JACY AFONSO
Publicado: brasil247.com
As discriminações e as dificuldades estão às claras. Não se pode mais tentar tapar o sol com a peneira. É preciso ter olhos de ver e ouvidos de ouvir para que a história seja, finalmente, outra
O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) desenvolveu uma teoria social que serviu para alargar o campo dos estudos sociológicos voltados à elucidação dos processos de interação humana no âmbito da sociedade. Segundo ele, nos séculos XVII e XVIII, na maioria dos países da Europa ocidental havia o que chamou de sociedade de corte, destacando especificamente a francesa. Nesse período não eram as cidades, e sim a corte que constituía o centro representativo, o local de origem de toda a experiência e toda a compreensão do homem e do mundo. O sociólogo afirma que as cortes foram se transformando em modelos concretos e centros formadores de disseminadores do estilo. Mais além, significaram fonte e origem de modelos de comportamento.
A formação gradual dessa sociedade de corte veio acompanhada por uma civilização baseada nos modelos da classe superior e evidencia a maior contenção e regulação dos anseios e o aumento do controle social. Nessa sociedade o que predominava era o consumo por prestígio e status, com a finalidade de manter sua posição social. Elias afirma que “... Alguém que não pode mostrar-se de acordo com o seu nível perde o respeito da sociedade. Permanece atrás de seus concorrentes numa disputa incessante por status e prestígio, correndo o risco de ficar arruinado e ter de abandonar a esfera de convivência do grupo de pessoas de seu nível e status ...” Nesse modelo social cada qual conhecia seu lugar e o respeitava. Especialmente as roupas, expressão de elegância e poder, significavam a linha divisória entre refinados e rudes.
Analisar as relações de poder e saber no contexto social implica considerar que o poder não é um objeto natural, mas uma prática social historicamente constituída que perpassou os séculos, em períodos interdependentes. Ao olharmos para uma pessoa imediatamente a julgamos pela aparência, pela roupa, pelo comportamento, pela etiqueta. E, desde esse momento formamos um conceito prévio a respeito desse ser humano. As cabeças e as condutas, por séculos e séculos, reproduzem a concepção de uma sociedade assentada em grupos diferenciados social, econômica e politicamente. E cada qual, dentro de um sistema de divisão e dominação de classes, deve estar em seu devido lugar.
Todos já ouvimos expressões como: “Tenho nojo de política”; “Estou com nojo deste país”, “Tenho nojo da sua cor e de seu cabelo” ; “Tenho ojeriza de sua sexualidade”.
Vemos constantemente pessoas demonstrando sua repulsa, sua ojeriza com expressões faciais tipicamente associadas com coisas que são percebidas como sujas e infecciosas ao avistarem moradores de rua, usuários de drogas, carroceiros, catadores de lixo. Vemos ainda nos tempos atuais pessoas torcendo o nariz para outras pessoas, aquelas “da classe social baixa” e que estão nos aeroportos para viajarem pela primeira vez de avião. Ou médicas cubanas que, ao chegarem para trabalhar no Programa Mais Médicos que leva saúde da família nos rincões do país, áreas onde profissionais brasileiros não querem ir trabalhar, receberam um dos mais absurdos e preconceituosos comentários por parte da jornalista potiguar Michelline Borges: “Elas têm cara de empregada doméstica!” Repudiada nas redes sociais pela postura elitista, a jornalista retirou rapidamente sua página do Facebook. Ou ainda o médico negro cubano Juan Delgado que foi hostilizado com vaias por médicos cearenses, sendo chamado de escravo. Com dignidade, Juan respondeu: “escravo da saúde e dos pacientes doentes, pelo tempo que for necessário”.
Atitudes truculentas como essas mereceram desculpas públicas do governo brasileiro. Tanto o ministro da Saúde como a presidenta Dilma foram ao público para recriminar a discriminação, a ignorância e a xenofobia contra os médicos cubanos, que trouxeram sua capacitação e qualificação científica para trabalhar no programa brasileiro de atendimento à saúde da população que mais necessita.
E os rolezinhos? “O que esses meninos e meninas da periferia querem em nossos shoppings, nos centro das cidades? Tomar de assalto o espaço onde exibimos nossa nobreza? Que horror!”
A organização da sociedade da corte francesa tem se apresentado de forma ainda mais violenta no chamado processo de gentrificação. Ainda pouco conhecido como conceito, mas todos vivemos seus efeitos. Gentrificação é o nome que se dá à expulsão de moradores e/ou freqüentadores pobres de determinada região por meio de um conjunto de medidas socioeconômicas e urbanísticas. Atrás de propostas de revitalização de determinadas áreas para que fiquem bonitas e seguras, realizadas, em geral, próximo a bairros nobres ou a áreas comerciais, está o interesse econômico. Após a assepsia social, que “limpa” a pobreza expulsando-a em nome das leis de mercado, da segurança, da beleza local ocorre uma valorização absurda desses espaços.
Esses processos “revitalizadores” estão configurados na reprodução de desigualdades e na falta de garantias sociais para grande parcela da população. A desigual distribuição de bens sociais, a discriminação, o desrespeito às diferenças, a incerteza, a involução de valores não são anomalias; constituem o pensamento globalizado e o processo econômico atual.
A realidade brasileira, embora com suas características próprias, está integrada à tendência de fragmentação mundial. O modelo econômico neoliberal implantado no País produziu subjugados, pessoal e socialmente, com difícil perspectiva de transposição social. Lembramos que mudanças ocorreram com a implementação, nos últimos dez anos, de políticas governamentais de cunho social, o que trouxe perspectivas novas a milhões de pessoas.
Porém, há pessoas invalidadas pela estrutura econômica e social capitalista, decorrentes das novas exigências da competitividade, da concorrência e da redução de oportunidades; não há mais lugar para todas na sociedade e as que sobram são impelidas a acreditar em uma situação que se define como individual, lhes negando a possibilidade de ver que a história as tornou rejeitadas, discriminadas, descartáveis.
Não é coincidência que essas reflexões acontecem na semana em que ainda se propaga a abolição da escravidão (13 de maio) no Brasil. Desde 1888 as condições mudaram tão lentamente que quase não mudaram. Continuamos tão escravos de conceitos de beleza, elegância, etiqueta quanto na sociedade dos cortesãos franceses. E pior, a escravidão tomou outras formas e proporções. As pessoas continuam discriminadas pela cor, pela condição social, pela opção sexual, pelo gênero, pelo trabalho que realizam.
As discriminações, pelo seu exercício constante, violentam física, moral e psicologicamente e se configuram em espécies de escravidão. Aqueles que ousam não se enquadrar na etiqueta social formatada pelos reis, pela burguesia, pelas igrejas, pelos capitalistas, pelos ricos, pelos preconceituosos estão condenados aos grilhões da apartação social e são colocados nas senzalas a eles reservadas.
Há na sociedade brasileira a imposição do “se não os vemos eles não existem”. Então, empurremos, pois, essas pessoas para baixo do tapete, para os armários, para as periferias, para as ruas distantes e escuras. Até quando vamos fingir não ver o que enxergamos? Até quando vamos ignorar que os haitianos que fogem para o Brasil nos dizem respeito? Até quando a sociedade brasileira vai suportar a “normalidade” de falas contra bolsa família, contra cotas para negros e contra outras políticas sociais, críticas que vêm justamente dos que vão estudar no exterior pelo Programa Ciência sem Fronteira? Até quando vamos suportar sem reação efetiva a virada de rosto daqueles que se julgam superiores e que colocam cada grupo no lugar que julgam que o pertence? Até quando vamos ignorar Zumbi dos Palmares e sua luta por libertação não somente de um povo, mas por libertação de conceitos e preconceitos que nos amarram, nos submetem, nos fazem cada dia menos humanos? Até quando...?
Nem se discute que as discriminações e as dificuldades estão às claras. Não se pode mais tentar tapar o sol com a peneira. É preciso ter olhos de ver e ouvidos de ouvir para que a história seja, finalmente, outra.
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