segunda-feira, 30 de junho de 2014

Datafolha confirma: quem foi ao Mineirão torcer pelo Brasil é a elite branca

Entre os entrevistados nos acessos ao estádio, 67% se declararam brancos e 90% disseram pertencer às classes A ou B. Números se mostram distantes da realidade do Brasil



Publicado: revista forum com informações da Folha de S. Paulo
O Datafolha não deixa dúvidas: quem foi ontem (28) ao Mineirão, em Belo Horizonte, torcer pela Seleção Brasileira é a chamada “elite branca”.

O instituto entrevistou 693 pessoas nos acessos ao estádio, das quais 67% se declararam brancas. Quando questionadas sobre condição econômica, 90% disseram pertencer às classes A ou B.

Em um panorama geral, 61% dos entrevistados eram da classe B; 29%, da classe A; e apenas 9%, da classe C. Os números se revelam distantes da realidade do Brasil, onde este último estrato social corresponde a 49% da população

A torcida da “amarelinha” no Mineirão também não representa o país em termos raciais. Entre os brasileiros, 41% se consideram pardos e 15%, negros. Na arena, os pardos não ultrapassaram os 24%, e os negros eram apenas 6% – menos da metade do que indica o nível nacional.

Em relação à média de aprovação do governo de Dilma Rousseff (PT), os índices mais uma vez divergem. Dentre os que acompanharam a partida in loco, mais da metade (55%) classifica a gestão da presidente como ruim ou péssima, número diferente do que aponta uma pesquisa realizada no início de junho, em que 38% da população o qualificaram como regular e outros 33%, como bom ou ótimo.

Quando o assunto é identidade nacional, 91% dos entrevistados no estádio disseram ter mais orgulho do que vergonha de ser brasileiro. Em levantamento feito no país todo no começo de maio, a parcela dos que afirmaram o mesmo era de 77%.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Gratidão Lupita Nyong’o

por* Hanayrá Negreiros
publicado:blogueirasnegras.org
Para mim esse texto é um agradecimento meu à Lupita Nyong’o.

Faz tempo que eu não escrevo, tinha perdido a vontade, ou talvez não tivesse nenhum assunto que me fizesse pensar com as palavras, até conhecer a Lupita, moça preta, da pele bem escura, que conseguiu mostrar a nossa beleza pro mundo. Obrigada Lupita!

A conheci no Pinterest, site de referências de imagens, onde a gente consegue montar painéis com diferentes temas, no meu caso, gosto muito e estudo a estética da mulher negra, e comecei a ver nesse site muitas fotos dessa até então desconhecida moça. De primeira, achei ela linda e com um tipo físico parecido com o meu, o que me animou bastante! Eu ainda nem tinha assistido 12 Anos de Escravidão e já gostava dela, gostava porque ela era colorida, literalmente, começando pelo tom de pele, que diga-se de passagem, a gente não vê muito por aí estampado em revistas de moda, nem em comerciais de TV, nem em nada, e depois por ela se permitir ser colorida, ela usava cores alegres, que contrastavam com a pretura da sua pele, nas roupas, nas maquiagens.

Não sei vocês, mas para mim, usar cores já foi difícil, houve um tempo em que usar um batom colorido era impossível, achava que as cores não combinavam com pele preta. O que pode parecer besteira, não é, essa minha insegurança (e acredito que seja de outras mulheres também) reflete o quanto nós, negras, infelizmente ainda sofremos com a falta de referências, essas que crescemos sem.

A falta de mulheres parecidas com a gente, na mídia, seja ela TV, revistas e o que mais possa servir para ajudar a formar uma identidade estética negra, (não para seguirmos à risca, porque eu realmente acredito que não será uma revista que vai me falar o que usar), nos anula enquanto mulheres e consumidoras. E com certeza o Oscar de Lupita representa muito mais do que o resultado de uma linda atuação, representa uma mudança não só estética, mas política também.

E com a falta de tudo isso, acredito que não só pra mim, mas para muitas outras mulheres negras, tanto com a pele escura feita a dela, ou mais clara (porque temos vários tons), a chegada da Lupita, de alguma forma, nos fez sentir assim, representadas. Como se Lupita dissesse por nós – “olha, a gente tá aqui também!”

Porém, toda essa minha gratidão, só poderia ser completa pelo que Lupita representa não só pela beleza dela, ou pelas roupas e maquiagens que ela usa, mas pelo discurso dela também, por ela dizer que não há vergonha na nossa beleza, que somos bonitas também. Imagino quantas meninas negras se sentiram mais felizes vendo uma Lupita, vendo uma Alek Wek, e outras mulheres negras que nos representam. E já aviso, precisamos de mais pretas nas TVs, nos filmes, nas passarelas, espero que não pare na Lupita. Isso me faz pensar nas outras mulheres negras que vieram antes de Lupita ou Alek, me faz pensar em Carolina Maria de Jesus, que com suas palavras e jeito de contar o que se passava na favela, fez com a enxergassem, como mulher, preta e periférica. Recentemente, li um texto publicado aqui no BN escrito por Dulci Lima em homenagem ao centenário de Carolina, onde é contada a importância dessa mulher para nossa sociedade. E penso, como me sinto também agradecida por poder ler o que essa mulher se pôs a escrever.

Penso também em Zezé Motta, Ruth de Souza e tantas outras mulheres, que vieram antes, e que de alguma forma também ajudaram na minha formação enquanto mulher preta. O meu muito obrigada!

Por hora fico por aqui, pensando nos próximos textos a serem escritos e nos próximos batons coloridos a serem usados, porque como bem disse uma vez, uma moça bem preta e bonita “não existe vergonha na beleza negra”.

Hanayrá Negreiros é formada em Moda, adora escrever sobre estética da mulher negra, costurar e fazer ilustrações. Não vive sem um doce, chocolate de preferência!

Prêmio Nacional em Direitos Humanos



inscrições no link abaixo:

http://www.educacaoemdireitoshumanos.sdh.gov.br/

O Ministério da Educação – MEC por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – MEC/SECADI, em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR, sob a coordenação da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura – OEI, com o apoio do CONSED e da UNDIME e patrocínio da Fundação SM, instituiu o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos por meio da Portaria Interministerial n° 812, de 2 de julho de 2008.

Em sua primeira edição, em 2008, o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos objetivou a identificação e valorização de experiências educacionais significativas para a promoção de uma cultura de direitos humanos, envolvendo o conhecimento e a defesa dos direitos fundamentais, atividades de respeito às diversidades e de práticas democráticas no ambiente educacional. Nesta oportunidade, foram 350 experiências inscritas. São Paulo foi o estado com o maior número de trabalhos inscritos (86), seguido por Rio Grande do Sul (40), Rio Janeiro (38) e Minas Gerais (26). Participaram 35 Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, 153 Escolas Públicas e 65 Escolas Privadas de Educação Básica, 92 Departamentos ou Faculdades de Instituições de Educação Superior Públicas e Privadas.

Em 2010, na segunda edição do Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos manteve o mesmo objetivo; foram 220 projetos inscritos em sua segunda edição. A maioria advinda da região Sudeste, que reúne 93 trabalhos. A região Norte do país contou com 7 projetos, e 39 são do Nordeste, 41 do Centro-Oeste e 48 do Sul.

Na terceira edição do Prêmio, em 2012, inscreveram-se mais de 250 trabalhos vindos de todos os estados da federação, apresentados por instituições públicas e privadas de educação básica e superior, além de secretarias estaduais e municipais de educação.

Em 2014 permanecem as mesmas categorias das edições anteriores, sendo que, nesta quarta edição do Prêmio, a menção honrosa será outorgada a experiências especificamente realizadas na área da educação indígena. Entende-se por essa temática todas as atividades de formação de educadores/as para uma atuação em Direitos Humanos vinculada à educação indígena.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

CENSO DO CNJ: SÓ 1,4% DOS JUÍZES SE DIZEM PRETOS

Primeiro Censo do Poder Judiciário, feito de forma voluntária por servidores e magistrados de todo o país, revela que 14% dos magistrados se declararam pardos; 1,4% pretos e apenas 0,1% se identificaram como indígenas; perfil da magistratura é o de homens brancos (84,5%), com média de idade de 45 anos, casado e com filhos
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André Richter - Repórter da Agência Brasil

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou hoje (16) o resultado do primeiro Censo do Poder Judiciário, feito de forma voluntária por servidores e magistrados de todo o país. Os dados apontam que o perfil da magistratura é o de homens brancos (84,5%), com média de idade de 45 anos, casado e com filhos.

Conforme a pesquisa, 14% dos magistrados se declararam pardos; 1,4% pretos e apenas 0,1% se identificaram como indígenas. De acordo com a classificação racial usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os pretos e pardos, somados, formam o grupo de negros.

O censo teve participação de 60% (170,7 mil) dos servidores do Judiciário e de 64% dos juízes (10,7 mil). Apesar de poucos juízes afrodescendentes na Justiça, em dois anos, o percentual de negros que ingressaram na carreira cresceu de 15% para 19%.

A pesquisa também mostra que 64% dos juízes são homens e 36% são mulheres. A presença de magistradas é maior na Justiça do Trabalho (47%). Do total de juízas que responderam ao censo, 65% afirmaram que a vida pessoal é afetada pela carreira em relação aos colegas homens. Pelo fato de ser mulher 30% das juízas informaram que vivenciaram reações negativas.

O Censo Nacional do Poder Judiciário teve início em agosto do ano passado e foi elaborado para definir o perfil dos magistrados e de servidores. De acordo com o CNJ, o censo terá importância para a formulação de políticas de recursos humanos e públicas do Judiciário.

Unegro propõe debate sobre a vaga de Joaquim Barbosa


A presença do ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte do país, em que pese todas as controvérsias que ele criou, é importante para os negros brasileiros e um representante da raça deve ser nomeado para seu lugar. Esta é a posição da União dos Negros pela Igualdade (Unegro) do Distrito Federal, ao anunciar mobilização do movimento negro para influenciar a presidenta Dilma Rousseff pela indicação de outro nome negro para ocupar a vaga de Barbosa.
A Unegro-DF anunciou vai buscar apoio de outras entidades para tentar influenciar na decisão da presidenta.“O ministro Joaquim Barbosa exerceu uma carreira muito controvertida no Supremo e, do ponto de vista do papel de juiz, deixou a desejar. Mas a sua presença ali foi emblemática para nós negros, muito representativa e nós achamos que a presidente Dilma deve seguir o mesmo pensamento do ex-presidente Lula indicar um negro para a vaga do Joaquim Barbosa”, afirmou Santa Alves, presidente da Unegro-DF (foto).

Ela anunciou que a entidade vai deflagrar esta semana um debate entre os representantes do movimento negro e dos movimentos sociais para buscar influenciar na decisão da presidenta.

O presidente da Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) do Distrito Federal, Aldemir Domício, já anunciou que fará parte da mobilização pela manutenção de um representante negro no STF.

“A CTB vai se engajar nesta campanha. Nós entendemos que a presença de um negro no Supremo foi uma conquista histórica para um segmento social que representa mais da metade da população. E nós queremos manter esta conquista”, afirmou.

Outra entidade que quer debater o tema é a Comissão de Jornalista pela Igualdade Racial (Cojira), entidade ligada ao Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal. Internamente seus membros vêm debatendo o significado de um negro na mais alta corte do país. A entidade também defende a manutenção da conquista.

A decisão caberá a Dilma, que por sua vez deverá consultar o ministro Ricardo Lewandowski, que assumirá a presidência do Supremo após a saída de Barbosa no final deste mês.

Da Redação em Brasília
Fonte: Brasil Notícia

Sobre Negritude e amor próprio


por Mariana Barbosa
publicado: blogueirasnegras.org

O amor, tal qual a militância, é um exercício diário. E amar a nós mesmas talvez seja a modalidade mais difícil desse exercício. Tenho certeza de que aquele momento de crise em que a gente se sente um lixo e pensa que mudar tudo; da cor do esmalte à forma de se vestir, seja a solução; quando, na verdade, o que precisa mudar é a nossa percepção sobre nós mesmos; aconteça com todos. Homens, mulheres, negros, brancos, jovens, ou velhos.
No entanto, esse estigma da deturpação da auto imagem incide diferentemente sobre as nuances de nossas peles negras.

Como sempre repito em meus textos; “o racismo trabalha com a desumanização dos negros” e esse é um espectro que sempre que nos olhamos no espelho se faz presente.

A adolescência é a época mais cruel à nós, meninas negras. Não ser padrão de beleza é complicado sempre, mas numa época em que a estamos mudando fisicamente, tendo as nossas primeira experiências “amorosas” e descobrindo a nossa sexualidade, não nos encaixar nesses tais padrões cobra um preço muito alto. Por mais que estejamos inseridas na panelinhas típicas de adolescentes, estamos sempre à margem. Somos sempre a amiga super legal da menina mais gata da turma.

Não que isso só aconteça com meninas negras, mas de fato, conosco é regra; principalmente quando estamos inseridos num espaço de maioria branca, como as escolas particulares.

Mas a boa notícia é que isso passa e se transmuta à medida que nos inserimos em outros espaços. Não ser a reprodução da beleza padrão se torna uma bandeira à mais à militância.

Um cabelo black não é mais só um cabelo afro. Um cabelo black é um símbolo de resistência; uma bandeira em riste pelo empoderamento de outras mulheres negras. Um nariz que não é considerado belo, um corpo que não se encaixa no tamanho exposto nas prateleiras passam a encontrar lugar num mundo que parece não estar pronto pra nos encarar de frente. E nessa onda de amor próprio nos jogamos.

Chegar à universidade é libertador. Parece que naquele universo paralelo há um lugar de destaque para que nós possamos exercer esse amor por quem nós somos, de maneira, livre, plena e independente.

Assim, construímos um forte, um muro de auto estima sob o qual lutamos contra o racismo nas mais variadas esferas.
Nos tornamos, então, a “neguinha metida”; aquela que não sabe o “seu lugar”, que passa por cima de conceitos e locais de fala pré-estabelecidos aos quais insistem em nos submeter.

E isso é positivo!

Significa que estamos incomodando e o incômodo é o primeiro passo rumo a uma mudança.

Todavia, somos seres humanos comuns e estamos sujeitas a autos e baixos. Há dias em que; mesmo sabendo de nosso poder, enquanto sujeitas revolucionárias que buscamos ser a cada dia, no combate à invisibilização de nossas caras pretas, simplesmente a vida nos dá uma rasteira.

E quando isso acontece e nós caímos; o momento imediatamente anterior a nos levantarmos é o que me preocupa tanto.
Sempre que a nossa auto confiança dá uma vacilada, parece que esse muro de empoderamento se rompe e voltamos a nos tornar reféns das marcas do racismo. Por mais que tentemos tapar esse buracos, quando nos sentimos invisíveis ou subjugadas, recorremos ao espelho dos padrões e tudo que vemos é uma figura que não se encaixa. E essa imagem é capaz de corromper a mais forte das mulheres negras. Parece que estamos de volta à margem, sendo comparadas à branquitude que não nos traduz e à qual jamais pertenceremos.

É um sentimento desesperador.

É como retroceder e sucumbir ao apelos de uma sociedade racista que não nos quer.

No fim do dia, lutar contra a PM racista, debater madrugada à dentro com racistas no facebook e ler os comentários das matérias sobre violência racial na Veja; parece bem mais fácil do que lidar com os fantasmas que a violência racial – simbólica e/ou concreta – nos faz carregar.
Mariana Barbosa*

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília - UnB Membro da Comissão de Política Estudantil do CADir-UnB Militante do Coletivo Maracatu Atômico

A recepção de fanon no Brasil e a identidade negra

por: Antonio Sérgio Alfredo Guimarães*
publicado: Novos Estudos


Foto: Frantz Fanon

Frantz Fanon é um nome central nos estudos culturais, pós-coloniais e africano-americanos, seja nos Estados Unidos, na África ou na Europa. Falamos muitas vezes de estudos fanonianos, tal o volume de estudos que têm a sua obra como objeto de reflexão. Meus colegas e alunos negros brasileiros devotam a ele a mesma admiração, respeito e devoção que seus irmãos de cor africanos e do hemisfério norte. No entanto, quando busquei material para escrever este artigo, deparei-me com um silêncio impactante, em revistas culturais ou acadêmicas, que perdurou até meados da década de 1960.

No Brasil, como em toda a parte, Fanon entrou na cena cultural quando a violência revolucionária estava na ordem do dia, embora tenha sido lido timidamente, ombreado por guerrilheiros pensadores como Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Torres; ou por lideranças negras como Stockley Carmichael, Malcom X e Eldridge Cleaver; ou Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Kwame N'Krumah. Mas, passada essa fase, seu pensamento, ao contrário do que ocorreu alhures, não foi objeto da reflexão exegética e crítica por parte de universitários e acadêmicos brasileiros, estabelecidos em centros de estudos.

OS ANOS 1960 E A EPIDEMIA SARTRE

O pensamento de Fanon chega ao Brasil como chegaram todas as idéias novas - em livros europeus - e numa época em que o marxismo e o existencialismo disputavam o proscênio da cena cultural e política brasileira.

Uma leitura atenta das principais revistas culturais brasileiras dos anos 1950 não me rendeu nenhum conhecimento sobre a recepção de Fanon. É como se a publicação de Peau noir, masques blancs (1952) tivesse passado despercebida. A Anhembi, de São Paulo, publica, entre 1953 e 1955, todos os estudos de relações raciais entre brancos e negros em São Paulo, frutos do projeto coordenado por Roger Bastide e Florestan Fernandes, além de algumas reações a estes estudos. O próprio Bastide, depois de retornado a Paris, em 1954, escreve regularmente críticas e comentários a livros que estão sendo lançados na Europa, principalmente na França; mas não menciona Fanon em sua atividade recensória. Nada encontramos também na Revista Brasiliense.Clóvis Moura, Florestan Fernandes e Octávio Ianni escrevem na revista sobre temas negros (revolta dos malês, relações raciais, poesia), mas sem mencionar o autor martinicano. Sérgio Milliet, em 1958, faz uma resenha abrangente da poesia negra e, como não podia deixar de ser, cita os poetas da négritude e Sartre. Apenas.

O Brasil começa a se familiarizar com as idéias de Fanon um pouco antes de sua morte, mais precisamente durante a estadia de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir no país, entre agosto e setembro de 1960. Sartre e Beauvoir chegam ao Rio de Janeiro, vindos de Havana, para promover a solidariedade internacional necessária para sustentar a revolução cubana e a guerra de libertação da Argélia. Certamente a intelectualidade brasileira, tão próxima do que se passava em Paris, acompanhava, através de Les Temps Modernes, as posições anticolonialistas do filósofo. A sua peregrinação à China, a Cuba e ao Brasil tinha claramente um caráter militante. "O colonialismo é um sistema que nos infecta com seu racismo", escrevera Sartre, em 1956. A sua militância vai além das palavras: durante sua estada no Brasil, Sartre passará a responder a um processo criminal em Paris, junto com outros 121 intelectuais que assumiram abertamente a cooperação com a Frente Nacional de Libertação da Argélia.

Na década anterior, o jornal negro Quilombo publicara trechos de seu Orfeu Negro, a mostrar que o "racismo anti-racista" dos negros francófonos encerrava em si uma nova dialética de libertação. No entanto, não há registro de que Sartre tenha se encontrado com Abdias do Nascimento ou com qualquer outra liderança política negra brasileira. Sartre estava entre nós, defendendo as mesmas posições antiimperialistas dos comunistas e da esquerda católica com relação a Cuba e à América Latina, à Ásia e à África; e a luta anti-racista e anticolonial dos africanos começava a ficar mais próxima.

Não tenho informações sobre se Sartre citou Fanon em suas conferências, mas as idéias do jovem martinicano causavam grande impressão sobre Sartre à época, como se pode inferir dos diários de Beauvoir. Ao recordar-se de uma visita a um barracão em Ilhéus, por exemplo, ela nota "os homens de pele e cabelos escuros nos olhavam, machadinhas em mãos, o ódio nos olhos". A revolução no Terceiro Mundo, como pensava Fanon, deveria ser obra de camponeses e não desses trabalhadores das docas que também eles viram em Ilhéus, "musculosos, saudáveis, que sabiam rir e cantar". "Comparado aos camponeses, o proletariado se constitui no Brasil uma aristocracia", anotou Beauvoir2. Sartre também chamou atenção para a segregação que os negros brasileiros sofriam, à medida que percebia que seus interlocutores eram todos brancos das classes média e alta:


Jamais vimos nos salões, nas universidades, nem nos auditórios um rosto chocolate ou café com leite. Sartre fez essa observação em voz alta durante uma conferência em São Paulo, depois se corrigiu: havia um negro na sala - um técnico de televisão3.

Evidentemente, Sartre e Beauvoir não encontraram no Brasil quem pensasse que os negros brasileiros fossem vítimas de racismo; encontraram, ao contrário, o discurso unânime de que a segregação dos negros era econômica e a luta libertadora deveria ser de classes. Não pareceram plenamente convencidos, pois, segundo Beauvoir, "o fato é que todos os descendentes dos escravos continuaram proletários; e que, nas favelas, os brancos pobres se sentem superiores aos negros". Talvez. Mas o sucesso de Sartre no Brasil se deveu às suas conferências sobre o colonialismo e a necessidade histórica das lutas de independência dos povos do Terceiro Mundo.

O anti-racismo e o anticolonialismo de Sartre conviveram, no Brasil, com o republicanismo de sua audiência - a classe média letrada de estudantes, escritores e intelectuais. O Brasil, para Sartre, não era um simples transplante europeu como os Estados Unidos; afinal, "todos os [brasileiros] que encontrei sofrem a influência dos cultos nagô"4. A assimilação e a integração não pareciam aqui engenhosos discursos de dominação; ao contrário, pareciam ter amulatado o país, como queria Freyre e também pensava Jorge Amado, seu anfitrião. Aliás, Sartre e Beauvoir já estavam de há muito familiarizados com as idéias de ambos. Devemos lembrar que extratos de Cacauhaviam sido publicados em Les Temps Modernes5, assim como uma resenha elogiosa da edição francesa de Casa-grande e senzala (Pouillon, 1953), e que Quincas Berro D'Água seria publicado na mesma revista depois de seu retorno a Paris6.

Para compreender a posição de Sartre é preciso lembrar que o mundo do pós-guerra polarizara-se rapidamente em dois eixos. No primeiro, a contraposição se dera em torno da descolonização e do racismo, que opunham o Norte ao Sul. Sartre participara ativamente da construção desse pólo. Escrevera o prefácio da Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de la langue française (1948, 1949), em que abraçara a negritude, o movimento de afirmação identitária e de reconstrução cultural, étnica e racial de africanos e afro-caribenhos, ainda que fazendo uso da velha concepção de racismo como doutrina - a negritude, segundo ele, seria um racismo anti-racista. Desde os anos 1950, porém, passara a acolher nas páginas de sua revista uma nova concepção do que era o racismo no pós-guerra: aquele, que apesar de negado doutrinariamente, era realizado e vivido nas práticas sociais e políticas de colonizadores e colonizados. No segundo eixo, a polarização se dera entre os intelectuais que defendiam a ordem burguesa e liberal, por um lado, e aqueles que se faziam porta-vozes dos interesses operários e camponeses, a partir do marxismo ou de outras ideologias. O primeiro eixo é marcado pelas raças e pela descolonização; o segundo, pela luta de classes e pelo antiimperialismo. Ora, Sartre e Fanon representavam a fusão do antiimperialismo, do anti-racismo, da descolonização e das lutas de classes.

No Brasil dos anos 1950 e 1960, entretanto, esses dois eixos não se encontravam: liberais e marxistas, brancos e negros, igualmente, tinham o mesmo projeto anti-racista de construção de uma nação mestiça, brasileira e pós-européia, que ultrapassasse a polaridade entre brancos, de um lado, e negros e indígenas, de outro. O que os dividia era apenas a defesa da ordem burguesa ou a aposta na luta de classes. As raças desapareciam, assim, na superexposição conceitual e política das classes sociais. Passava-se o mesmo em toda a América Latina, inclusive na Cuba socialista, que Fanon quis conhecer7 e que Sartre conhecera em 1960.

Não fora Fanon fruto da convergência entre essas duas polarizações. Guerreiro Ramos, ativista negro e sociólogo, o poderia ter introduzido aos brasileiros de 1960, pois tinha alguma afinidade com o seu pensamento. Não só ele, mas todos os demais membros do Iseb, como observou Renato Ortiz:


O que chama a atenção nos escritos de Fanon e do Iseb é que ambos se estruturam a partir dos mesmos conceitos fundamentais: o de alienação e o de situação colonial. As fontes originárias são também, nos dois casos, idênticas: Hegel, o jovem Marx, Sartre e Balandier8.

Se Guerreiro não o fez foi porque a desalienação e a descolonização cultural que buscava não passavam pela luta de classes. Provavelmente conhecia Fanon, pois era leitor de Présence Africaine9, de Esprit10 e de Les Temps Modernes11, além de revistas acadêmicas francesas. O fato é que, para articular o seu libelo contra a colonização cultural dos brasileiros "claros" e "escuros", Guerreiro bebera em algumas das mesmas fontes que Fanon, mas não em todas. A mesma inclinação por Hegel e pelo existencialismo, quando somadas a situações nacionais e projetos pessoais diversos, levara Guerreiro a posições nacionalistas e populistas12, afastando-o de doutrinas revolucionárias que pregavam a violência como modo de transformação social ou que defendiam a manutenção de diferenças culturais entre colonizados e colonizadores13.

Também a imprensa negra paulistana dos anos 1960, formada por homens e mulheres com situação de classe mais precária que Guerreiro, parecia desconhecer Fanon em sua campanha de solidariedade aos movimentos de libertação africana, continuando sintonizada com o discurso da négritude de Senghor e de Sartre dos anos 1948, a quem citam diretamente14.

FANON E A ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA

Certamente, a esquerda brasileira tomou conhecimento de Fanon através do extrato de Damnés de la terre(1961), publicado em Les Temps Modernes, e do prefácio de Sartre. Ou seja, o Fanon sartriano de De la violence. Michel Löwy, por exemplo, se lembra de ter discutido o prefácio de Sartre com seus companheiros em São Paulo, provavelmente ainda em dezembro de 196115. Há que se notar dois fatos na informação: primeiro, foi o prefácio de Sartre e não o artigo ou o livro de Fanon que foi discutido; segundo, a esquerda brasileira discutia seriamente a violência revolucionária, o que significava que os autores que escreviam sobre a América Latina, sobre táticas de guerra urbana ou guerrilha, ou faziam a teoria geral da revolução em sintonia com a filosofia européia, eram privilegiados na leitura.

O silêncio da esquerda brasileira sobre Fanon precisa ser entendido, ademais, como discordância política, tantos são os sinais indiretos de sua presença, a partir de meado dos anos 1960. O que acontece tanto no mundo negro quanto no branco16. Alguns fatos devem ser listados para que se compreenda como se estabeleceu essa relação difícil entre Fanon e a esquerda no Brasil. O primeiro deles é que pouco depois desse primeiro contato sobreveio o golpe militar de 1964, que levou ao exílio um grande número de militantes. O segundo é que aqueles que acreditavam na violência revolucionária passaram à clandestinidade, tornando tênues os seus elos com o mundo cultural. O que se lê sobre Fanon, portanto, nos anos 1960, é muito pouco. A situação começa a mudar apenas quando as cidades norte-americanas são tomadas pelas chamas das riots negras, e se sabe que Fanon era lido e discutido febrilmente pelos revolucionários norte-americanos, como os Panteras Negras.

A revista Tempo Brasileiro publica, em 1966, um artigo de Gérard Chaliand, em que o autor abre uma nota de pé de página para registrar: "apoiando-se nas análises mais contestáveis de Fanon - aquelas sobre os camponeses africanos. Ver sobre esse assunto a melhor e, aliás, a única análise marxista consagrada ao pensamento de Fanon: 'Frantz Fanon et les problèmes de l'indépendance' (La Pensée, nº 107)"17. Referia-se a Nghe18, um dos grandes adversários de Fanon no mundo africano.

Os marxistas brasileiros, portanto, seguiam as críticas marxistas - e também liberais19 - às concepções políticas de Fanon. No Brasil, a esquerda reverenciava Fanon, mas, se o lia em francês, não o citava; impondo-se um silêncio obsequioso. O mesmo não se passava com os marxistas da Monthly Review, cujos artigos eram regularmente traduzidos e publicados por revistas brasileiras. O motivo da reverência e do silêncio sobre Fanon pode ser buscado, como já sugeri, na sua centralidade para as lutas que se desenvolviam nos Estados Unidos daquele tempo. Os rebeldes afro-americanos também se consideram africanos e sujeitos coloniais, atitude muito bem captada pelas palavras dos editores da Monthly Review:


Se você ainda não conhece, grave bem o nome de Frantz Fanon que se tornou talvez o mais respeitado porta-voz dos oprimidos coloniais. Seu livro Les damnés de la terre acaba de ser publicado sob o título The wretched of the earth,e o recomendamos enfaticamente20.

Em novembro de 1966, Goldman resenha em cinco páginas Studies in a dying colonialism, e cunha uma frase lapidar sobre o que significava Fanon para a rebelião negra daqueles anos:


Fanon é popular porque fala, sobretudo, da própria luta e por dentro da Revolução, como um participante. Os jovens radicais negros que o lêem, que internalizam sua visão e respondem com fervor às suas idéias, são, ademais, pessoas que lutam intensamente contra um sistema que não têm certeza se podem derrubar. Para Fanon, o importante é a transformação, a mutação interior que ocorre durante a luta, o modo como os "condenados da terra" se libertam durante a confrontação inevitável entre opressores e oprimidos. E há outra idéia que o médico negro da Martinica, que escreve sobre a Revolução argelina, sugere a esses jovens radicais: é que o sistema contra o qual eles lutam é o mesmo contra o qual ele, Fanon, luta, e que ambos se opõem a um opressor comum em nome de um mesmo ideal21.

Significaria Fanon o mesmo para os negros brasileiros? O certo é que, finalmente, em 1968, aparece a edição brasileira de Condenados da terra, rapidamente retirada de circulação pelos órgãos de repressão política, mas não antes de cair nas mãos de dezenas de militantes. Pensamento explosivo tanto para a luta de classes quanto para o projeto de democracia racial. Buchanan, na Revista da Civilização Brasileira, escreve: "Deve-se lembrar que Malcolm X - que junto com Frantz Fanon, foi a principal inspiração de Carmichael - foi o único líder negro americano que aplaudiu o assassinato de Kennedy"22.

Na mesma revista, o crítico literário comunista Nelson Werneck Sodré, num grande balanço dos lançamentos do ano, registra: "O colonialismo, em sua brutalidade, está espelhado na obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, que estuda os efeitos da tortura"23. Nesta frase ouve-se o eco das torturas que a ditadura militar começa a rotinizar, assim como a simpatia por interpretações semelhantes à de Goldman: "Uma das contribuições mais importantes para o pensamento social [...] é sua brilhante análise das relações entre desordem mental e colonialismo, entre desajustamento sexual e repressão política"24.

Psicanalista brilhante e mau político, para uns; ideólogo radical, para outros, Fanon terá de esperar por uma nova esquerda para ser lido com simpatia. Até mesmo o líder negro Abdias do Nascimento que, em seus artigos dos anos 1960, traça influências do movimento negro, analisa a conjuntura internacional, enfatiza a négritude, a cultura negra, fala do estupro de origem da miscigenação brasileira, menciona as lutas de libertação na África, o "fermento do negro norte-americano", mas nada diz sobre Fanon:


Parafraseando Toynbee, e em virtude de certas condições históricas, um decisivo papel está destinado ao negro dos Estados Unidos num rumo novo - político e cultural - para os povos de cor de todo o mundo. Seria, por assim dizer, o recolhimento da herança legada pela atual geração de grandes negros - Leopold Sédar Senghor, Kwame N'Krumah, Langston Hughes, Jomo Keniata, Aimé Cesaire, Sekou Touré, Nicolás Guillén, Peter Abraham, Alioune Diop, Lumumba, James Baldwin, Mário de Andrade25.

Abdias era muito próximo ao Iseb e a Guerreiro Ramos e ambos nutriam imenso respeito por Toynbee, algo comum aos isebianos, como nos ensina Vanilda Paiva26. Frantz Fanon tornar-se-á uma referência importante para Abdias só depois de 1968, quando provavelmente o líder negro brasileiro é introduzido à obra de Fanon, largamente traduzida, discutida e comentada nos Estados Unidos, onde está exilado. Só a partir do Genocídio do negro brasileiro27 Fanon passa a ser referido nos escritos de Abdias.

O mesmo acontecerá com Octávio Ianni e com muitos intelectuais brasileiros exilados. O seu Imperialismo y cultura de la violencia en América Latina28 já absorve a discussão de Fanon e dos marxistas da Montly Review. O mesmo é verdadeiro para Clóvis Moura29. Ianni, de volta ao Brasil nos anos 1980, e reintegrado à universidade, fará de Fanon leitura obrigatória em suas classes e o indicará aos estudantes negros que dele se aproximam30.

Se "Fanon era nome cortado na esquerda" brasileira, nos meados de 1960, como disse José Maria Pereira, que, vindo dos grupos lisboetas ligados ao MPLA angolano31, certamente conhecia Fanon em 1962, não o era certamente em toda esquerda, sobretudo a de inspiração católica. Estes ganhavam influência à medida que os partidos comunistas eram dizimados pela repressão política e não repudiavam totalmente a violência revolucionária dos colonizados e o anti-racismo, aos quais o nome de Fanon estava indissoluvelmente ligado. A revista Paz e Terra, órgão muito próximo da esquerda católica, publicou, no seu número 7, a tradução de um artigo de Raymond Domergue, que toma justamente Os condenados da terra como parâmetro para traçar um guia da ação política católica em face da emergência de lutas revolucionárias no Terceiro Mundo:


Esta longa seqüência de citações [de Fanon] nos parecia necessária para demonstrar como a violência que se torna uma situação pode de repente fazer uma irrupção sob forma de violência armada. A violência revolucionária não é senão uma transposição de uma violência precedente que tem suas raízes em uma exploração de tipo econômico32.

No exílio chileno desde 1964, foi o pedagogo revolucionário Paulo Freire, também muito influenciado pelo pensamento existencialista católico e pelo nacionalismo anticolonialista do Iseb, quem fez a leitura de Fanon mais absorvedora. Em sua Pedagogia do oprimido, Freire foi, talvez, o primeiro brasileiro a abraçar as idéias de Fanon. Pelas indicações do próprio Freire, ele tomou conhecimento do revolucionário martinicano entre 1965 e 1968. É o que ele insinua em duas passagens de Pedagogia da esperança:

[...] mais tarde, muito mais tarde, li em Sartre (prefácio a Os condenados da terra,de Frantz Fanon ) como sendo uma das expressões da "conivência" dos oprimidos com os opressores33.

[...]

Tudo isso os estimulava [os camponeses espanhóis] como a mim me estimulara a leitura de Fanon e de Memmi, feita quando de minhas releituras dos originais da Pedagogia.Possivelmente, ao estabelecerem sua convivência com a Pedagogia do oprimido,em referência à prática educativa que vinham tendo, devem ter sentido a mesma emoção que me tomou ao me adentrar nos Condenados da terra e no The colonizer and the colonized.Essa sensação gostosa que nos assalta quando confirmamos a razão de ser da segurança em que nos achamos34.

A última passagem sugere que a leitura de Condenados se deu quando o manuscrito de Pedagogia já estava pronto, pois Freire fala em "minhas releituras dos originais". Como o manuscrito é de 1968 e a primeira edição de 1970, essa é uma interpretação plausível. Mas, ao mesmo tempo, Freire dá indicações de que leu Fanon na edição mexicana de 1965. O certo, portanto, é que ele toma conhecimento de Fanon entre 1965 e 1970, um período de radical mudança na sua teorização:


Absorvido pelo trabalho prático desde a criação do seu método, restara a Freire pouco tempo para o trabalho teórico, e quando a queda do governo Goulart o obriga a parar, ele precisa recuperar o seu ponto de partida em 1959. Estamos, efetivamente, diante de "um atraso relativo da teoria". Freire não pudera ainda digerir as novas influências e incorporar teoricamente novas posições; por isso, sua consciência teórica já não dava conta de toda a sua prática e ele carecia, naquele momento, de instrumentos teóricos e metodológicos que possibilitassem uma reinterpretação da realidade e uma revisão profunda do seu discurso pedagógico. Um esforço mais conseqüente nesta direção ele o fará mais tarde e Pedagogia do oprimido é o seu resultado35.

Seja como for, os intelectuais brasileiros disponíveis para receber a influência revolucionária e radical de Fanon se encontram, depois de 1964, livres de fidelidades partidárias e descolados de correntes filosóficas bem estabelecidas.

Outro receptor notável foi Glauber Rocha. Alguns, como Ismail Xavier, chegaram mesmo a ver influência direta de Fanon nos escritos do jovem Glauber:


É notável, em Glauber, o sentimento da geopolítica (de que o cinema é um dos vetores) como eixo de um confronto no qual o oprimido só se torna visível (e eventual sujeito no processo) pela violência. Apoiado em Frantz Fanon, ele explícita tal sentimento em "Por uma estética da fome", acentuando a demarcação dos lugares e o conflito estrutural que deriva da barreira econômico-social, cultural e psicológica que separa o universo da fome do mundo desenvolvido36.

Xavier faz a conexão entre Fanon e Glauber a partir do seguinte trecho:


Do cinema novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino37.

Mas Glauber, ele mesmo, não se lembra de ter lido Fanon por essa época. O mais provável é que tenha lido Sartre, pois ele diz em outro texto:


Foi na época de JK, inda na Bahia, que ouvi falar em nacionalismo anti/Ufânico. Entrando jovem no ltamaraty, Arnaldo Carrilho levou a Paixão do cinema novo pros Festivais Internacionais /era o que Brazyl precisava pra se descolonizar culturalmente no mundo. Dialeticamente uma prioridade era o desenvolvimento dos mercados internos (economia /cultura) mas antes de chegar às minhas mãos por indicação do teatrólogo Antônio Pedro Os condenados da terra,de Frantz Fanon, já o sopro de Jorjamado nos lançava, antes do Modernismo pra romper as cadeias da submissão ideológica, núcleo do complexo de inferioridade colonial, nostro câncer, principal arma dos invasores38.

Ao que parece, Glauber toma conhecimento de Fanon apenas em 1968, pela edição brasileira de Os condenados da terra. Mas Ismail Xavier tem razão: em Glauber, Fanon parece viver inteiro e não pela metade, ser um pensamento e não apenas um nome. A tese de Xavier é corroborada por Mendonça39.

Não deixa de ser revelador que os intelectuais inicialmente receptivos às idéias de Fanon nem mesmo citem o Pele negra, máscaras brancas. Freire e Glauber são iconoclastas à procura de uma nova linguagem, de um modo novo e terceiro-mundista de fazer cinema ou educar.

Quando Pele negra, máscaras brancas é publicado no Brasil já estamos em 1983. É a editora Fator, especialista em obras psicanalíticas, quem o faz. Ademais, apesar de a edição ter sido impressa no Rio de Janeiro, a Fator estava sediada em Salvador, onde também o Movimento Negro Unificado editava o seu jornal de circulação nacional. Haverá aí, certamente, alguma confluência entre o interesse editorial por uma obra muito influenciada pela psicanálise e o interesse comercial em abastecer o novo mercado criado por um segmento de classe média com consciência racial, já que Fanon passara a ser leitura de formação. Diz-nos Florentina Souza:


o periódico Nego,boletim do MNU-Ba, no seu número 1, publica sugestões de leitura que passam por Obras escolhidas de Amílcar Cabral, África - literatura, arte e cultura, organizado por Manoel Ferreira e, no número 3, o livro Pele negra, máscaras brancas,de Fanon [...]40.


OS JOVENS ESTUDANTES NEGROS DOS ANOS 1970 E 1980

A influência de Sartre, e da sua leitura de Fanon, foi duradoura entre negros e brancos. Ainda em 1978, o editor-chefe do jornal Versus, da Convergência Socialista, cujos militantes negros foram muito ativos na fundação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, que precedeu o MNU, ainda buscava em Sartre, no seu prefácio a Os condenados da terra, a imagem para expressar o que se viveu naquela noite, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo:

Certa vez Sartre escreveu sobre a questão negra. Ali, ele falava uma coisa inesquecível, e que eu vou citar de memória... "O que vocês esperavam ouvir quando estas bocas negras se vissem livres das mordaças? Que gritassem frases doces, amenas?" Será que estas "mordaças" estão sendo arrancadas no Brasil? Sim, então. Foi o que vimos em São Paulo, numa noite histórica. Bocas negras gritando contra a injustiça e a opressão. Punhos erguidos, no lusco-fusco daquele momento em que, numa grande cidade, os homens cansados vão para casa. Não se ouviram frases amenas - e é bom que tenha sido assim. À humilhação de séculos, só o duro estômago do povo poderia resistir41.

Do mesmo modo, a seção "Afro-latino-América" do Versus é lançada, em 1978, com a manchete "Nem almas brancas, nem máscaras negras", que faz trocadilho com o título de Fanon, mas busca referências cognitivas outras, comezinhas, como o "preto de alma branca"; ou tradicionais, como a observação de Nelson Rodrigues - "branco pintado, eis o negro do teatro nacional" - algumas vezes lembrada por Abdias do Nascimento42.

Mais ainda. A Afro-Latino-América desconhecerá Os condenados da terra, publicado em 1968, no Brasil, ou a Pele negra, máscaras brancas ó que circulava entre alguns militantes negros desde meados dos anos 1970 em fotocópia da edição portuguesa da editora Paisagem, do Porto - para republicar, em seu número 18, de 1978, extratos do Orfeu negro, antecedido da seguinte advertência:

Dentro do atual contexto político, onde o Partido Socialista apresenta-se como alternativa mais conseqüente para a atuação das camadas marginalizadas da sociedade brasileira, Jean-Paul Sartre pensa a atuação do negro socialista. Discute a necessidade de não perder de vista as suas condições objetivas de negro e trabalhador.

No entanto, foram os jovens estudantes negros dos anos 1970 e 1980 que, no Brasil, leram e viveram Fanon, de corpo e alma, fazendo dele um instrumento de consciência de raça e de resistência à opressão, ideólogo da completa revolução na democracia racial brasileira. As referências a esse fato pululam na literatura. Vou seguir apenas algumas pistas.

Na pesquisa que Alberti e Pereira43 coordenam no Cpdoc sobre o movimento negro brasileiro contemporâneo, oito militantes citam espontaneamente Fanon, ao falar de sua formação: Amauri Mendes Pereira, Gilberto Roque Nunes Leal, Hédio Silva Júnior, José Maria Nunes Pereira, Luiz Silva (Cuti), Mílton Barbosa, Regina Lucia dos Santos e Yedo Ferreira. Em pesquisa semelhante, conduzida por Márcia Contins44, seis militantes citam também Fanon.

Michael Hanchard registra, a partir de entrevistas com esses militantes, que

Membros do Black Soul do Rio de Janeiro e São Paulo - cujas atividades, entre outras, incluíam distribuir cópias do Poder negro, de Stokely Carmichael, e de Os condenados da terra,de Frantz Fanon, para discussão em grupo - eram (mal)identificados pelas elites civis e militares como participantes de uma conspiração. Dada a natureza do regime ditatorial, a vigilância policial exercida sobre o Black Soul e o movimento negro em geral durante esse período não está documentada. Entretanto, um alto oficial do Serviço Nacional de Informações, o poderoso braço da inteligência do Estado, confirmou-me em entrevista pessoal que vários ativistas negros foram monitorados de perto nos anos 1970 porque se acreditava que faziam parte da engrenagem da conspiração comunista45.

Treze anos depois de publicado o livro de Hanchard, quando os arquivos da polícia política (Deops) já estavam abertos aos pesquisadores, Karin Kosling pôde documentar a repressão ao MNU: "Em relatório da Divisão de Informações do Deops sobre ato público organizado pelo MNU, em 7/7/1980, Milton Barbosa, importante militante do MNU, citou Fanon para criticar o imperialismo"46. Analisando a documentação policial e depoimento de militantes da época47, Kosling não tem dúvidas em listar as principais influências intelectuais dos jovens rebeldes negros: "Autores como Fernandes, ao lado de Eldridge Cleaver e Frantz Fanon, entre outros, introduziam a questão da luta de classes nos debates do MNU"48.

Florentina de Souza, olhando dois importante jornais negros, concorda no que diz respeito a Fanon:

É marcante a influência que os escritores negros no Brasil receberam das literaturas africanas escritas em língua portuguesa que chegavam ao Brasil por meio de jornais, revistas e livros, ou ainda a influência das traduções de Fanon e de textos de Garvey e DuBois que circulavam no movimento negro no Brasil desde a década de trinta49.

Lendo alguns depoimentos de militantes negros dos anos 1970, tenho a impressão de que a recepção de Fanon não foi diferente no Brasil daquela que Goldman registrou nos Estados Unidos. Amauri de Souza, importante quadro do MNU no Rio de Janeiro, nos diz:

Quando eu comecei a ler Alma no exílio,que foi a experiência do Cleaver, que era uma das principais lideranças dos Panteras Negras, e logo depois entrei no Fanon, li os dois ao mesmo tempo... Foi uma loucura! Aquilo era demais! Fanon era a crucialidade, a violência como a parteira da História. Preconizava a violência do colonizador, o ódio... O Fanon era um pouco mais para mim do que era Che Guevara, porque o Che era um revolucionário que tinha morrido, portanto perdeu, e foi aqui na América e não era negro. O Fanon era negro. Foi uma proximidade maior que eu tive com ele. E era terrível... O Fanon não foi morto na luta, eles ganharam, fizeram a revolução... E na minha cabeça, aquilo me apaixonou50.

Mas a primeira reflexão mais sistemática (e talvez única) sobre o pensamento de Fanon feita por intelectuais negros numa revista acadêmica brasileira aconteceu apenas em 1981 e foi assinada por um coletivo, Grupo de Estudos sobre o Pensamento Político Africano (GEPPF), o que denota tratar-se de um meio caminho entre reflexão acadêmica e reflexão política. O grupo era formado por ativistas, estudantes e professores do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, da Universidade Cândido Mendes, dirigido por José Maria Nunes Pereira. Esse artigo demonstra a consolidação da preocupação com o racismo, como questão importante e autônoma, na nova esquerda marxista em formação:

Fica claro [com a leitura de Fanon] que o racismo é conseqüência de uma situação de dominação socioeconômica, mas que possui mecanismos próprios, de ordem psicológica, que concedem a ele certa autonomia. Contudo, a referida situação continua alimentando e alimentando-se do racismo. Isto não se aplica apenas ao fato colonial, mas também ao neocolonial e às sociedades capitalistas com apreciável contingente de mão-de-obra de antigas colônias. No primeiro caso, como vimos, a função fundamental do racismo é a legitimação da ocupação e exploração diretas. Na situação neocolonial, o preconceito racial é utilizado com os mesmos objetivos, com as necessárias adaptações decorrentes de nova realidade. Ele é um auxiliar dos mecanismos de subordinação neocolonial51.

Parece claro que continua havendo restrições a Fanon como estrategista político, principalmente à sua crença na potencialidade revolucionária do campesinato:

Ele [Fanon] não faz uma verdadeira análise de classe da sociedade colonial. Existem referências a classes ou camadas. O proletariado, o lúmpen-proletariado e o campesinato merecem-lhe certa atenção e uma caracterização deficiente. Referências existem à burguesia e às elites locais, possivelmente integradas por elementos da burguesia. A sua análise privilegia a polarização cidade-campo52.

Se o grupo critica a posição excessivamente classista e economicista da esquerda tradicional, para quem o movimento negro ainda representava um perigo sério de divisão das camadas exploradas, também se põe à distância daqueles, no movimento negro, que se afastam da matriz marxista:

Cremos que a posição dos que procuram minimizar a questão racial diluindo-a pura e simplesmente na social, assim como os que postulam a independência absoluta das organizações anti-racistas (e sua partidarização) relativamente ao resto da sociedade, dificultam, ainda que involuntariamente, a morte da ideologia da "democracia racial"53.

A RECEPÇÃO ACADÊMICA

Gordon, Sharpley-Whiting e White54 caracterizam o desenvolvimento dos estudos sobre Fanon em quatro fases. A primeira fase foi marcada pela literatura revolucionária dos anos 1960, que no Brasil, como vimos, encontrou acolhida nas idéias de Glauber, sobre o cinema-novo, e de Paulo Freire, sobre a pedagogia dos oprimidos. A segunda fase, que eles chamam de biográfica, não teve representantes no Brasil e passou praticamente em branco. Não apenas não há biografia de Fanon escrita por autor brasileiro como, até hoje, não há uma só biografia de Fanon editada no Brasil. Temos apenas breves notas biográficas55. A terceira fase, que marca o interesse da teoria política por Fanon passaria também quase em branco não fosse o fato de Renate Zahar56 ter sido leitura de referência do Grupo de Estudos do Pensamento Político Africano. Cabe mencionar também o já citado livro de Ianni sobre o imperialismo. Mas Fanon continua apenas uma referência, sem que tais estudos tivessem gerado reflexões brasileiras de maior originalidade ou envergadura sobre seu pensamento político. A quarta e última fase, a dos estudos pós-coloniais, é praticamente ainda nova no Brasil, e chega apenas através dos comentários de Bahba, Gilroy, Gates Jr. ou de comentaristas brasileiros aos pós-colonialistas, como Sérgio Costa e Olívia da Cunha57.

No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a mobilização negra dos anos 1970 não gerou a entrada massiva de negros nas universidades, e a criação dos Neab (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros) é relativamente recente no país. A Associação Brasileira de Pesquisadores Negros data apenas do ano 2000.

Os estudos fanonianos no Brasil não se constituíram realmente em campo com alguma autonomia, e as referências a Fanon, além de esparsas, parecem seguir diferentes linhas. Uma rápida busca em bancos de dados sobre dissertações e teses universitárias mostra que Fanon é lido nas universidades brasileiras principalmente nos cursos de pós-graduação em literatura, em comunicação e artes, em psicologia social, e em ciências sociais. Quando os debates que animaram os anos 1960 e 1970 são revisitados, sua obra volta a despertar interesse.

No entanto, apenas três autores brasileiros dedicaram artigos ou parte de capítulos de livros à discussão de Fanon. Renato Ortiz tem, sem dúvida, a reflexão mais profunda e refinada de Fanon58. Estudioso do mundo intelectual francês do pós-guerra, Ortiz preparou para a editora Abril, que publicava, então, uma coleção de divulgação científica chamada Grandes Cientistas Sociais, um volume sobre Fanon. Esse volume nunca chegou a ser publicado, mas Ortiz retoma, anos depois, os originais da sua "Apresentação" para publicá-la como artigo na revista Idéias, do Departamento de Sociologia da Unicamp. É Ortiz quem retraça a formação do pensamento de Fanon de acordo com três movimentos intelectuais centrais ao mundo intelectual do pós-guerra na França - a releitura de Hegel, o debate entre marxistas e existencialistas, e, finalmente, a négritude. Silencia, contudo, sobre a formação psicanalítica de Fanon. A preocupação explícita de Ortiz é com a teorização fanoniana do racismo e da nação. Tempos depois, Ortiz59 revisita Fanon, agora em conexão com seu estudo sobre o pensamento do Iseb, e descobre as raízes semelhantes do anticolonialismo cultural dos pensadores isebianos - Hegel, Sartre e Balandier. Deixa escapar, todavia, a grande influência da fenomenologia de origem católica sobre os principais membros do Iseb.

Cabaço e Chaves, na esteira do 11 de setembro, relêem Fanon para retomarem os pontos-chave de seu anticolonialismo e da sua justificativa da violência revolucionária. Relembrando os debates dos anos 1960, escrevem:


[Fanon] abalou a "boa consciência" das metrópoles ocidentais afirmando que "um país colonial é um país racista" e assustou os círculos colonialistas denunciando a violência do sistema e explicando que "o homem colonizado liberta-se em e pela violência"; escandalizou uma certa esquerda intelectual pondo em causa instrumentos teóricos da ortodoxia marxista; provocou a indignação dos partidos operários ocidentais ao afirmar que "a história das guerras de libertação é a história da não verificação da tese" da comunidade de interesses entres classe operária da metrópole e o povo colonizado; coerente com sua convicção, acusou a não-violência e o neutralismo de serem formas de cumplicidade passiva com a exploração dos colonizados ou de "desorientação" das elites dos povos subjugados60.

Mais recentemente, o pensamento de Fanon passa a ser discutido nas universidades brasileiras na confluência entre os estudos de gênero e de raça; e uma cuidadosa tradução de Pele negra, máscaras brancas, com prefácio de Lewis Gordon, acaba de ser lançada pela Editora da UFBA. Em resumo, Fanon entrou definitivamente no rol de autores clássicos, aqueles que servem de referência obrigatória para o estudo de alguns fenômenos do mundo moderno, entre eles, principalmente, o racismo e a violência política. Consolidou-se, do mesmo modo, no panteão dos heróis africano-americanos, tornando-se leitura obrigatória para ativistas ou cidadãos negros brasileiros. O fato, no entanto, é que ainda estamos engatinhando nas investigações sobre Fanon. Minha sugestão é de que isso se deve, mesmo que parcialmente, à pouca presença de negros nas universidades brasileiras e à conseqüente escassez de reflexão teórica sobre as identidades raciais. Se eu estiver certo, portanto, a entrada gradual, mas constante, de negros nas nossas universidades de pesquisa poderá abrir, quem sabe, uma larga avenida para os estudos fanonianos.


[1] Versão anterior deste texto foi apresentada no colóquio "Penser aujourd'hui à partir de Frantz Fanon", Universités Paris 1, Paris 7, Paris 8, Unesco, Fondation Frantz Fanon; Paris, 31 novembro e 1 dezembro de 2007. São muitas as pessoas que me ajudaram a colher informações sobre Fanon no Brasil; algumas delas estão citadas no texto, outras não. Entre estas, lembro-me de algumas e nomeio-as ao tempo em que peço desculpas a quem esqueci: Andrew Kirkendall, Carlos Nelson Coutinho, Helena Hirata, Ismail Xavier, Joelzito de Araujo, José Maria Nunes Pereira, Júlio César Tavares, Mariza Correa, Nadya Araujo Guimarães, Paulo Farias, Renato da Silveira. 
[2] Beauvoir, Simone. La force des choses. Paris: Gallimard, 1963, p. 549. [ Links ]
[3] Ibidem, p. 561. 
[4] Ibidem. 
[5] Amado, Jorge. "Cacao". Les Temps Modernes, n° 104/105, juin-août 1954. [ Links ]
[6] Idem. "Les trois morts de Quinquin-la-flotte". Les Temps Modernes, nº 178, fev. 1961, pp. 868-915. [ Links ]
[7] Gordon, Lewis, Sharpley-Whiting, T. Denean e White, Renée T. (eds.). Fanon: a critical reader. Oxford: Blackwell, 1996, p. 4. [ Links ]
[8] Ortiz, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 51. [ Links ]
[9] Fanon, Frantz. "Racisme et culture". Présence Africaine, 2éme série, nos VIII-IX-X, juin-nov. 1956, pp. 122-131; [ Links ] idem. "Fondement réciproque de la culture nationale et des luttes de libération". Présence Africaine, 2éme série, nos XXIV-XXV, fev.-mai 1959, pp. 82-89. [ Links ]
[10] Idem. "L'Expérience vécu du noir". Esprit, nº 179, mai. 1951, pp. 657-679. [ Links ] Idem. "Le syndrome nord-africain". Esprit nº 187, fév. 1952, pp. 237-284. [ Links ] Idem. "Antillais et Africains". Esprit. nº 223, fév. 1955, pp. 261-299. [ Links ]
[11] Idem. "La minorité européenne d'Algérie en l'An V de la Révolution". Les Temps Modernes, nº 159-160, 1959, pp. 1841-1867; [ Links ] idem. "De la violence". Les Temps Modernes, nº 181, 1961, pp. 1453-1493. [ Links ]
[12] Paiva, Vanilda P. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. Rio de Janeiro/Fortaleza: Civilização Brasileira/Edições UFC, 1980. [ Links ]
[13] Em A redução sociológica, de 1958, [ Links ] Guerreiro cita explicitamente Aimé Césaire (Discours sur le colonialisme, Paris: Présence Africaine, 1955), [ Links ] Cheik Anta Diop (Nations nègres et culture. Paris: Présence Africaine, 1954) e Sartre ("Le colonialisme est um systè [ Links ]me". Les Temps Modernes, nº 126, 1956) em francê [ Links ]s, mas não se refere a Fanon. Na segunda edição, de 1965, Guerreiro acrescenta a essas leituras Balandier (Sociologie actuelle de l'Afrique noire. Dynamique des changements sociaux en Afrique centrale. Paris: PUF, 1955) e continua sem se referir a Fanon. [ Links ]
[14] Ver a coleção do Niger, jornal dirigido por José Assis Barbosa e José Correia Leite, em São Paulo, 1960. Coleção Mirian Ferrara, IEB-USP. [ Links ]
[15] Informação de Michel Löwy ao autor, em dezembro de 2007. Löwy sai do Brasil em agosto de 1961 e volta em dezembro do mesmo ano por dois ou três meses, provavelmente trazendo uma cópia do Damnés de la Terre, recém-lançado em Paris. [ Links ]
[16] Em entrevista a Verena Alberti e Amilcar Pereira (19/12/2006), José Maria Nunes Pereira, que dirigiu o Centro de Estudos Asiáticos da Cândido Mendes, entre 1973 e 1986, comenta: "Fanon era nome cortado na esquerda". 
[17] Chaliand, Gérard. "Problemas do nacionalismo angolano". Tempo Brasileiro, nº 6, 1966, pp. 77-98. [ Links ]
[18] Ver Nghe, Nguyen. "Frantz Fanon et les problèmes de l'indépendance". La Pensée. nº 107, 1963, pp. 23-36. [ Links ]
[19] Arendt, Hannah. On violence. Nova York: Harcourt, Brace & World, 1970. [ Links ]
[20] Monthly Review, nº 17, v. 1, June 1965 (contracapa). [ Links ]
[21] Goldman, Lawrence. "Fanon and black radicalism". Monthly Review, v. 18, nº 5, nov. 1966, p. 58. [ Links ]
[22] Buchanan, Thomas G. "Revolta Colonial". Revista da Civilização Brasileira, nos 19-20, 1968, p. 34. [ Links ]
[23] Sodré, Nelson W. "O momento literário". Revista da Civilização Brasileira, nos 21-22, 1968, p. 198. [ Links ]
[24] Goldman, op. cit., p. 55. 
[25] Nascimento, Abdias. "O teatro negro no Brasil: uma experiência sócio-racial". Revista da Civilização Brasileira, Caderno Especial 2, 1968, p. 206. [ Links ]
[26] "Aliás, era comum entre os isebianos, influenciados pela leitura de Toynbee, a referência aos países subdesenvolvidos como 'proletariado externo' do mundo ocidental". Paiva, Vanilda P. op. cit., p. 159. 
[27] Nascimento, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 1978. [ Links ]
[28] Ianni, Octávio. Imperialismo y cultura de la violencia en América Latina. Cidade doMéxico: Siglo XXI, 1970. [ Links ]
[29] Moura, Clóvis. Dialética radical do Brasil. São Paulo, Editora Anita, 1994. [ Links ]
[30] Informação pessoal que me foi passada por Valter Silvério, professor da UFSCar e ex-aluno de Ianni. 
[31] Alberti, Verena e Pereira, Amílcar Araújo. "Entrevista com José Maria Nunes Pereira". Estudos Históricos, nº 39, 2007. [ Links ]
[32] Domergue, Raymond. "Reflexões sobre a violência". Paz e Terra, nº 7, 1968, p. 51. [ Links ]
[33] Freire, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 19. [ Links ]
[34] Ibidem, p. 141. 
[35] Paiva, Vanilda P. op. cit., p. 141. 
[36] Xavier, Ismail. "Prefácio". In: Rocha, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: CosacNaify, 2004, p. 21. [ Links ]
[37] Rocha, Glauber. "Uma estética da fome". Revista da Civilização Brasileira, nº 3, 1965, p. 169. [ Links ]
[38] Rocha, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo: CosacNaify, 2004, p. 455. [ Links ]
[39] Mendonça, Mary E. Ramalho de. História e cinema: cinemanovismo e violência na América Latina (décadas de 1960 e 1970). 2 vol. São Paulo: livre- docência, ECA-USP, 1995. [ Links ]
[40] Souza, F. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p. 163. [ Links ]
[41] Faerman, Marcos. "Histórias". Versus, nº 23, jul.-ago. 1978, p. 1. [ Links ]
[42] Nascimento, A. "Carta a Dakar". Tempo Brasileiro, nos 9-10, 1996, pp. 97-106. [ Links ]
[43] Alberti e Pereira, op. cit. 
[44] Contins, Márcia. Lideranças negras. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005. [ Links ]
[45] Hanchard, Michael. Orpheus and power: The movimento negro of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1988. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 116. [ Links ]
[46] "Dossiê 50-Z-130- 3773". Deops/ SP, Daesp, apud Kosling, Karin. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do Deops/SP (1964-1983). São Paulo: dissertação de mestrado, História Social, FFLCH-USP, 2007, p. 161. [ Links ]
[47] Félix, J. Chic Show e Zimbabwe e a construção da identidade nos bailes black paulistanos. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2000, pp. 40-41. [ Links ]
[48] Kosling, op. cit., p. 161. 
[49] Souza, op. cit., p. 162. 
[50] "Entrevista". In: Alberti e Pereira, op. cit., fita 2 - lados A e B. 
[51] Grupo de Estudos sobre o Pensamento Político Africano. "Notas sobre o pensamento de Frantz Fanon".Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 5, 1981, p. 22. [ Links ]
[52] Ibidem, p. 15. 
[53] Ibidem, p. 25. 
[54] Gordon, Sharpley-Whiting e White, op. cit. 
[55] Ortiz, Renato. "Frantz Fanon: Um itinerário político e intelectual". Revista Idéias, Campinas, v. 2, nº 1, 1995; [ Links ] Cabaço, José Luís e Chaves, Rita de Cássia Natal. "Frantz Fanon : colonialismo, violência e identidade cultural". In: Abdala Júnior, Benjamin. Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004, pp. 67-86. [ Links ]
[56] Zahar, Renate. "Frantz Fanon: colonialism and alienation". Monthly Review Press, Nova York, 1974. [ Links ]
[57] Costa, Sérgio. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: EdUFMG, 2006; [ Links ] e Cunha, Olivia M. G. da. "Reflexões sobre biopoder e pós-colonialismo: relendo Fanon e Foucault".Mana, vol. 8, nº 1, 2002, pp. 149-163. [ Links ]
[58] Ortiz, Renato."Frantz Fanon: Um Itinerário Político e Intelectual", op. cit; idem, Cultura brasileira e identidade nacional. 
[59] Idem, Cultura brasileira e identidade nacional, op. cit. 
[60] Cabaço e Chaves, op. cit, p. 69.

Professor titular do Departamento de Sociologia da USP

quarta-feira, 25 de junho de 2014

O significado político de uma boneca negra

por Amanda Beatriz
publicado:blogueirasnegras.org

Era uma vez uma menina. Era uma vez uma menina negra. Era uma vez uma menina negra que queria ter cabelo amarelo “cor de biscoito Fandangos”. Até que um dia esta garotinha ganhou de presente uma boneca negra. E, então, naquele momento, aconteceu uma verdadeira epifania!

A criança da nossa história se viu projetada em sua boneca. Ao contemplar o gracioso bebê negro de vestido lilás claro, aquela criança se entendeu negra pela primeira vez. Conseguiu enxergar-se bela através da imagem refletida pela bonequinha! Mais ainda, inconscientemente, aquela garotinha notou que suas características físicas eram bonitas e merecedoras de serem copiadas.

Não preciso dizer que a ideia do cabelo “amarelo” foi sumariamente descartada!

De lá pra cá, nunca mais senti necessidade de ter cabelos loiros. Não porque – em si – pintá-lo seja algo bom ou mau. Nada disso. O fato é que a vontade de ter o cabelo na cor “de biscoito Fandangos” – era assim que eu falava quando era criança – se dissipou na medida em que descobri, com a ajuda daquela boneca, a beleza existente na cor do meu próprio cabelo.



Foi aí que comecei a descobrir as nuances castanhas da minha cabeleira. Meus olhos se abriram para a textura gostosa e macia dos meus fios. Aprendi a admirar a “cor-de-bombom” da minha pele! Por meio dos olhos da bonequinha, pude visualizar como o formato dos meus olhos café é ricamente amendoado… Não senti mais, desde então, o desejo de usar lente de contato verde.

Meus lábios eram como o da boneca. Ina tinha os lábios grossos assim como os meus. E eram bonitos! Ah, se eram! Como aqueles lábios salientes abrilhantavam minha graciosa filhinha! Notei que não precisava ter lábios que não eram meus. Os lábios “finos” das atrizes globais deixaram de ser meu objeto de desejo.

E o nariz… O que falar dele! Confesso que o meu nunca foi um problema para mim, pois sempre ouvia “elogios” do tipo: “Olha só como ela tem os traços finos!”, “Que nariz mais formoso e delicado”, “Seu nariz é tão bonito que nem parece com o de preto”… E, de fato, durante um tempo, eu me defini como a “mulata de nariz fino e de traços delicados”. Afinal de contas, era esse o modo o qual as pessoas se referendavam a mim.

E, outra vez, ei-la! Eis que surge, de novo, a bendita boneca!

Quando a menina de tranças observou atentamente a criancinha em miniatura que estava em seu colo, de imediato, tratou de analisar aquele nariz com olhar de descrédito e desconfiança… Ele – o nariz – era tão diferente do “fino e delicado”. Tenho que admitir, cara leitorx, que a primeira impressão foi bastante negativa.

Entretanto, à medida que eu brincava com a Ina – e desde que fui presenteada, só queria brincar com ela! – o nariz, aos poucos, foi me parecendo mais agradável, simpático… bonito! Eu pensava com meus botões: “O nariz da Ina fica tão bem nela”. “A Ina é tão linda”. “Que curioso: é bonita e não tem o meu nariz”. “E eu aqui, achando que só as meninas de nariz ‘fino’ e ‘delicado’ eram belas”. Em meu íntimo se operava uma mudança de ponto de vista, cada vez que admirava minha bonequinha preta, pois, lá dentro, eu começava a entender o quanto sua própria beleza fazia com que tudo naquele corpo se harmonizasse certinho!

A boneca era “negramente” linda! Ela era como eu: negra de olhos café-amendoado, pele “bombom”, lábio grosso, cabelo crespo e, ainda por cima, era coroada com aquele nariz! Ela tinha o nariz que me ensinaram, desde cedo, a considerá-lo feio… Para minha surpresa, eu a descobri inusitadamente bonita! Graças à Ina, minha boneca, um novo olhar acerca de mim, enquanto menina negra, se descortinou diante dos meus olhos.

Finalmente estava apta a reconhecer o valor único de beleza, contido em si mesmo e inerente a meus atributos físicos. Na medida em que brincava diariamente com aquela réplica de criança negra moldada em vinil, minhas características étnicas ganhavam forças. Aos poucos, a negritude foi deixando de ser “objeto sujeito à mensuração de padrões externos” e migrou para a condição de beleza referencial. Foi assim que se iniciou, em minha pessoa, o complexo e não linear processo de construção da autoimagem negra. Minha bagagem existencial começava a assumir contornos de padrão estético com vida própria!

O marco fundador da reflexão política? Não tenho dúvidas de que foi o contato contínuo e reiterado com esta boneca em minhas brincadeiras.

Entender o significado político de uma boneca negra é perceber que o ato de presenteá-la a uma criança negra vai além de se ofertar um mero brinquedo. Quando os pais ou os responsáveis presenteiam a criança com a boneca que reproduz suas características físicas – sistematicamente desprestigiadas e reputadas feias pela sociedade – estimula-se o desabrochar da elevação da autoestima desta criança. E muito mais, eu me atreveria ir além, a partir da conexão afetiva que a criança desenvolve com a boneca, se encoraja o olhar de reconhecimento da sua própria identidade. A pessoa não só aprende a se aceitar negra, mas também aprende a se sentir bem sendo negra.

Pense um pouco, cara leitorx. Se uma criança, um jovem, um adulto ou um idoso negro não se encanta pela sua cor de pele, não se afeiçoa a seu nariz, não aprecia a cor de seu cabelo e não consegue identificar beleza alguma em seus olhos… Significa dizer, em outras palavras, que esta pessoa não se sente confortável sendo aquilo que ela é.

Para além de pensarmos, ingenuamente, que este é um acontecimento absolutamente normal, é preciso refletir sobre o porquê uma beleza tão diferente da nossa é a mais atraente e adequada, a ponto de ser necessário reeditar a própria identidade. Enfatizo, contudo, que não há nada de errado em querer se enxergar da maneira a qual se entenda como sendo a mais agradável.

Entretanto, quando é necessário desconfigurar tudo o que se é – “apagando” as marcas de sua natureza – em prol de alcançar outra modelagem estética “mais desejável”; podemos concluir que isto já é um sinal indicativo de que algo precisa ser urgentemente reavaliado.

E a boneca auxilia neste processo de empoderamento. A boneca ajuda quando ainda se é criança.

Qual de nós nunca se sentiu instigada, desde menina, a ter que corresponder às expectativas de um padrão de beleza que não é o da sua etnia? Conforme já foi dito: cor da pele, tipo de cabelo, espessura dos lábios, tipo de nariz e por aí vai… Nesse contexto é que boneca desponta como veículo didático e não verbal para comunicar a criança negra várias informações tais como:
Você é negro;
Sua compleição física é bonita;
Não há nada de inadequado e/ou inconveniente em ser negro;
Ser negro é tão bonito quanto ser de outra etnia. Da mesma forma que pessoas com características físicas diferentes da nossa fabricam seus brinquedos de acordo com seus atributos estéticos; nós também produzimos bonecos negros que copiam nossa imagem e semelhança. Bonecos tão belos quanto o são os de qualquer outra raça;
Se aceite. Se entenda lindo. Se enxergue bonito. Não há nada de errado em ser como você é.

A construção da autoestima negra é lenta e complexa. Não porque negros menosprezem sua autoimagem “gratuita e espontaneamente” ou porque tenham algum tipo de sentimento de inferioridade, mas sim, por existir toda uma construção social deletéria em torno da estética negra – esta, raramente é bela por si só e, em geral, é classificada como “exótica”, acessória, coadjuvante e de segunda categoria –.

Pois bem. Dito isso, é aí que a boneca negra – efetivamente – cumpre seu papel enquanto “instrumento político”.

Uma coisa que percebi assistindo vídeos no Youtube sobre o “Teste da Boneca” é que frequentemente diversas crianças até se identificam como negras quando a psicóloga lhes pergunta se a boneca que veem é parecida com elas. No entanto, me surpreendi no momento da segunda pergunta: quando indagadas se achavam bonita a boneca negra, a maioria replicou que era feia. Por outro lado, essas mesmas crianças, uma vez questionadas acerca da boneca branca, unanimemente, responderam que a achava bonita.

Em 2007, na Nigéria – país com mais crianças negras do que em qualquer outro lugar do mundo – Taofick Okoya se chocou ao descobrir que não havia disponível no mercado nenhuma boneca negra para dar de presente à sobrinha. Em um país com cerca de 170 milhões de habitantes, se constituindo a mais populosa nação africana, é absurdamente incoerente pensar que não haja bonecas dotadas de características étnicas com as quais suas crianças se identifiquem.

Pensando nisso, Okoya, em um gesto de coragem e de empreendedorismo, lançou no mercado a linha de bonecas negras “Rainhas da África”. A ideia de fabricar as bonecas se consolidou com mais afinco depois que sua filha pediu para “virar” branca. A partir daí, Okoya buscou a inspiração necessária para fazer com que a menina se tornasse confiante em sua cultura e se sentisse pertencente às suas raízes.



As Rainhas da África são personagens fictícios criados para contar a trajetória de princesas reais da História Africana. O grande diferencial das bonecas é que sua indumentária imita o modo de vestir recorrente na cultura do país. A origem das bonecas é facilmente identificada através das roupas e dos acessórios. A meta de Okoya é de lançar, futuramente, bonecas alusivas a outros grupos étnicos africanos.

De acordo com o site da empresa e sua fanpage no Facebook, produtos tais como: livros, quadrinhos, músicas e séries animadas também foram desenvolvidos. Tudo isso com a finalidade de propiciar o fortalecimento da identidade africana.

Vale ressaltar que tal como a Barbie, as Rainhas da África são esguias e magras. Além disso, a feição das bonecas não é totalmente compatível com a fenotipia negra. Segundo Okoya, suas primeiras modelagens eram mais encorpadas, porém não houve boa aceitação entre as crianças. Então, se decidiu padronizar o corpo das bonecas de acordo com o referencial esbelto. As Rainhas possuem o nariz, a boca e o cabelo à moda da beleza Ocidental, tal como a Barbie. O empreendedor explicou que pretende mudar este conceito, viabilizando a confecção de moldes mais sofisticados – delineados com características africanas de maior coerência com a etnia negra – tão logo que a marca tenha sua imagem mais consolidada no mercado. Por hora, só é possível ofertar as opções da linha atual. Ainda assim, considero ser um significativo avanço no empoderamento negro, se comparado ao cenário anterior, de total vazio da representatividade cultural preta.

Na Nigéria, a aceitação é enorme: as Rainhas ganharam o coração do público mirim e já desbancaram a boneca Barbie na preferência das meninxs nigerianxs.



Portanto, acredito ser de extrema importância para o resgate da autoestima da criança negra, o contato permanente com a boneca que reproduza – o tanto quanto possível – a compleição física de seu respectivo grupo étnico. Creio que este poderoso instrumento político é aliado estratégico que se traduz em ferramenta potencialmente fortalecedora no processo de construção do empoderamento negro. É fato que tal processo é percebido como lento e vagaroso. Entretanto, estou segura e convencida de que, no final, terá valido a pena!