham empregos com maiores rendimentos, assim como também ao aumento do poder aquisitivo da população, que gera um aumento de vagas no comércio, por exemplo", explicou.

Em 2013, a taxa de desocupação se mantinha maior para a população preta e parda do que para a população branca. Enquanto o primeiro grupo partiu de uma taxa de 14,7% em 2003 para uma de 6,4% em 2013, a do segundo grupo saiu de 10,6% para 4,5%. De 2012 para 2013, o desemprego se manteve no mesmo valor para os pretos e pardos, e caiu de 4,7% para 4,5% para os brancos. Apesar disso, nos dez anos, a queda foi de 8,3 pontos percentuais para a população preta e parda e de 6,1 pontos percentuais para a população branca.

A diferença entre a renda de homens e mulheres também foi reduzida, mas persiste. Trabalhadores do sexo feminino ganharam, em média, o equivalente a 73,6% do que os do sexo masculino receberam em 2013. Em 2003, o percentual era de 70,8%, mas chegou a ser de 70,5% em 2007. O rendimento real mensal médio das mulheres em 2013 foi de R$ 1.614,95, enquanto o dos homens foi de R$ 2.195,30.
A taxa de desocupação também é maior entre as mulheres do que entre os homens, com 6,6% contra 4,4%. Em 2003, a taxa para as mulheres era de 15,2%, e, a para os homens, de 10,1%. A maior taxa de desemprego é verificada entre as mulheres negras, para quem o índice chega a 7,9% em 2013 e foi de 18,2% em 2003. As mulheres brancas têm a segunda maior, de 5,4%, e os homens negros, de 5,1%. A dos homens brancos, que era de 8,6% em 2003, caiu para 3,8% em 2013.

São Paulo continua sendo a região metropolitana com a maior renda média, de R$ 2.051,07, seguida pela do Rio de Janeiro, de R$ 2.049,07, de Porto Alegre, de R$ 1.892,83, e pela de Belo Horizonte, de R$ 1.877,99. Salvador, com R$ 1.460,68, e Recife, com R$ 1.414,40, possuem os menores valores médios.

O uso dos termos preto e pardo, empregados pela matéria, respeita as categorias originais usadas na pesquisa pelo IBGE.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Shoppings 'ignoram potencial de consumo da classe C' ao coibir rolezinhos


DA BBC BRASIL

Os jovens de classe C, seguimento social identificado com o movimento dos rolezinhos, tem um poder de consumo de R$ 129,2 bilhões. O montante é superior ao do que consomem os jovens das classes A, B e D somadas, segundo o instituto de pesquisa Data Popular.
Para o presidente do instituto, Renato Meirelles, coibir os rolezinhos como alguns shoppings vem tentado fazer, é "uma miopia das oportunidades de negócio".
A reunião de jovens da periferia convocados pelas redes sociais para dar um "role" em alguns shoppings da região metropolitana de São Paulo assustou lojistas e alguns consumidores. O movimento ganhou força depois que dois centros comerciais da capital de São Paulo conseguiram uma liminar que os autorizava a impedir a entrada de garotos suspeitos de participarem dos eventos convocados pelas redes sociais.
Movimentos sociais deram apoio aos "rolezinhos" e acusaram os shoppings de praticar "apartheid". O movimento se espalhou por outras cidades e o tema chegou ao Palácio do Planalto, onde a presidente Dilma Rousseff se disse "preocupada" com a eventual politização dos "rolés" em vista dos protestos de rua iniciados em junho de 2013.

SHOPPING
Segundo a pesquisa, 54% dos jovens, em geral, vão ao shopping uma vez por mês - a média geral é de 3,3 visitas ao mês. Os jovens de classe C tem um poder de consumo de R$ 129 bilhões nos caixas das lojas. Já os jovens das tradicionais classes A e B somam R$ 80 bilhões, e os da classe D, R$ 19,9 bilhões.
"Não existe espaço disponível de lazer nas periferias. E os shoppings se tornaram esse espaço. Os garotos que fazem rolezinho são filhos da nova classe média (classe C) que não tiveram um passado de restrição como os pais", diz.
Segundo Meirelles, esses jovens "cresceram na última década, uma década de consumo. E o shopping oferece consumo e segurança. E eles também gostam de segurança. Além disso, é um lugar para desfilar", diz.
"Os rolezinhos não devem fazer esses jovens desistirem dos shoppings. Mas certamente, quem levou spray de pimenta vai pensar duas vezes para voltar a consumir onde foi reprimido pela segurança", diz.

PRECONCEITO
Meirelles, que há vários anos pesquisa as tendências de consumo entre jovens e a classe C, diz que na última década "de todos os tipos de varejo, os shoppings foram os que mais demoraram para se adaptar à realidade da classe C".
A pesquisa, que ouviu 1.500 jovens de entre 16 e 24 anos em 53 cidades do país, mostrou ainda que 50% das tradicionais classes A e B prefere frequentar locais com pessoas do mesmo nível social.

"Ironicamente, os jovens do rolezinho vão para o shopping com roupas de marca que compraram lá. E eles fazem questão de vestir esse tipo de roupa porque as roupas dão a sensação de que ele galgou um degrau social. É uma forma de diminuir o preconceito que jovens da periferia são alvo há muito tempo e em muitos lugares", diz.
Meirelles também discorda da tese de que a nova classe média tem no compra de bens supérfluos o seu principal objetivo de consumo.
"As pesquisas mostram que esses jovens também investem em educação, em produtos de tecnologia, coisas que seus pais não tiveram acesso. E isso vai trazer impactos na renda desses jovens no futuro", diz.
Segundo a pesquisa, 15% dos jovens da classe C querem comprar um notebook nos próximos 12 meses. Já 11% querem um smartphone e 11% pretendem ter um tablet.

Edson França: Movimento negro no caminho certo da longa jornada

Edson França*
O título desse artigo, cujo objetivo é avaliar a luta do movimento negro e apresentar perspectivas, é a frase que sintetiza o texto, pois a luta contra o racismo e promoção social da população negra no Brasil acumulou importantes vitórias, o movimento social negro está mais maduro e em condições de estabelecer como foco a luta política para ascensão de negras e negros aos espaços de poder e no poder executar uma agenda que mitigue as desvantagens sociais, políticas, culturais e econômicas que há cinco séculos aprisionam a população negra. O movimento negro está no caminho certo da longa jornada para superação do racismo e seus nefastos desdobramentos na sociedade brasileira.

Encerramento de uma década

Em 2013 encerramos uma década da experiência de implantação das políticas públicas de igualdade racial propostas por Lula e continuadas por Dilma Rousseff, o marco inaugural foi a sanção da Lei 10.639/03 em 09 de janeiro de 2003, que institui a obrigatoriedade da inclusão da História da África e da Cultura Afrobrasileira nos currículos escolares e, logo após, em 21 de março do mesmo ano, a instituição da SEPPIR. Entre 2003 aos dias atuais algumas medidas no campo da igualdade racial, com impactos diferenciados, foram adotadas, colocando o Brasil diante de um processo pioneiro de promoção social da população negra – a base para essa afirmação são a subestimação, resistência e omissão dos governos anteriores nessa matéria.

Há certa ambiguidade na postura do governo federal em matéria de política de igualdade racial, pois a última década foi fértil em elaboração, bem discursiva e carente de prática, vimos propostas e leis não saírem do papel. No entanto, as diversas formas de transferências de renda com vista a superar a pobreza e o foco na educação são destaques importantes de políticas públicas que produziram benefícios concretos para população negra e resgataram direitos negados desde a abolição.

As transferências de recursos através do Programa Bolsa Família, principal vitrine do governo federal junto a parcela mais marginalizada economicamente do povo, foram fundamentais para superar a extrema pobreza de parcela significativa da população brasileira, todos sabem que a fome tem pressa, não pode esperar. O Plano de Ação da Conferência de Durban prevê o enfrentamento da pobreza como uma medida importante na superação dos desdobramentos do racismo e os Objetivos do Milênio instam os países a erradicar a fome e a miséria, por isso Lula e Dilma seguem em coerência com os resultados dos documentos que o Brasil é signatário. Apesar de as transferências de renda, na forma adotada, serem medidas meritórias, não emancipam os beneficiários, por isso, consideramos que elas, a despeito da importância e do grande apelo e aceitação popular, devam ser emergenciais, temporárias e acompanhadas por uma política de valorização do trabalho e geração de renda, o trabalho descente emancipa.

Considerando que 73% dos cadastrados no programa Bolsa Família são negros (dados do Ministério de Desenvolvimento Social – MDS), interessa a sociedade civil, especialmente ao movimento negro, exigir políticas públicas estruturantes, como forma de progressão das políticas de transferências, visto que isoladas tornam potenciais estimuladoras de dependência. Ao completar 12 anos de governo e caminhando para mais uma vitória, as forças sociais e políticas que o sustentaram não podem considerar razoável que o Programa Bolsa Família continue sendo o carro chefe das políticas sociais no Brasil.

Foi importante o pronunciamento do STF sobre a legalidade e legitimidade das ações afirmativas e cotas para negros nas universidades públicas, pois abriu espaço para aprovação da lei federal que institui as cotas, aprofundando um virtuoso processo de inclusão de negros e pobres nas universidades públicas. Hoje, se somarmos iniciativas como o PROUNI, REUNI, cotas sociorraciais e várias modalidades de inclusão, verificaremos que mais de um milhão de negros se matriculam anualmente nas universidades. Trata-se de uma conquista fundamental dada a característica emancipadora da educação e, certamente, contribuirá para criar uma classe média negra capaz de enfrentar o racismo em patamar superior.

Os pontos frágeis do modelo em curso para igualdade racial são salientados no acirramento da violência; no genocídio contra a juventude negra que exigiu dois pronunciamentos da Presidenta sobre o tema; na super lotação e caos no sistema carcerário, explicitado pelo caso de Pedrinhas no Maranhão; na manutenção das desigualdades sociais, políticas e econômicas; na presença majoritária dos negros nos estratos subalternos da população brasileira; nos lucros recordes realizados pela oligarquia que comanda o sistema financeiro e na crescente desindustrialização nacional. O país precisa de uma pujante agenda desenvolvimentista, pois, economias fortemente parasitárias como a brasileira não tem energia para sustentar mudanças estruturais que promova socioeconomicamente grandes contingentes populacionais, tal qual a exigida para superação do racismo no Brasil.

Verificamos que ao longo dos últimos dez anos todas as políticas focadas para os interesses dos trabalhadores, movimentos sociais e segmentos em situação de vulnerabilidade (povos indígenas, população negra, mulheres, jovens, população LGBT, dentre outras) receberam dura resistência das forças políticas partidárias que representam o capital, mais precisamente DEM, PSDB e PPS. A pressão da direita racista, golpista e conservadora, a despeito das derrotas eleitorais, mantêm-se forte e enraizada no Congresso Nacional; em governo de estados e em capitais importantes, destacadamente, São Paulo e Minas Gerais, Salvador e Curitiba; nos grandes meios de comunicação e no judiciário, acirrada pela postura do Presidente do STF e a maioria dos Ministros na ação Penal 470.

Fica patente que as forças progressistas além de impor novas derrotas eleitorais ao conservadorismo precisarão enfrentar com destemor e maior convicção a guerra pela hegemonia na sociedade, desenvolver o Brasil com distribuição de renda e equidade social. Contar com a governabilidade oferecida pela aliança parlamentar formada no Congresso Nacional e na conciliação de classes não será possível, alguém tem que ceder, abrir mão de privilégio e o povo sempre cedeu. Para avançar, a pauta das reformas (comunicação, política, judiciária, tributária, agrária e urbana) deve se constituir em prioridade a ser construída com o povo.

Não há possibilidade de avanços efetivos na agenda antirracismo e social enquanto setores conservadores estiverem fortalecidos, enquanto o estado nacional tiver uma estrutura burocrática burguesa, voltada a atender a classe dominante. A plataforma do movimento negro incide sobre privilégios políticos e econômicos da elite, em última instância, é uma plataforma classista, pois não se estabelece justiça recrudescendo ou consolidando desigualdade.

Dilma fica

O cenário político tem apontado para vitória de Dilma Rousseff na eleição que se avizinha, segundo última pesquisa IBOPE, encomendada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), subiu de 37% a 43% o índice de aprovação da Presidenta. A oposição conservadora representada pelo trio PSDB, DEM e PPS encontra-se fragilizada e dividida, sem alternativa viável ao Brasil, sem uma agenda positiva com vista ao desenvolvimento socioeconômico da nação, com o núcleo duro, formado majoritariamente pelo PSDB paulista, mergulhado em denúncia de corrupção, de modo que continua ao encargo da grande mídia o papel ativo de oposição conservadora ao projeto popular em curso. É crescente a possibilidade de total dispersão do trio oposicionista no próximo pleito eleitoral.

A dita terceira via formada pela aliança entre Eduardo Campos e Marina Silva está com dificuldade de viabilizar-se, não dispõem de afinidade político programática, as duas principais lideranças disputam protagonismo, ambos perderam aliados e palanques estaduais fundamentais na construção da alternativa à Presidência da República. Há que se destacar que Marina e Campos (ou Campos e Marina) não têm espaços à esquerda para crescer, as alianças que, possivelmente, atrairão devem vir do espólio da fragmentação do consorcio conservador que compôs a principal oposição a Lula, Dilma e as políticas sociais por eles implantadas. O movimento negro tem um projeto de esquerda consolidado, qualquer alternativa cujo núcleo político seja hegemonicamente conservador será um prejuízo ao movimento e um atraso ao país.

No entanto, não podemos considerar Dilma invencível nessa eleição, a principal ameaça para sua vitória eleitoral é a crise econômica. A crise continua impactando fortemente nas principais economias globais e na periferia do euro, destruindo economias, arrasando o estado de bem estar social implantado na Europa, estimulando remédios antipopulares e despertando a sanha beligerante do imperialismo.

Segundo dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Ong Oxfam Intermón no Fórum Econômico Mundial de Davos, de 2008 a 2013 a crise mundial desempregou 62 milhões de trabalhadores e intensificou a concentração de rendas a índices recordes, hoje metade da riqueza mundial está concentrada nas mãos de uma elite composta por 1% da população, é estimado que em 2018 haverá 215 milhões de desempregados no mundo. Há anos a UNEGRO tem dito que a crise não nos interessa, pois ela transforma raça e gênero em critério de oportunidade e qualidade de trabalho, recrudescendo o racismo, a xenofobia e várias formas de intolerâncias.

Não se deve descartar a possibilidade da crise corroer a economia nacional. A capacidade de Dilma, ao contrário dos governos europeus, apresentar alternativa não regressiva, que melhore a qualidade de vida dos brasileiros, desenvolva o país, assegure empregos de qualidade e os direitos sociais e trabalhistas garantirá sua permanência no mais alto cargo da República.

O movimento negro não pode ter dúvida, deve garantir os avanços conquistados e exigir mais, apesar da dificuldade de setores da esquerda brasileira em compreender com maior profundidade o protesto negro (como dizia Clóvis Moura), é no campo popular e democrático que se encontram as possibilidades de realizar a plataforma antirracismo, pois a luta contra o racismo é também uma luta de classe.



Democracia negada

A UNEGRO compreende que o racismo e seus agravos dificilmente serão superados com a ausência da população negra nos espaços de poder e decisão, consideramos um grave defeito da jovem democracia brasileira a profunda sub-representação de negros e negras nos espaços de representação e decisão política.

Trata-se de uma distorção que os números não tergiversam, denunciam: dos 40 ministérios do Governo Dilma, apenas o da Igualdade Racial a titular da pasta é uma mulher negra; dentre as 50 maiores estatais nacionais apenas a BAHIAGÁS (estatal baiana) é presidida por um negro; o Congresso Nacional é composto por 8,3% de negros, enquanto 50,6% dos brasileiros são negros, além de contarmos com a lamentável ausência de representação negra em algumas assembleias legislativas e câmaras de vereadores em Capitais.

Outro ponto sensível sobre população negra e sub-representatividade política é que em todo Congresso Nacional apenas um deputado é militante orgânico do movimento negro (Luiz Alberto – PT/BA e MNU), assim como são raríssimas as presenças de negras ou negros orgânicos do movimento negro nos ministérios – sem contar a SEPPIR e Fundação Cultural Palmares (não tenho o número exato, mas arrisco dizer que há dois no MEC, um no Ministério da Saúde, uma na Secretaria da Juventude e uma no MDA, total de cinco militantes orgânicos em todos os ministérios, excetuando a SEPPIR e MINC onde se aloja a Fundação Palmares), ou seja, o movimento negro é um movimento social praticamente sem representação política. Daí a dificuldade das propostas relacionadas com a questão racial serem aprovadas no Parlamento e implementadas pelo Executivo.

Considero que somente o racismo explica a iniquidade da sub-representação da população negra nos espaços de poder e decisão, trata-se um poderoso fator de desestimulação da participação política da população negra, potencial gerador de tensão no seio do povo e um dos mais graves problemas políticos da democracia brasileira na atualidade.

Democracia é um conceito consolidado desde a Grécia Clássica, “governo do povo pelo povo”, ou seja, governo em que o povo exerce soberania. A distância da população negra nos legislativos e executivos brasileiros se constitui num sequestro da soberania e negação da democracia. Deve ser tratado como uma importante questão nacional, pois não há caminhos seguros para uma profunda unidade do povo, desenvolvimento justo e sustentável e futuro promissor ao Brasil enquanto não vencer o racismo incorporando política e economicamente mais da metade de sua população.

Em 2014 o movimento negro deve dar um profundo mergulho nos esforços dos movimentos sociais e políticos de impor a reforma política, uma reforma que privilegie a participação popular, fortaleça os partidos, supere o impacto do capital nos resultados eleitorais, combata a sub-representação de mulheres, negros e jovens dos espaços de poder. Essa deve ser a mãe das reformas e prioridade na agenda democrática.

Agenda eleitoral e a luta contra o racismo

Nos anos pares, a cada biênio, ocorre eleição no Brasil, apesar da energia e recursos desprendidos, essa agenda tem beneficiado a democracia brasileira, na medida em que o mundo político, a classe dominante e o senso comum se atentam e mobilizam para o debate analisando o passado e projetando o futuro. Apesar de certo rebaixamento nos conteúdos dos debates promovido pela direita populista, gradativamente a consciência política do povo vai aumentando, o processo eleitoral tem também caráter pedagógico. Avaliam os governos, novos compromissos são estabelecidos e outros reiterados, de modo que a agenda eleitoral brasileira é terreno árido para acomodação.

O movimento negro tem aprimorado sua participação no debate eleitoral em todos os níveis, desde as contribuições de Abdias do Nascimento no governo Brizola (RJ) e no Parlamento (Câmara e Senado), logo após a Ditadura Militar aos dias atuais. Registro como marco importante da questão eleitoral e luta antirracismo a formulação do caderno “Brasil Sem Racismo”, que compôs o vitorioso “Programa de Governo 2002 Coligação Lula Presidente”, estabeleceu as bases da “Política de Igualdade Racial”, em processo de implantação em todo país desde 2003. Assim, verificamos a importância da eleição no processo político de superação do racismo, por isso deve ser a agenda prioritária para o movimento em 2014.

Devemos trabalhar para que o voto negro vá para candidaturas negras e/ou de esquerda, comprometida com a plataforma do movimento negro, com o desenvolvimento nacional, com os interesses dos trabalhadores, dos movimentos sociais e do povo. Não devemos estimular a ideia de que qualquer negro pode representar os anseios do movimento negro ou qualquer branco não pode representar.

A prioridade do movimento negro nessa eleição deve ser eleger um grande número de negros e progressistas para as assembleias estaduais, câmara federal, senado, governos de estados e Dilma para Presidência da República; acumular força para exigir a execução da plataforma antirracismo; introduzir o debate sobre a dificuldade de negros votarem em candidaturas negras e de esquerda; abrir espaço político para incluir negros e negras nas composições dos futuros governos; e consolidar lideranças negras nos cenários estaduais.

A atual pauta política do movimento negro deve está presente no debate eleitoral, devemos denunciar e propor medidas contra o genocídio que tem dizimado a juventude negra; dar consecução na agenda quilombola; instituir o SINAPIR; qualificar as estruturas governamentais de igualdade racial; prevê um volume de recursos digno para implantação das políticas de igualdade racial, ajustar a implantação das cotas nas universidades e incluir negras e negros em todos os escalões dos serviços públicos; e implementar definitivamente o estatuto da Igualdade Racial. 



Movimentos sociais são atores políticos relevantes

A grata surpresa em 2013 foi as mobilizações populares de junho, marco de um novo levante de massa, dessa vez se caracterizou pelo caráter espontâneo, logo, sem o controle dos Partidos e dos movimentos sociais brasileiro. Desde os eventos das “Diretas Já” e “Fora Collor” não ocorria no país manifestações de massas na proporção das que iniciaram em junho de 2013. Apesar de ainda não estar completamente estabilizado esse processo e de não ter posições definitivas e peremptórias sobre causas, impactos e significados desse histórico levante popular, um resultado legou: fortaleceu o caráter político dos movimentos sociais e sua condição de interferir na agenda nacional.

No Brasil o movimento negro sempre teve projeto de minoria, focado na resistência dos agravos do racismo, isso tem dificultado maiores avanços, visto que as ações de minorias marginalizadas geralmente são introspectivas, ou seja, de domínio exclusivo do campo. Prova disso é o desconhecimento do senso comum dos movimentos sociais da pauta antirracismo, só tem conhecimento das cotas.

Considero que para o movimento negro ajustar sua política a altura das exigências que uma maioria populacional impõe, tem que investir mais na unidade e ampliação de sua base social, propor também para além da esfera do racismo, pensar mais integralmente o Brasil. Para isso tem que construir mais pontes com outros segmentos dos movimentos sociais e inserir as reivindicações voltadas a superação dos impactos do racismo no processo da luta popular pelas mudanças. Por isso é fundamental compor espaços de articulação local e nacional como a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), Fórum Social Mundial (FSM), agendas como as pautadas pelas Centrais Sindicais, movimentos de juventude, feminista, LGBT, comunitário, ambiental, dentre outros.

Não vislumbro saídas isoladas para o movimento negro, parte fundamental das reivindicações de todos os segmentos dos movimentos sociais é econômica, diz respeito a quem se destina a maior fatia dos recursos públicos e a grande concentração de riquezas nas mãos de poucos. O movimento negro, de forma organizada, deve se fazer presente na luta para mudança na política econômica, substrato de todas as batalhas, e ajudar construir um país justo e sem racismo.


*Edson França 
Presidente da UNEGRO
Historiador. Membro do Comitê Central do PCdoB. Membro do Conselho Nacional de Igualdade Racial - CNPIR, na vaga de Notório Reconhecimento em Relações Raciais.
www.unegro.org.br

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Clóvis Moura: O racismo como arma ideológica de dominação

publicado:vermelho.org.br
Sobre o racismo, tema dos polêmico, instigantes e inesgotáveis do mundo moderno, concentram-se opiniões contraditórias, que discutem em vários níveis, as consequências de sua prática. A discussão sobre as diversas formas de sua atuação, significado e função vem sempre acompanhada de uma carga emocional, o que demonstra como a polêmica que se monta em torno de seu significado transcende em muito as questões acadêmicas, para atingir um significado mais abrangente, da ideologia de dominação. 

Somente admitindo o papel social, ideológico e político do racismo poderemos compreender sua força permanente e seu significado polimórfico e ambivalente.

Apenas desta forma poderemos compreender por que se trata de um conceito tão polêmico e, também, por que em determinados contextos políticos e momentos históricos o racismo adquire tanta vitalidade e se desenvolve com tanta agressividade: ele não é uma conclusão tirada dos dados da ciência, de acordo com pesquisas de laboratório que comprovem a superioridade de um grupo étnico sobre outro, mas uma ideologia deliberadamente montada para justificar a expansão dos grupos de nações dominadoras sobre aquelas áreas por eles dominadas ou a dominar. Expressa, portanto, uma ideologia de dominação, e somente assim pode-se explicar a sua permanência como tendência de pensamento. Vê-lo como uma questão científica cuja última palavra seria dada pela ciência é plena ingenuidade, pois as conclusões da ciência condenam o racismo e nem por isso ele deixa de desempenhar um papel agressivo no contexto das relações locais, nacionais e internacionais.

O racismo tem, portanto, em última instância, um conteúdo de dominação, não apenas étnico, mas também ideológico e político. É por isso ingenuidade, segundo pensamos, combatê-lo apenas através do seu viés acadêmico e estritamente científico, uma vez que ele transcende as conclusões da ciência e funciona como mecanismo de sujeição e não de explicação antropológica. Pelo contrário superpõe-se a essas conclusões com todo um arsenal ideológico justificatório de dominação.

Lapouge, um dos teóricos, dizia: “Estou convencido de que no próximo século milhões de homens se matarão por um ou dois graus do índice cefálico”. Isso foi escrito em 1880. O que esse teórico do racismo queria expressar eufemisticamente é que a humanidade travaria a maior guerra de sua história e que as diferenças raciais seriam um dos pretextos ideológicos de que os agressores lançariam mão para justificar a conquista de territórios colonizáveis.

É uma constante o traço antropológico estar embutido na crista da ofensiva racista de dominação. Com isso não queremos dizer que toda antropologia é racista. Pelo contrário. Mas o que acontece é que a divulgação que se faz dessa ciência, especialmente para a opinião pública leiga, é nesse sentido. A expressão de Lapouge teve contestadores, mas o que se viu foi a florescência progressiva dessa posição no final do século XIX e início do século XX, a ponto de fazer com que milhões de pessoas dela compartilhassem. O racismo é um multiplicador ideológico que se nutre das ambições políticas e expansionistas das nações dominadoras e serve-lhe como arma de combate e de justificativa para os crimes cometidos em nome do direito biológico, psicológico e cultural de “raças eleitas”. Há também o racismo interno em várias nações, especialmente nas que fizeram parte do sistema colonial, através do qual suas classes dominantes mantêm o sistema de exploração das camadas trabalhadoras negras e mestiças.

Com a montagem do antigo sistema colonial e a expansão das metrópoles colonizadoras, esse racismo se desenvolveu como arma justificadora da invasão e da domínio das áreas consideradas “bárbaras”, “inferiores”, “selvagens” que, por isso mesmo, seriam beneficiadas com a ocupação de seus territórios e a destruição de suas populações pelas nações “civilizadas”.

O racismo larval que encontramos em todos os povos antes da aventura colonialista passa a revestir-se de uma roupagem científica a ser manipulado como se ciência fosse. No particular podemos dizer que o racismo moderno nasceu com o capitalismo. Referimos-nos ao racismo como o entendemos modernamente, o qual procura justificar a dominação de um povo, nação ou classe sobre outra invocando argumentos “científicos”. Antes do aparecimento do capitalismo, “(…) as tentativas feitas para justificar a dominação européia sobre os indígenas eram fundadas em crenças sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos, ao contrário dos povos submetidos, nada mais lógico e natural de que o Deus todo-poderoso dos cristãos recompensasse os seus adeptos. Os donos de escravos negros podiam inclusive justificar a escravidão em uma passagem do Velho Testamento, no qual se lê que os filhos de Cam foram condenados a ser lenhadores e aguadeiros. Obviamente, essas razões sobrenaturais logo começaram a perder seu valor e em seguida os brancos imaginaram outras justificativas mais de acordo com a natureza. A doutrina da seleção natural e da sobrevivência do mais apto foi um argumento que veio a calhar. A rapidez com que esse conceito puramente biológico chegou a dominar em todos os campos e atividades do pensamento europeu nos dá a idéia da necessidade urgente que se precisava para justificar a dominação. Nessa teoria universalmente aceita, a dominação européia encontrou a forma de justificar-se que estava procurando. Já que os brancos haviam conseguido mais êxito que as outras raças, tinham de ser, per si, superiores a ela. O fato de que essa dominação tinha data muito recente foi justificado alegando-se que o europeu médio não tinha perspectiva mundial, assim como os outros argumentos que procuravam demonstrar que as raças restantes ocupavam na realidade uma posição inferior na escala da evolução física” (1).

É exatamente nesta confluência do capitalismo com as doutrinas biológicas da luta pela vida e a sobrevivência do mais apto que o racismo se apresenta como corrente “científica”. Surge, então, a idéia de raça como chave da história. Ela aparece exatamente na Inglaterra com Robert Knox (Races of Men, 1850) e na França com Arthur de Gobineau (Essai sur l’inégalité des races humaines). Para Alan Davies,

“(…) do primeiro surgiu o mito do gênio racial saxão – mais tarde anglo-saxão – e do último surgiu o mito do gênio racial ariano; mas ambos os mitos eram variantes do tema geral da superioridade branca européia sobre os não-brancos. Sua gênese foi política. Knox procurava provar que o homem saxão era democrata por natureza e por isso o futuro dominador da terra. Gobineau, por outro lado, não gostava da democracia e procurou provar que seu surgimento era um sinal certo de decadência e da morte iminente da civilização. Em ambos os casos as raças não-brancas eram relegadas a uma posição inferior como símbolos dos elementos primitivos e não-criativos na natureza humana” (2).

Deduz-se, portanto, sem muito esforço, que o racismo pode ser considerado – da forma como o entendemos atualmente – um dos galhos ideológicos do capitalismo. Não por acaso ele nasceu na Inglaterra e na França e depois desenvolveu-se tão dinamicamente na Alemanha. O racismo é atualmente uma ideologia de dominação do imperialismo em escala planetária e de dominação de classes em cada país particular.

Desta forma explica-se o sistema colonial e o pilar de seu êxito: de um lado, exterminar as populações autóctones das áreas ocupadas e, de outro, justificar o tráfico negreiro com a África, um dos fatores mais importantes da acumulação capitalista nos países europeus. As populações autóctones não tinham direito aos territórios onde viviam por serem primitivas; e às africanas, que já sofriam a maldição bíblica de Cam, juntava-se agora seu atraso biológico, sua semelhança e proximidade com os mais primitivos espécimes da raça humana, quer dizer, eram antropóides que se desviaram de sua árvore genealógica. Com isso, o chamado processo civilizatório tinha o respaldo da ciência. A afro-América, que compreendia, no século XVIII, o Caribe (Antilhas, Guianas), e grande parte da América espanhola continental (costa do Peru, partes do que são hoje a Venezuela e a Colômbia) já estavam inteiramente dominadas, e a justificativa para a sua dominação era a mesma: a incapacidade inata (biológica) que os nativos tinham para se civilizarem.

Toda essa população nativa ou compulsoriamente trazida da África fazia parte de uma massa sem história, sem máscara, sem cultura, sem moral e sem perspectiva civilizatória. Já no início do século XIX os teóricos racistas substituíram as explicações um pouco vagas por explicações “científicas”, como já foi dito, enquanto as demais áreas da Ásia, África e Oceania eram ocupadas com o mesmo pretexto.

Foi a época áurea da antropometria, quando Gobineau, Ammon, Broca, Levi e Quatrefages desenvolviam pesquisas no sentido de saber se os habitantes das cidades eram superiores (por questões biológicas) aos camponeses pela sua capacidade craniana; se os nórdicos eram superiores aos alpinos ou, como queria Levi, se os mediterrâneos eram superiores a outras “raças” européias.

Tais conclusões eram baseadas em pesquisas históricas; na mensuração de crânios e esqueletos; na medição de índices cefálicos, e na capacidade craniana de cada grupo pesquisado. Tudo isso, no entanto, representava, em última instância, as contradições e os conflitos das nações européias em luta pela dominação continental. Convém notar que alguns deles, como é o caso de Gobineau, chegaram às suas conclusões antes de terem lido A origem das espécies, de Darwin, que surgiu em 1859 e deu novo alento a essas hipóteses com a sua teoria da “sobrevivência do mais apto”, criando a escola do darwinismo social. Como diz uma antropóloga, “havia-se descoberto uma razão” 'científica' que santificava o velho axioma 'o poder faz o direito'”.
Por outro lado, entrava-se na época aguda do colonialismo e as disputas pelos territórios conquistados ou a serem conquistados. Afirmou Ruth Benedict:

“O racismo converteu-se em grito de guerra durante este período nacionalista. A pátria, que necessitava de uma palavra-de-ordem aglutinadora, se outorgou um pedigree e um vínculo que levava a que qualquer homem podia compreender e sentir-se orgulhoso dele. O racismo foi, a partir daí, uma babel de vozes diferentes. Os franceses, os alemães, os eslavos, os anglo-saxões, todos produziram literatos e políticos consagrados a demonstrar que, desde o princípio da história européia, os triunfos da civilização devem-se exclusivamente à sua ‘raça’” (3).

Como se vê, essa antropo-sociologia era reflexo e rescaldo de uma competição sociopolítica entre as nações da Europa. Era, por isso mesmo, uma ciência eurocêntrica. Com a instalação e o dinamismo do sistema colonial e seu desdobramento imperialista, ela se estende ao resto do mundo e aí procura ter uma visão mais abrangente e sistemática, unindo todas as diferenças étnicas européias em um bloco compacto – o branco –, que passa a se contrapor ao restante das populações não civilizadas, dependentes, e racialmente diversas das matrizes daquele continente. Não se cogita mais nas diferenças entre o nórdico, o alpino, o mediterrâneo, que passam a ser, de modo genérico, componentes da raça branca. E essa raça tinha por questões de superioridade biológica o direito de tutelar os demais povos.

A partilha da África, feita por Bismarck na Alemanha, entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 criou uma trégua entre as nações conquistadoras, e com isso o mundo ficou dividido entre os brancos civilizados europeus e os povos não-brancos “bárbaros” e “selvagens”.

Civilizados que mandam e bárbaros que obedecem

Ordenado o colonialismo através do racismo, as nações dominantes sentiram-se à vontade para o saque às colônias e para as razias mais odiosas nas regiões da Ásia, América Latina, África e Oceania e para agir contra todos os que compunham as multidões de desamparados e anônimos da história. Não só roubaram-lhes as riquezas, mas suas culturas, crenças, costumes, língua, religião, sistemas de parentesco e tudo o que durante milênios esses povos constituíram, estruturaram e dinamizaram.

As explicações eram fáceis e já vinham pré-fabricadas pela sociologia antropológica desenvolvida na Europa para dar aparência de verdade científica ao crime. A própria opinião pública liberal ou pretensamente humanista européia achava essa espoliação natural e defendia o direito dos ditos civilizados de tutelarem os povos colonizados. Renan, neste sentido, escreveu:

“A regeneração das raças inferiores pelas raças superiores está dentro da ordem providencial da humanidade. O homem do povo é quase sempre, entre nós, um nobre renegado, sua mão pesada é mais acostumada ao manejo da espada do que ao utensílio servil. Prefere bater-se a trabalhar, isto é, regressa ao seu primeiro estado. Regere imperio populos, eis a sua vocação. Derramai esta devorante atividade sobre os países que, como a China, concitam a conquista estrangeira. Dos aventureiros que desinquietam a sociedade européia, fazei um ver sacrum, um exame como dos francos, dos lombardos, dos normandos, e cada qual estará no seu papel. A natureza gerou uma raça de operários – é a raça chinesa – duma maravilhosa destreza de mão e quase nenhum sentimento de honra; governai-a com justiça, cobrando-lhe pelo benefício de tal governo um amplo erário em proveito da raça conquistadora, e ela ficará satisfeita; uma raça de trabalhadores da terra é o negro, sede para ele bom e humano e tudo estará em ordem; uma raça de senhores e soldados é a raça européia. Que se reduza esta nobre raça a trabalhar no ergástulo como os negros e os chineses e ela revolta-se. Entre nós todo revoltado é, mais ou menos, um soldado que errou de vocação, um ser feito para a vida heróica e que constrangeram a uma tarefa contrária à sua raça, mau operário, soldado bom demais.

Ora, a vida que revolta os nossos trabalhadores faria a felicidade de um chinês, dum fellah, seres de maneira alguma militares. ‘Que cada um faça aquilo para que nasceu e tudo correrá bem'” (4).
Os europeus – arianos, mediterrâneos, alpinos etc. – neste contexto eram os brancos. A grande massa de povos colonizados era a população indistinta, e o denominador que as igualava era a vocação de servir, trabalhar para os brancos, que tinham o dom divino e biológico de governá-la.

Com a passagem do colonialismo para o imperialismo (neocolonialismo), o racismo é remanejado em sua função instrumental. As metrópoles passam a ver as áreas coloniais como habitadas por povos indolentes, incuravelmente incapazes de criar uma poupança interna que os elevasse ao nível dos países brancos, que tinham estes predicados e se desenvolveram, ao contrário do mundo não-branco que, por esta razão, permanece subdesenvolvido.

A teoria do pensamento pré-lógico desses povos, criada por L. Lévy Bruhl, condenava-os a uma posição de dependência circular, porque eram atrasados em consequência de sua própria estrutura psicológica, sendo refratários e impermeáveis à experiência e à razão e essencialmente religiosos. Estabelecia-se, assim, uma divisão estanque entre os povos dominados e os dominadores, pois esse pré-logismo impedia-os de passar da economia natural para a economia monetária (lógica) levada pelos dominadores (5). Neste sentido, K. Marx e F. Engels escreveram, em 1848:

“(…) devido ao rápido desenvolvimento dos instrumentos de produção e dos meios de comunicação, a burguesia arrasta na corrente da civilização até as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e faz capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção. Numa palavra, modela o mundo à sua imagem” (6).

O imperialismo multiplica as formas do racismo, “moderniza-o” na medida em que há necessidade de uma arma de dominação mais sofisticada. Segundo a teoria de L. Lévy Bruhl, como éramos pré-lógicos, os movimentos de libertação que se dinamizavam nas regiões colonizadas ou dependentes não eram políticos, mas etnocêntricos, chauvinistas, xenófobos, nacionalistas ou messiânicos, ou seja, eram movimentos pré-políticos. Embora o conceito de movimentos pré-políticos tenha sido cunhado por um historiador grandemente ligado ao pensamento marxista – E. J. Hobsbawn – acreditamos que ele seja eurocêntrico, elitista e uma forma neoliberal de analisar e interpretar a dinâmica social. Se o aceitarmos, seriam excluídos como políticos todos os movimentos do chamado Terceiro Mundo; a luta de Zapata e Pancho Villa, no México; a de Sandino, na Nicarágua; o movimento camponês de Pugachov, na Rússia; todos os movimentos de libertação da África, como o kinganbista, incluindo os Mau Mau e o de Lumumba. Tudo seria englobado sob o rótulo de milenarismo, salvacionismo ou messianismo, e seria descartada sua essência política. Os povos “inferiores” não tinham condições de entrar no sentido universal da história, eram a-históricos. Com isto justificava-se a repressão contra eles e os seus líderes. Fora dos padrões normativos dos valores políticos europeus, civilizados e “normais”, não existiam movimentos que pudessem ser enquadrados como aceitos pelas nações dominadoras, como continuadores do “sentido” da civilização. As próprias lutas de libertação nacional eram (como acontece até hoje) consideradas revoltas intertribais, movimentos atípicos e perturbadores do processo civilizatório. Não tínhamos acesso à história, à civilização e à igualdade de direitos. A nossa inferioridade congênita e inapelável – biológica e psicológica – nos reduzia a satélites do processo civilizatório.

“A questão racial é essencialmente política e não apenas científica”.

Tudo isto era respaldado por uma intelectualidade que se apresentava como tutora do conhecimento, do saber e, ao mesmo tempo, assessora dos mentores metropolitanos.

Como vemos, a chamada “questão racial” não pode ser compreendida se a interpretarmos como uma questão meramente científica, cuja solução será encontrada pelos antropólogos entre as quatro paredes de um laboratório ou nas salas de congressos de especialistas. Pelo contrário. Devemos partir de uma posição crítica radical, através da reformulação política, da modificação dos pólos de poder, especialmente das áreas do chamado Terceiro Mundo. É uma situação que ficará sempre inconclusa se não a analisarmos como um dos componentes de um aparelho de dominação econômica, política e cultural.

No caso da América Latina, o racismo, como ideologia do colonialismo, penetrou fundo no pensamento da elite intelectual colonizada. Todo o arsenal “científico” que vinha da Europa sobre a questão racial era aqui repetido sem ser filtrado, não porque fosse a “última palavra da ciência”, mas porque já vinha com o julgamento das metrópoles. No lado oposto expressava-se uma visão democrática e não racista do problema; esta corrente progressista era desacreditada pela intelligentsia colonizada. O cientista russo Tchernichevsky, por exemplo, escreveu que “os escravistas eram pessoas da raça branca, os cativos eram negros; por isso a defesa da escravidão nos tratados científicos tomou a forma da teoria da diferença radical entre as diferentes raças humanas”. E Jean Finot, em seu livro O preconceito racial, declarou: “as raças como categorias irredutíveis existem somente como ficções nos nossos cérebros”. E mais: “as diferenças culturais existem e foram assinaladas neste livro, porém somente são produtos transitórios, como resultado de circunstâncias externas, e desaparecerão do mesmo modo” (7).

No entanto, essas conclusões anti-racistas eram consideradas heresias científicas. Sílvio Romero, depois de citar o antropólogo alemão Lapouge, endossando-lhe a tese da superioridade do alemão em relação ao francês, escreve sobre o pensamento de Finot: “Fugir das tolices do russo que se assina Finot, e cujo nome antigo é João Finkelhaus, literato de segunda ordem, ignorantíssimo em antropologia e ciência em geral” (8).

Mas não era somente Sílvio Romero quem endossava o racismo no Brasil da época. E convém esclarecer que estávamos em pleno processo abolicionista e os escravistas e senhores de escravo tinham, como um dos suportes que legitimava a escravidão, a inferioridade biológica e cultural do africano. Euclides da Cunha, outro importante representante de nossa cultura dominante, repetia o mesmo pensamento racista. Sua posição em relação ao mestiço e ao negro não deixa dúvidas. Estuda o negro afirmando que “a raça dominada (negra) teve aqui dirimidas, pela situação social, as facilidades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humanidade extrema, sem as rebeldias do índio, o negro teve, sobre os ombros, toda a pressão da vida colonial” (9).

Para ele, o negro é a “besta de carga”, o “filho das paisagens adustas e bárbaras”; Palmares é “grosseira odisséia” e por isto a ação dos bandeirantes destruindo-o foi um benefício à nossa civilização; são “vencidos e infelizes”; o escravo negro é “humilde”, mesmo sendo quilomba, “temeroso”, “aguilhoado à terra”; são “foragidos”, a raça é “humilhada e sucumbida”. Para ele a desigualdade racial era um fato provado “ante as conclusões do evolucionismo”. O negro, como vemos, era o componente de uma raça inferior. O índio, por seu lado, não tinha capacidade de “se afeiçoar às mais simples concepções do mundo”. E, quanto ao mestiço desses cruzamentos, no seu “parênteses irritante” não há lugar para ele, é um desequilibrado, de um desequilíbrio incurável, pois “não há terapêutica para este embate de tendências antagonistas” (10).

A ideologia do colonialismo era, e ainda é, alimentada por toda uma literatura racista que nos vinha, ou nos vem, das metrópoles colonizadoras, para nos inferiorizar através da nossa própria auto-análise.

O racismo brasileiro quer um país “eugênico”

Passada a fase da abolição, com sua conclusão negativa para a população negra, e concluído o golpe militar republicano, com a persistência das oligarquias agrárias, o racismo brasileiro procura novas roupagens “científicas”. Na Europa o racismo entra em ascensão e transforma-se em força agressiva, agressividade que terá a sua conclusão na vitória do nazismo na Alemanha. No Brasil há uma recomposição ideológica do mesmo sentido. Essa tendência racista-elitista de nossa intelectualidade tradicional se revigora.

Na época da ascensão do nazismo e do fascismo, houve aqui no Brasil um trabalho ideológico racista feito pela nossa intelectualidade. Essa divulgação e essa prática concentraram-se na Liga da Higiene Mental, que congregou grandes nomes da ciência. Jurandir Freire Costa, autor do livro História da psiquiatria no Brasil, afirmou que o programa dessa entidade tinha como objetivo a intolerância e o obscurantismo. Fundada em 1923 e dedicada à prevenção de doenças mentais, longe de estabelecer uma abordagem científica de doença mental, adotava e enfatizava posições nitidamente ideológicas, elaborando propostas no sentido da adoção apaixonada e integral do arianismo, da superioridade racial, justamente as que prevaleceram na Alemanha nazista. Seus membros mais conspícuos passaram a defender na área profissional, e publicamente, a esterilização e a segregação perpétua de todos os indivíduos considerados loucos ou desequilibrados, segundo os critérios de sua avaliação; daí passaram a pregar o mesmo destino para as pessoas de “raça inferior”, ainda segundo os padrões que adotavam e que definiam como tais os não-brancos puros (11).

“Já se quis uma reforma “eugênica” dos salários: maiores para os brancos, menores para os negros”.

A pregação da Liga concentrou seus fogos particularmente na imigração: o Brasil deveria, nesse campo, adotar rigorosos critérios seletivos, em que se inseria a condenação à entrada de negros e asiáticos em nosso país – “rebotalho de raças inferiores” –, alegando que “já nos bastavam os nordestinos, os híbridos e os planaltinos miscigenados com negros”. Xavier de Oliveira, um dos membros da Liga, partidário do que entendia por eugenia, manifestava sua satisfação pela decadência incontestável e pela “extinção não muito remota” dos índios da Amazônia. A condenação ao fim próximo alcançava, também, os mestiços, cuja proibição de entrada no Brasil era encomendada pela Liga em 1928. Outra de suas reivindicações: a reforma eugênica dos salários, privilegiando os brancos.

Reivindicava também concessão de benefícios econômicos e financeiros às famílias que procriassem indivíduos “superiores”. A mais audaciosa foi a criação de Tribunais de Eugenia, que decidiriam sobre a esterilização e o confinamento de membros das raças inferiores. Em 1934 a revista Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, editada pela Liga, publicava a lei alemã de esterilização dos “doentes transmissores de taras”, com entusiástica introdução ao seu texto. “O mundo culto”, dizia a publicação, “tomava conhecimento da nova e grande lei alemã de esterilização dos degenerados”. A citada lei, de 14 de julho de 1933, era assinada por Hitler, além de Frick e Gurther, ministros do Interior e da Justiça, respectivamente.

Outro artigo esclarecedor dos Arquivos foi aquele no qual o seu autor procurava demonstrar que a Inquisição operara a partir de uma “filosofia eugênica”, pois as suas torturas e seus sacrifícios “tiveram uma consequência benéfica para a raça”. Em 1934, conta ainda Jurandir Freire Costa, a Liga associava-se à polícia em ações “sempre caracterizadas pela truculência”; a polícia fornecia, confidencialmente, nomes e endereços de alcoólatras, que eram, então, procurados pelos psiquiatras da Liga e internados em hospitais e centros ditos de saúde mental; ali eram submetidos a tratamentos de acordo com os métodos da Liga, que funcionou, ostensivamente, durante três décadas. Nela pontificavam médicos de renome, particularmente psiquiatras: representavam a ciência oficial, isto é, a ciência das classes dominantes, numa época em que o nazismo já se manifestava e apresentava a raça alemã como “raça eleita”.

Entre esses nomes famosos, figuravam Renato Kehl, presidente da Sociedade de Eugenia em 1929; Alberto Farani, presidente da Seção de Estudos de Cirurgia e Sistema Nervoso da Liga de Higiene Mental e chefe do serviço dos ambulatórios de Profilaxia Mental do Hospital Rivadávia Correia; Xavier de Oliveira, docente de Clínica Psiquiátrica da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro e médico do Hospital Nacional de Psicopatas.

À época da Liga de Higiene Mental, a década de 1920 e a primeira metade da década de 1930, surgiram e se ampliaram consideravelmente em nosso país, no campo quase virgem das ciências sociais, as teses de Oliveira Vianna, com uma obra toda ela de cunho racista, elitista e neocolonialista.

Assim como aconteceu na época de Sílvio Romero, a produção cultural dominante espelhava a alienação social e, consequentemente, cultural a qual estava submetida. A obra de Oliveira Vianna, em particular, é um marco significativo de como a intelectualidade brasileira deixa-se vergar ideologicamente e refletia em sua produção uma rejeição à sua própria condição de ser humano e social. Esta atitude representava, e atualmente ainda representa, uma negação e/ou fuga de nosso ser étnico, cultural e político, expressa através de uma produção estimulada pelo neocolonialismo; em outras palavras, o imperialismo tecnocrático.

Da derrota do nazismo ao aparecimento da Guerra Fria

Derrotado o nazismo, o pensamento de direita e especialmente o racismo entraram em recesso, e no âmbito das ciências biológicas e sociais houve toda uma rearticulação contra tais idéias. Foi o momento dos grandes pronunciamentos dos antropólogos e dos sociólogos, que repuseram a questão racial em termos científicos. Em 1950 divulgou-se uma declaração redigida na casa da Unesco por oito dos maiores nomes da antropologia e da sociologia mundiais, entre eles: Juan Comas, do México; Levi Strauss, da França; Morris Ginberg, da Inglaterra; A. Montagu (relator), dos Estados Unidos, e L. A. Costa Pinto, do Brasil. Nas suas conclusões diziam:

a) Os antropólogos só podem estabelecer classificação racial sobre características puramente físicas e fisiológicas.

b) No estado atual dos nossos conhecimentos, não foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos humanos diferem uns dos outros pelos traços psicologicamente inatos, quer se trate da inteligência ou do temperamento. As pesquisas científicas revelam que o nível de aptidões mentais é quase o mesmo em todos os grupos étnicos.

c) Os estudos históricos e sociológicos corroboram a opinião segundo a qual as diferenças genéticas não têm importância na determinação das diferenças sociais e culturais existentes entre diferentes grupos da espécie Homo sapiens, e as mudanças sociais e culturais no seio de diferentes grupos foram, no conjunto, independentes das modificações na sua constituição hereditária. Vimos produzirem-se transformações sociais consideráveis que não coincidem de maneira alguma com as alterações de tipo racial.

d) Nada prova que a mestiçagem, por si própria, produza maus resultados no plano biológico. No plano social, os resultados, bons ou maus, que alcançou são devido a fatores de ordem social.

e) Todo indivíduo normal é capaz de participar da vida em comum, compreender a natureza dos deveres recíprocos e respeitar as obrigações e os compromissos mútuos. As diferenças biológicas que existem entre os membros de diversos grupos étnicos não afetam de maneira nenhuma a organização política ou social, a vida moral ou as relações sociais.

Enfim, as pesquisas biológicas vêm escorar a ética da fraternidade universal; pois o homem é, por tendência inata, levado à cooperação e, se este instinto não encontra em que se satisfazer, indivíduos e nações padecem igualmente por isso. O homem é por natureza um ser social, que só chega ao pleno desenvolvimento de sua personalidade por trocas com os seus semelhantes. Toda recusa de reconhecer este laço social entre os homens é causa de desintegração. É neste sentido que todo homem é o guardião de seu irmão. Cada ser humano é apenas uma parcela da humanidade, a qual está indissoluvelmente ligado.

Depois desse documento saiu a Declaração de 1951, assinada por um grupo de antropólogos e geneticistas, que ampliava mais analiticamente o texto do primeiro, com as mesmas conclusões. Outro documento da Unesco, e nos parece que o último, redigido em Moscou, ainda é mais enfático na condenação ao racismo.

No Brasil a reação não é diferente. Em 1935 surge o Manifesto dos intelectuais contra o preconceito racial, em que se enfatiza o racismo como anticientífico:

“O movimento contra o preconceito racial visa apenas a combater as influências estranhas que nos querem arrastar para o turbilhão dos racismos truculentos, como também contribuir para todos os meios para o estudo dos problemas surgidos na própria formação étnica, tendo sempre em mira promover maior harmonia e mais fraternal cordialidade entre os elementos que vão caldeando na etnia brasileira”.

Assinam o documento, entre outros, Roquete Pinto, Maurício de Medeiros, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Hermes Lima, Leônidas de Rezende e Joaquim Pimenta. Em seguida podemos citar o Manifesto contra o racismo, da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, que foi aprovado por aclamação no dia 3 de setembro de 1942. O documento terminava nos seguintes termos:

“(…) queremos oferecer a todo o mundo civilizado a nossa magnífica filosofia no tratamento das raças como o maior protesto científico e humano e a maior arma espiritual contra as ameaças sombrias da concepção nazista da vida, este estado patológico de espírito que pretende envolver a humanidade numa espessa e irrespirável atmosfera de luto”.

Era a volta, também no Brasil, de uma ciência social que repudiava os postulados nazistas no julgamento das raças e a sua função e papel no processo civilizatório.

Já haviam se realizado, nessa ocasião, dois congressos afro-brasileiros: o primeiro em Recife, em 1934, por iniciativa de Gilberto Freyre; e o segundo em Salvador, por iniciativa de Edson Carneiro, em 1937. Nos anais de ambos podemos ver a preocupação de muitos congressistas em relação ao problema racial e o seu dilema no Brasil. Dos anais do primeiro podemos destacar as comunicações de Mário de Andrade, Alfredo Brandão, Gilberto Freyre, Adhemar Vidal, Jovelino M. de Camargo Jr, Mário Melo, Rui Coutinho, Rodrigues de Carvalho e outros. Nesses autores nota-se a preocupação de descartar a inferiorização do negro, via fatores biológicos (inatos), e ressaltar a escravidão como causa de nosso atraso. No segundo congresso vemos a preocupação de Edson Carneiro, Artur Ramos, Donald Pierson, Aydano do Couto Ferraz, Alfredo Brandão e Jorge Amado, cada um a seu modo procurando encaminhar o tema no mesmo sentido.

No terceiro congresso, realizado em 1982, as intervenções de Décio Freitas, Raimundo de Souza Dantas, Clóvis Moura, Gilberto Freyre e outros vão na direção de reabilitar o processo miscigenatório e destacar a participação social do negro em nossa história, posição contrária à dos eugenistas da década de 1930, que consideravam este fenômeno um fator de degenerescência da sociedade brasileira. A postura democrática em relação ao problema racial, que teve nos antropólogos e sociólogos da Unesco a expressão mais lúcida, começa em determinado momento, a ser contestada (12).

No plano político internacional, por outro lado, saía-se da política de colaboração dos quatro grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial – Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos – para o confronto da Guerra Fria. Assistia-se, ao mesmo tempo, os movimentos de libertação da África, dentro do processo de descolonização que se dinamizava. Nesse contexto político iniciam-se os ataques às conclusões dos cientistas da Unesco.

O mais relevante sintoma desse protesto e o que mais repercussão alcançou foi o de Arthur Jensen, professor de psicologia educacional da Universidade de Bekerley. Ele combate as conclusões da declaração da Unesco de 1951 e a de 1964. Afirma textualmente:

“O fato de que diferentes grupos raciais neste país tenham origem geográficas largamente diferenciadas e tenham tido histórias largamente diferentes, o que os submeteu a diferentes pressões seletivas econômicas e sociais, faz com que seja altamente provável que seus acervos genéticos difiram em algumas características comportamentais geneticamente condicionadas, inclusive inteligência ou capacidade de raciocínio abstrato. Quase todo o sistema anatômico, fisiológico e bioquímico investigado apresenta diferenças raciais. Por que seria o cérebro uma exceção?”

Já o professor de psicologia da Universidade de Londres e entusiasta de Jensen, H. J. Eysenck, baseando-se em testes de QI de jovens negros americanos, conclui pela existência de diferenças que, dentro da estrutura social atual (julgamentos de valor), significam inferioridade. Este cruzamento de resultados de testes com resultados de pesquisas de geneticistas é uma forma deliberada de confundir os fatos e chegar-se a uma conclusão preestabelecida. Por outro lado, todos sabem que as técnicas de medir a inteligência pelo nível do QI são cada vez mais contestadas.

A antropóloga Ruth Benedict, antes dos professores citados, já punha em dúvida essas técnicas, especialmente quando aplicadas sem os diferenciais culturais e sociais. Cita o exemplo de uma comparação feita entre brancos do Mississipi, Kentucky e Arcansas com negros de Nova Iorque, Illinois e Ohio. O QI dos brancos do Sul é inferior ao QI dos negros do Norte. Os resultados foram os seguintes:

Brancos Negros
Mississipi 41,25 Nova Iorque 45,02
Kentucky 41,50 Illinois 47,35
Arkansas 41,55 Ohio 49,50
Fonte: BENEDICT, Ruth. Raza: ciencia y política. México, Fondo de Cultura Econômica, p. 97.

Contra esses dados, H. J. Eysenck conclui um de seus livros dizendo:
“(…) O reconhecimento da natureza biológica do homem e o reconhecimento da desigualdade geneticamente determinada, associados inevitavelmente ao seu desenvolvimento, são um começo absolutamente necessário a qualquer tentativa de utilizar os métodos da ciência e a razão, num esforço destinado a nos salvar dos perigos (sic) efetivamente reais com que nos defrontamos” (13).

Racismo e determinismo genético

É exatamente em continuação a essa biologização da história e da sociedade que, na década de 1970, surge uma nova ciência: a sociobiologia, sistematizada por Edward Wilson, da Universidade de Harvard, e assim definida:

“(…) uma ideologia biológica que, empenhada em provar que todo comportamento humano é determinado geneticamente, como nos animais, deu uma roupagem moderna ao velho darwinismo social. A partir daí a bibliografia só faz aumentar a lista iniciada com o Macaco nu e a História natural da monogamia, do adultério e do divórcio, da antropóloga norte-americana Helen Fischer, para quem há uma lei natural, inscrita em nossos genes, que molda o relacionamento efetivo e o acasalamento entre os seres da espécie humana. Outro livro deste gênero é Personas sexuais, de Camile Paglia, que considera os papéis sexuais, o machismo e a feminilidade decorrentes apenas de nossa natureza biológica e não, também, das relações culturais, históricas, estabelecidas entre homens e mulheres; relações condicionadas pela peculiaridades das épocas e dos lugares onde ocorreram” (14).

“Como o velho racismo, a sociobiologia procura explicações biológicas para fenômenos sociais”.

Poderíamos citar mais de uma centena de obras da nova sociobiologia, mas o que se viu dá para perceber o renascimento do racismo via genética. O preocupante é que essas idéias não se exprimem apenas através de livros, mas de uma prática universitária na direção da dominação ideológica do conhecimento. Neste sentido estava prevista, na Universidade de Maryland, a realização da conferência intitulada “Fatores Genéticos no Crime: Descobertas, Usos e Implicações”, cujo prospecto referia-se ao “aparente fracasso do enfoque social para o crime” e sugeria a realização de pesquisas genéticas para o desenvolvimento de métodos capazes de identificar – e tratar quimicamente – criminosos em potencial. A Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos, por sua vez, publicou em novembro de 1992 o relatório Compreender e prevenir a violência, sugerindo a realização de mais pesquisas desse tipo e na mesma direção, com investigações sobre marcadores bioquímicos e tratamento com drogas para comportamentos violentos e anti-sociais, embora admitindo a escassez de evidências substantivas para uma propensão ao crime de per si. Como se pode ver é a volta disfarçada aos métodos eugênicos dos cientistas do III Reich. Analisando tal situação, escreveu Patrick Bateson:

“(…) as diferenças existentes entre as pessoas são muitas vezes pensadas como adaptações, como produtos da evolução darwiniana e, portanto, como atribuíveis a diferenças genéticas. Para o não biólogo, ‘diferença genética’ é sinonimo de inevitabilidade – o problema começa aí. Às pessoas claramente exploradas ou oprimidas é dito que devem aceitar essa situação porque nada podem fazer para alterar os seus genes. Esse tipo de idéias, que penso não serem geralmente partilhadas pelos cientistas que parecem dar-lhes credibilidade, é agora parte de nossa vida política. Por essa razão, e talvez injustamente, o determinismo genético tornou-se o grande tema de muitas discussões públicas sobre sociobiologia (…) A ênfase no egoísmo e na luta pela existência na evolução biológica teve um efeito de confirmação insidiosa na opinião pública (Bateson, 1989). A competição foi encarada como motor da atividade humana. A experiência nas universidades e nas artes é avaliada pelos mesmo parâmetros que supostamente resultam tão bem no campo do esporte ou na feira. Os indivíduos prosperam competindo e vencendo. Esta visão da natureza humana, popular entre os políticos de direita, foi justificada pelo recurso à biologia, e os próprios biólogos foram, por sua vez, algo influenciados pelo movimento de opinião pública. (…) Nenhum de nós sabe tudo, e a nossa tendência para as generalizações tolas está sujeita à rápida correção por outros cuja experiência tenha sido diferente (…) Tal como as coisas estão, o apelo à biologia feito pela Nova Direita não se dirige tanto ao corpo coerente de idéias científicas como a um mito confuso. Pensa-se na biologia como tratando da competição – e isso significa luta. O conceito darwiniano da sobrevivência diferencial nutre-se da crença na importância do individualismo (15).

Discutindo o lado ético da aplicação da sociobiologia, ou da biologia em particular, escreveu Hilton Japiassu:

“(…) aliás, nos dias de hoje, parece inegável o impacto social na biologia sobre a vida de cada um de nós. Ela não constitui apenas uma pesquisa sem freios da verdade, isenta de toda e qualquer crítica política ou moral. Já foi o tempo em que se podia declarar, como H. R. Oppenheimer, um dos responsáveis pela construção das primeiras bombas atômicas, que: ‘(…) nosso trabalho mudou as condições da vida humana; mas a utilização feita dessas mudanças é uma questão dos governos, não dos cientistas’. Ora, a palavra-de-ordem ‘a verdade pelo amor à verdade' torna-se hoje insustentável. Porque a ciência não é mais, e tampouco pode ser, considerada um domínio da exclusiva competência dos cientistas. Os trabalhos dos microbiologistas, por exemplo, que decodificaram as moléculas de ADN. Dão-nos a esperança de um controle genético de numerosos males surgidos no nascimento. Mas essas pesquisas já foram utilizadas, como testemunham os cientistas americanos Zimmerman, Radinsky, Rothemberg e Mayers, pelo governo dos Estados Unidos, para cultivar micróbios violentos destinados à guerra bacteriológica: ‘Essa pesquisa conduz a uma produção genética capaz de gerar subpopulações variadas, que poderão ser utilizadas pelos que detêm o controle tecnológico. Essas subpopulações poderão compreender soldados combativos, robôs resistentes para executar as tarefas físicas peníveis, ou filósofos-reis aos quais seriam transmitidos poderes hereditários”” (Autocritique de la science, Seuil, 1975) (16).

Estamos nas fronteiras do Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, quando um dos seus personagens define felicidade: “E esse, acrescentou sentenciosamente o Diretor, é o segredo da felicidade e da virtude – gostar daquilo que se tem de fazer. Este é o propósito de tudo: fazer as pessoas amarem o destino social do qual não podem escapar”. Estaríamos plenamente na era do determinismo genético.

O mundo apresentado por Huxley pode ser o objetivo desses cientistas. Mas a biologia genética, via engenharia genética, tem objetivos ainda mais seletivos e ideologicamente racistas. Sobre a visão de radicalismo epistemológico dessa postura científica, escreveu Hilton Japiassu:

“(…) os gigantescos progressos da biologia e da engenharia genética já tornaram possível uma outra forma de neo-eugenismo, desta feita bastante mais sofisticado. Diria que um neo-eugenismo fundado nas ciências biogenéticas já se anuncia, sem que possamos predizer de modo seguro quais serão as grandes opções para o futuro. O fato é que, nesse domínio, já existem sofisticados métodos permitindo a detecção dos ‘maus genes’, vale dizer, dos genes que, direta ou indiretamente, são responsáveis por certas doenças. Como nos lembra P. Tuiller, ‘(…) quaisquer que sejam os limites atuais da ciência médica em matéria de diagnóstico e de terapêutica, criou-se uma situação nova; doravante é possível concebermos em longo prazo um gigantesco empreendimento de purificação do capital genético da humanidade (ou de certas populações). O que levanta numerosas questões ao mesmo tempo técnicas e éticas’”. (Les passions du savoir, Fayard, 1988, p. 154) (17).

Em outras palavras, os detentores dessa sofisticada tecnologia podem programar, por exemplo, a cor da humanidade ou de alguns grupos ou populações (de acordo com os seus critérios de valor étnicos) considerados de “maus genes”. Se considerarmos a ideologia de quem monopoliza essa tecnologia, os negros e os não-brancos serão o objetivo desse projeto e tentarão projetar um mundo branco e de robôs.

A Europa ergue um muro contra não-brancos e pobres

Além deste racismo, há aquele que está se disseminando de forma crescente e cada vez mais agressiva. Em todo o chamado Primeiro Mundo (capitalismo imperialista central) ele vem se afirmando, quer por legislações que tornam indesejáveis no seu território membros de determinadas etnias, quer pela incorporação por parte de partidos políticos que endossam essa ideologia e, finalmente, pelo comportamento irracional de grande parte da população desses países. Na Inglaterra, na França, na Áustria, e especialmente na Alemanha, o racismo vem aumentando assustadoramente, especialmente neste último país, onde se manifesta através do neonazismo, cuja violência tem feito desaparecer centenas de vidas e cujos métodos de ação são idênticos aos de Hitler.

“Auschwitz Total, Hitler Superditador, Antiturcos à Prova: alguns títulos de jogos neonazistas”.

Esses países começam a proteger-se dos “genes maus”, representados pelas populações não brancas em geral, que procuram “invadir” o recinto intocável das nações brancas. Esta ideologia racista cresce juntamente com a idéia da unificação da Europa. Há movimentos de extrema-direita por toda parte, como a Frente Nacional da França e os republicanos e neonazistas da Alemanha. Nos países nórdicos, como a Noruega, há parlamentares de extrema-direita ostensivamente racistas. Segundo Harlen Désir, para alguém eleger-se basta dizer: “Chega de árabes, jamaicanos e turcos!” Na França, segundo ele, parte da população não aceita a fusão e a formação de uma nação plurinacional e sem barreiras. Esta resistência é sentida principalmente nas regiões fronteiriças, onde o discurso de Jean-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional, tem forte penetração.

Na Alemanha e na Suécia estão virando moda videogames distribuídos pela extrema-direita britânica, com os sugestivos nomes Jogar em Reblinka ou Quando o Gás Tiver Terminado o Trabalho Você Terá Ganho (18). O jogador consegue pontos matando judeus, turcos, homossexuais e ecologistas ao som de Deutshland über Alles (Alemanha acima de tudo), estrofe glorificada por Hitler e depois da guerra suprimida do hino nacional alemão.

Os ataques racistas se multiplicam e a ultradireita ganha terreno. Os governos da Comunidade Européia mantêm leis discriminatórias contra os imigrantes dos países não-europeus, apesar de lá se encontrarem há mais de 15 anos. Não é de estranhar que os jovens transformem o videogame em propaganda racista, pois não é apenas na Alemanha e na Suécia que a juventude assim se diverte. Na Áustria o fato se repete: Auschwitz Total… Hitler Superditador… Antiturcos à Prova… Segundo Sandra Lacut, da France Press, de Viena:

“(…) as escolas da Áustria e de outros países europeus foram invadidas por uma série de jogos de computador racistas e neonazistas, nos quais as crianças ‘dirigem’ campos de extermínio de judeus ou ‘compram’ gás para matar os imigrantes turcos. (…) Um estudo realizado pelo Ministério de Educação revela que na cidade austríaca de Lintz, onde Hitler passou parte de sua juventude, 39% dos jovens sabem que existem esses jogos neonazistas e 22% já os jogaram. Em Salzburgo, um em cada cinco jovens que tem um computador já viu publicidade neonazista em sua tela. Os videogames trivializam o Holocausto (assassinato em massa de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e dissidentes durante o nazismo) e incitam o ódio contra os judeus e turcos. O jogo Administrador de Campo de Concentração consiste em dirigir o campo de Treblinka (Polônia) e conseguir bastante dinheiro – por exemplo, arrancando os dentes de ouro dos judeus mortos – para adquirir o gás necessário para aniquilar os turcos. Outro, chamado Prova Ariana, coloca perguntas que revelam ao jogador seu grau de pureza racial. Aquele que for apenas ‘meio ariano’ pode se desforrar ‘matando comunistas’. De acordo com o grau de ‘impureza do sangue’, o jogador pode ser varredor ou limpador de privadas. E o ‘judeu’ é automaticamente atirado na câmara de gás”. O que à primeira vista parece ser apenas um detalhe vem demonstrar até que nível a propaganda neonazista está se aproveitando da nova tecnologia e da comunicação avançada nos mesmos moldes de Hitler. Segundo El País, os alemães e os belgas, de acordo com pesquisas feitas pela Comunidade Européia, são os cidadãos europeus que mais admitem os seus sentimentos racistas. Mas é na França e na Grã-Bretanha que a xenofobia e a violência racial se mostram mais intensas. Nos últimos quatro anos (a pesquisa vai até 1990) houve 20 assassinatos motivados por racismo na França. As vítimas eram norte-africanos de nacionalidade ou de origem.

Seis jovens cabeças raspadas (skin-heads) mataram a ponta-pés um tunisiano pai de quatro filhos. O policial que os deteve contou que aquilo que mais o chocou foi o fato de eles terem a sensação de nada terem praticado de condenável. Outros três jovens mataram a tiros um jovem harki (francês de origem argelina) “para se divertir”. Cerca de 76% das pessoas entrevistadas depois do assassinato dos três norte-africanos declararam: “O comportamento deles pode justificar as reações racistas”.

Em 1989 ocorreram, em Londres, em média seis incidentes racistas por dia. O Instituto de Estudos da Polícia estimou em sete mil os casos conhecidos de racismo no país, mas sugeriu que a cifra poderia ser dez vezes superior. Isto porque as vítimas temiam denunciar as agressões “por falta de confiança na polícia”. Uma mãe asiática suportou que seus filhos fossem esfaqueados e apedrejados – “Pensei que fosse um comportamento normal em relação aos estrangeiros” – e não procurou ajuda.

Na Itália, os ataques a estrangeiros estão adquirindo uma sequência e um furor inesperados, acalentados por uma crescente onda de imigrantes clandestinos. Na Espanha, a fúria contra marroquinos, portugueses e africanos é uma reação social em alta, mas a discriminação elege como presa também uma minoria espanhola: os ciganos. Estes últimos são hoje na Espanha cerca de meio milhão de pessoas e, como no caso dos negros nos Estados Unidos, sua dança e sua música são muito apreciadas.

Longe de melhorar, as coisas pioraram, assinala o volumoso estudo de oito capítulos elaborado e aprovado pela Comissão de Investigação do Racismo e Xenofobia criado pelo Parlamento Europeu, presidido pelo eurodeputado Glyn Ford. Nem a Comunidade Européia, nem os governos dos seus Estados-membros tomaram medidas para corrigir a situação alarmante, já denunciada em 1986. O mito da Europa como terra de asilo caiu por terra.

A Alemanha é o país onde os sentimentos racistas são mais claramente expressos. Em 1989 (e daí para cá este sentimento aumentou), cerca de 75% dos alemães ocidentais achavam que havia estrangeiros demais no país e 93% eram favoráveis a reduzir o número de trabalhadores imigrantes. Cerca de 60% da população da ex-Alemanha Ocidental admitem ter sentimentos anti-semitas. As pesquisas revelam, também, que um quinto dos alemães tem ódio racial contra africanos e asiáticos e opiniões muito negativas sobre os turcos.

O racismo como ideologia neocolonial

Falta agora nos referirmos ao racismo político dos países do chamado Primeiro Mundo (capitalismo central) contra os países dependentes que fizeram parte do antigo sistema colonial, que não foi desmontado até hoje. Uma das particularidades é que são, em sua totalidade, países que têm populações não-brancas.

À medida que se aguçava a luta entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, os norte-americanos concentraram suas atividades de dominação nas áreas incluídas em seu leque de influências. Com o pretexto de combater a subversão, estabeleceram governos subalternos externamente e ditatoriais internamente. Como norma, as ditaduras militares. Com isso consolidaram sua dominação neocolonial. Mas, por uma série de circunstâncias, na América Latina, Ásia, Oriente Médio e África houve movimentos que conseguiram se afastar de sua órbita. Por coincidência, movimentos de países que haviam participado da aventura colonial como dominados. Em outras palavras: surgiram principalmente em territórios onde houve o tráfico negreiro, a escravidão ou outras formas de trabalho compulsório típicas do sistema colonial. Grande parte de suas populações, ou melhor, de sua composição demográfica, é esmagadoramente não-branca.

Com a crise estrutural do sistema capitalista, na fase de imperialismo tecnocrático, houve a necessidade de uma reciclagem no processo e nas táticas de dominação. De um lado, para consolidar o seu domínio econômico e, de outro, como manifestação de racismo.

A primeira manifestação mais aguda deste comportamento foi a operação que os Estados Unidos organizaram contra a Líbia em 1981. Foi preparada uma operação de terrorismo de Estado para assassinar seu líder. Depois de várias operações de agressão militar, nas quais foram abatidos dois aviões líbios (em território líbio), constatou-se que um dos filhos de Kadafi havia sido assassinado. Isto porém não sensibilizou a opinião pública mundial. A mídia criou para consumo internacional a imagem de que Kadafi era o líder do terrorismo internacional, o que os fatos desmentiam.

Depois veio a invasão da ilha de Granada. A pretexto de obedecer os apelos de uma entidade fantasma, os norte-americanos ocuparam a ilha, assassinaram seu presidente e centenas de seus habitantes. A opinião internacional não se mobilizou nem denunciou o crime, possivelmente por se tratar de uma país de negros.

Registramos também a invasão do Panamá, com o pretexto de combater o narcotráfico. Em 1989 a 82ª Divisão Aerotransportadora dos Estados Unidos invadiu seu território, prendeu o presidente Noriega, sequestrou-o e levou-o para ser condenado pelos tribunais norte-americanos. A intervenção norte-americana destruiu a economia do país, tentou extinguir o Exército e colocou um de seus representantes como chefe do Estado. Mas a opinião pública não se emocionou. Pelo contrário. Toda a imprensa mundial teceu elogios ao ato. O Panamá é também um país de negros, mestiços e índios.

Por fim, os casos mais recentes: a Guerra do Golfo contra o Iraque, a invasão da Somália, a tentativa (que persiste) de ocupar o Haiti e os massacres de Ruanda passam como acontecimentos sem relevância. As razões apresentadas são de “ação humanitária”, “restauração da democracia”, “combate ao narcotráfico”, pois não cola mais o “perigo comunista”.

É uma reciclagem hipócrita do antigo sistema colonial, que se reestrutura no neo-colonialismo tecnocrático, racista. Para justificá-lo utilizam não só a sócio-biologia, da engenharia genética e das hipóteses que procuram demonstrar a existência de raças inferiores, mas também canhões, aviões e tanques de guerra.

Estamos às vésperas do terceiro milênio. Vamos entrar numa época em que as ordenações sociais serão radicalmente reformuladas. Nesse processo as atuais nações atrasadas, dependentes e espoliadas, vindas do antigo sistema colonial, assumirão um papel novo, resgatando o passado de dominação. E o realinhamento social também será étnico, pois as raças não-brancas habitam por herança desse sistemas as regiões espoliadas. Esse é o desafio do milênio que se avizinha e que não será outro senão a realidade do socialismo em dimensão planetária.

* Sociólogo e escritor, examinador de pós-graduação da Universidade de São Paulo e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA).

Notas
(1) LINTON, R. Estudio del hombre. México, Fondo de Cultura Económica, 1942, p. 69.
(2) DAVES, Alain. “A ideologia do racismo”, in A igreja e o racismo. Rio de Janeiro, Vozes, 1982, p. 18-19.
(3) BENEDICT, Ruth, Raza: ciência y política. México, Fondo de Cultura Econômica, 1941, p. 26.
(4) Citado por Aimé Césaire in Discurso sobre o colonialismo. Lisboa, Sá da Costa, 1974.
(5) Aceitando a teoria de de L. Levy Bruhl como cientista, o escritor Jamil Halmansur Hadad assim procura caracterizar o homem brasileiro: “(…) o caráter primitivo do (brasileiro) aparece às vezes com outros nomes, porém ao primitivismo podem ser reconduzidos muitos dos sestos e taras nacionalmente citadas (…) Acabamos por verificar no Brasil e pelos tempos afora um dos traços da mentalidade primitiva classicamente apontados em Levy Bruhl: a dificuldade de acreditar no invisível. O próprio Deus se viabiliza como as almas dos familiares: daí a difusão extrema do espiritismo, principalmente prestigiadas as sessões de materialidade (…) O mesmo conceito poderia ter sido formulado por um Anchieta entre os nossos selvagens. Daí que desde os primórdios da nacionalidade, os elementos religiosos passaram a hibridar-se poderosamente de estratos profanos. E não só com índios antropófagos como com brasileiros urbanos e civilizados (…) Aponta Levy Bruhl no primitivo: a ausência em princípio de qualquer sentido de ligação causal profunda. Aí a gênese de todo o nosso tremendo repositório de superstições e milagres: as salas cobertas de ex-votos: peitos de cera, pernas, pescoços e olhos, às vezes sangrando, outras com tumores (…) Manifestações de primitivismo no predomínio do exterior sobre a essência: o sestro do fogo de artifício do aparato, do farol (…) O que impressiona fundamentalmente a Ewbank são os nossos fogos de artifício. Rojões e buscapés num esplendor ígneo de fazer o norte-americano babar (…) Imaginemos que, se se disser que somos realmente o país do farol, isto corresponderá a uma validade das mais estranhamente arraigadas da nossa psique mais íntima e mais tradicional. Preponderância do acessório em relação ao substancial. E do exterior em detrimento do profundo. Da cortiça em detrimento da medula. Amor portanto ao esplendor efêmero da fascinação inteiramente rápida, ofuscante mas transitória. E que marca todas as vicissitudes de nossa vida nacional” (Hadad, Jamil Halmansur: “Ewbank e a sua descoberta do Brasil”, in Anhembi, no ano VII, n. 78, maio de 1957, p. 496-504.)
(6) MARX, K. e ENGELS, F. Le manifest communiste Paris, Alfred Costes, 1935, p. 62. Evidentemente quando Marx e Engels usam o termo “bárbaro” não há nenhum julgamento de valor na expressão. Referem-se a uma fase de periodização da civilização, segundo o marxismo. É uma fase pré-capitalista, que Engels dividiu em três períodos: barbárie inferior, que se inicia com a introdução da cerâmica; fase média, que começa com a domesticação de animais e no Oeste da Europa com o cultivo de hortaliças por meio da irrigação e pelo emprego do tijolo (secado ao sol) e da pedra nas construções; e a fase superior, que se inicia coma a fundição do minério de ferro e passa à civilização com a invenção da escrita alfabética e seu emprego nos registros literários. Nada tem a ver, portanto, com a conotação pejorativa que as nações capitalistas colonizadoras davam àqueles povos que eram por ela colonizados. Era uma classificação objetiva baseada na etapa do desenvolvimento cultural. Uma das etapas pré-capitalistas da evolução da humanidade. (Ver ENGELS, F. “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, in Marx, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas, São Paulo, Alfa-Ômega, s/d e TERRY, Emmanuel: O marxismo diante das sociedade “primitivas”, Rio de Janeiro, Graal, 1979.)
(7) Sobre a obra de Finot ver BENEDICT, R., op. cit.
(8) ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira, Rio de Janeiro, José Olympio, 1943, vol. 5, p. 671.
(9) CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1933, passim
(10) CUNHA, Euclides da., op. cit.
(11) Este capítulo é resumo de um trabalho de Nelson Werneck Sodré. O fascismo cotidiano, Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990.
(12) Ver Estudos afro-brasileiras, prefácio do Roquete Pinto. Rio de Janeiro. Ariel, 1935. Novos estudos afro-brasileiros, Gilberto Freyre et alii, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937. O negro no Brasil (vários autores) Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1940. Os afro brasileiros, Roberto Motta (org.), Recife, Massangana, 1985.
(13) EYSENCK, H. J. A desigualdade do homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 252.
(14) RUY, José Carlos e BERCHT, Verônica: “A busca infrutífera do gene de Caim”, in Princípios, n. 29, maio/junho de 1993.
(15) BATESON, Patrick. “Sociobiologia e política humana”, in ROSE, Steve e
APPIGNANESE (org.) Para uma nova ciência, Lisboa, Gradina, 1989, p. 105-106, 112-113.
(16) JAPIASSU, Hilton. “A origem pseudo-científica do racismo”, in As paixões da ciência, São Paulo, Letras e Letras, 1991, p. 255.
(17) JAPIASSU, Hilton, op. cit., p. 257.
(18) LACUT, Sandra, “Videogames racistas e neonazistas viram mania em escolas da Áustria”, FSP, 17-08-1991.

EDIÇÃO 34, AGO/SET/OUT, 1994, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38