quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Edson França: Movimento negro no caminho certo da longa jornada

Edson França*
O título desse artigo, cujo objetivo é avaliar a luta do movimento negro e apresentar perspectivas, é a frase que sintetiza o texto, pois a luta contra o racismo e promoção social da população negra no Brasil acumulou importantes vitórias, o movimento social negro está mais maduro e em condições de estabelecer como foco a luta política para ascensão de negras e negros aos espaços de poder e no poder executar uma agenda que mitigue as desvantagens sociais, políticas, culturais e econômicas que há cinco séculos aprisionam a população negra. O movimento negro está no caminho certo da longa jornada para superação do racismo e seus nefastos desdobramentos na sociedade brasileira.

Encerramento de uma década

Em 2013 encerramos uma década da experiência de implantação das políticas públicas de igualdade racial propostas por Lula e continuadas por Dilma Rousseff, o marco inaugural foi a sanção da Lei 10.639/03 em 09 de janeiro de 2003, que institui a obrigatoriedade da inclusão da História da África e da Cultura Afrobrasileira nos currículos escolares e, logo após, em 21 de março do mesmo ano, a instituição da SEPPIR. Entre 2003 aos dias atuais algumas medidas no campo da igualdade racial, com impactos diferenciados, foram adotadas, colocando o Brasil diante de um processo pioneiro de promoção social da população negra – a base para essa afirmação são a subestimação, resistência e omissão dos governos anteriores nessa matéria.

Há certa ambiguidade na postura do governo federal em matéria de política de igualdade racial, pois a última década foi fértil em elaboração, bem discursiva e carente de prática, vimos propostas e leis não saírem do papel. No entanto, as diversas formas de transferências de renda com vista a superar a pobreza e o foco na educação são destaques importantes de políticas públicas que produziram benefícios concretos para população negra e resgataram direitos negados desde a abolição.

As transferências de recursos através do Programa Bolsa Família, principal vitrine do governo federal junto a parcela mais marginalizada economicamente do povo, foram fundamentais para superar a extrema pobreza de parcela significativa da população brasileira, todos sabem que a fome tem pressa, não pode esperar. O Plano de Ação da Conferência de Durban prevê o enfrentamento da pobreza como uma medida importante na superação dos desdobramentos do racismo e os Objetivos do Milênio instam os países a erradicar a fome e a miséria, por isso Lula e Dilma seguem em coerência com os resultados dos documentos que o Brasil é signatário. Apesar de as transferências de renda, na forma adotada, serem medidas meritórias, não emancipam os beneficiários, por isso, consideramos que elas, a despeito da importância e do grande apelo e aceitação popular, devam ser emergenciais, temporárias e acompanhadas por uma política de valorização do trabalho e geração de renda, o trabalho descente emancipa.

Considerando que 73% dos cadastrados no programa Bolsa Família são negros (dados do Ministério de Desenvolvimento Social – MDS), interessa a sociedade civil, especialmente ao movimento negro, exigir políticas públicas estruturantes, como forma de progressão das políticas de transferências, visto que isoladas tornam potenciais estimuladoras de dependência. Ao completar 12 anos de governo e caminhando para mais uma vitória, as forças sociais e políticas que o sustentaram não podem considerar razoável que o Programa Bolsa Família continue sendo o carro chefe das políticas sociais no Brasil.

Foi importante o pronunciamento do STF sobre a legalidade e legitimidade das ações afirmativas e cotas para negros nas universidades públicas, pois abriu espaço para aprovação da lei federal que institui as cotas, aprofundando um virtuoso processo de inclusão de negros e pobres nas universidades públicas. Hoje, se somarmos iniciativas como o PROUNI, REUNI, cotas sociorraciais e várias modalidades de inclusão, verificaremos que mais de um milhão de negros se matriculam anualmente nas universidades. Trata-se de uma conquista fundamental dada a característica emancipadora da educação e, certamente, contribuirá para criar uma classe média negra capaz de enfrentar o racismo em patamar superior.

Os pontos frágeis do modelo em curso para igualdade racial são salientados no acirramento da violência; no genocídio contra a juventude negra que exigiu dois pronunciamentos da Presidenta sobre o tema; na super lotação e caos no sistema carcerário, explicitado pelo caso de Pedrinhas no Maranhão; na manutenção das desigualdades sociais, políticas e econômicas; na presença majoritária dos negros nos estratos subalternos da população brasileira; nos lucros recordes realizados pela oligarquia que comanda o sistema financeiro e na crescente desindustrialização nacional. O país precisa de uma pujante agenda desenvolvimentista, pois, economias fortemente parasitárias como a brasileira não tem energia para sustentar mudanças estruturais que promova socioeconomicamente grandes contingentes populacionais, tal qual a exigida para superação do racismo no Brasil.

Verificamos que ao longo dos últimos dez anos todas as políticas focadas para os interesses dos trabalhadores, movimentos sociais e segmentos em situação de vulnerabilidade (povos indígenas, população negra, mulheres, jovens, população LGBT, dentre outras) receberam dura resistência das forças políticas partidárias que representam o capital, mais precisamente DEM, PSDB e PPS. A pressão da direita racista, golpista e conservadora, a despeito das derrotas eleitorais, mantêm-se forte e enraizada no Congresso Nacional; em governo de estados e em capitais importantes, destacadamente, São Paulo e Minas Gerais, Salvador e Curitiba; nos grandes meios de comunicação e no judiciário, acirrada pela postura do Presidente do STF e a maioria dos Ministros na ação Penal 470.

Fica patente que as forças progressistas além de impor novas derrotas eleitorais ao conservadorismo precisarão enfrentar com destemor e maior convicção a guerra pela hegemonia na sociedade, desenvolver o Brasil com distribuição de renda e equidade social. Contar com a governabilidade oferecida pela aliança parlamentar formada no Congresso Nacional e na conciliação de classes não será possível, alguém tem que ceder, abrir mão de privilégio e o povo sempre cedeu. Para avançar, a pauta das reformas (comunicação, política, judiciária, tributária, agrária e urbana) deve se constituir em prioridade a ser construída com o povo.

Não há possibilidade de avanços efetivos na agenda antirracismo e social enquanto setores conservadores estiverem fortalecidos, enquanto o estado nacional tiver uma estrutura burocrática burguesa, voltada a atender a classe dominante. A plataforma do movimento negro incide sobre privilégios políticos e econômicos da elite, em última instância, é uma plataforma classista, pois não se estabelece justiça recrudescendo ou consolidando desigualdade.

Dilma fica

O cenário político tem apontado para vitória de Dilma Rousseff na eleição que se avizinha, segundo última pesquisa IBOPE, encomendada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), subiu de 37% a 43% o índice de aprovação da Presidenta. A oposição conservadora representada pelo trio PSDB, DEM e PPS encontra-se fragilizada e dividida, sem alternativa viável ao Brasil, sem uma agenda positiva com vista ao desenvolvimento socioeconômico da nação, com o núcleo duro, formado majoritariamente pelo PSDB paulista, mergulhado em denúncia de corrupção, de modo que continua ao encargo da grande mídia o papel ativo de oposição conservadora ao projeto popular em curso. É crescente a possibilidade de total dispersão do trio oposicionista no próximo pleito eleitoral.

A dita terceira via formada pela aliança entre Eduardo Campos e Marina Silva está com dificuldade de viabilizar-se, não dispõem de afinidade político programática, as duas principais lideranças disputam protagonismo, ambos perderam aliados e palanques estaduais fundamentais na construção da alternativa à Presidência da República. Há que se destacar que Marina e Campos (ou Campos e Marina) não têm espaços à esquerda para crescer, as alianças que, possivelmente, atrairão devem vir do espólio da fragmentação do consorcio conservador que compôs a principal oposição a Lula, Dilma e as políticas sociais por eles implantadas. O movimento negro tem um projeto de esquerda consolidado, qualquer alternativa cujo núcleo político seja hegemonicamente conservador será um prejuízo ao movimento e um atraso ao país.

No entanto, não podemos considerar Dilma invencível nessa eleição, a principal ameaça para sua vitória eleitoral é a crise econômica. A crise continua impactando fortemente nas principais economias globais e na periferia do euro, destruindo economias, arrasando o estado de bem estar social implantado na Europa, estimulando remédios antipopulares e despertando a sanha beligerante do imperialismo.

Segundo dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Ong Oxfam Intermón no Fórum Econômico Mundial de Davos, de 2008 a 2013 a crise mundial desempregou 62 milhões de trabalhadores e intensificou a concentração de rendas a índices recordes, hoje metade da riqueza mundial está concentrada nas mãos de uma elite composta por 1% da população, é estimado que em 2018 haverá 215 milhões de desempregados no mundo. Há anos a UNEGRO tem dito que a crise não nos interessa, pois ela transforma raça e gênero em critério de oportunidade e qualidade de trabalho, recrudescendo o racismo, a xenofobia e várias formas de intolerâncias.

Não se deve descartar a possibilidade da crise corroer a economia nacional. A capacidade de Dilma, ao contrário dos governos europeus, apresentar alternativa não regressiva, que melhore a qualidade de vida dos brasileiros, desenvolva o país, assegure empregos de qualidade e os direitos sociais e trabalhistas garantirá sua permanência no mais alto cargo da República.

O movimento negro não pode ter dúvida, deve garantir os avanços conquistados e exigir mais, apesar da dificuldade de setores da esquerda brasileira em compreender com maior profundidade o protesto negro (como dizia Clóvis Moura), é no campo popular e democrático que se encontram as possibilidades de realizar a plataforma antirracismo, pois a luta contra o racismo é também uma luta de classe.



Democracia negada

A UNEGRO compreende que o racismo e seus agravos dificilmente serão superados com a ausência da população negra nos espaços de poder e decisão, consideramos um grave defeito da jovem democracia brasileira a profunda sub-representação de negros e negras nos espaços de representação e decisão política.

Trata-se de uma distorção que os números não tergiversam, denunciam: dos 40 ministérios do Governo Dilma, apenas o da Igualdade Racial a titular da pasta é uma mulher negra; dentre as 50 maiores estatais nacionais apenas a BAHIAGÁS (estatal baiana) é presidida por um negro; o Congresso Nacional é composto por 8,3% de negros, enquanto 50,6% dos brasileiros são negros, além de contarmos com a lamentável ausência de representação negra em algumas assembleias legislativas e câmaras de vereadores em Capitais.

Outro ponto sensível sobre população negra e sub-representatividade política é que em todo Congresso Nacional apenas um deputado é militante orgânico do movimento negro (Luiz Alberto – PT/BA e MNU), assim como são raríssimas as presenças de negras ou negros orgânicos do movimento negro nos ministérios – sem contar a SEPPIR e Fundação Cultural Palmares (não tenho o número exato, mas arrisco dizer que há dois no MEC, um no Ministério da Saúde, uma na Secretaria da Juventude e uma no MDA, total de cinco militantes orgânicos em todos os ministérios, excetuando a SEPPIR e MINC onde se aloja a Fundação Palmares), ou seja, o movimento negro é um movimento social praticamente sem representação política. Daí a dificuldade das propostas relacionadas com a questão racial serem aprovadas no Parlamento e implementadas pelo Executivo.

Considero que somente o racismo explica a iniquidade da sub-representação da população negra nos espaços de poder e decisão, trata-se um poderoso fator de desestimulação da participação política da população negra, potencial gerador de tensão no seio do povo e um dos mais graves problemas políticos da democracia brasileira na atualidade.

Democracia é um conceito consolidado desde a Grécia Clássica, “governo do povo pelo povo”, ou seja, governo em que o povo exerce soberania. A distância da população negra nos legislativos e executivos brasileiros se constitui num sequestro da soberania e negação da democracia. Deve ser tratado como uma importante questão nacional, pois não há caminhos seguros para uma profunda unidade do povo, desenvolvimento justo e sustentável e futuro promissor ao Brasil enquanto não vencer o racismo incorporando política e economicamente mais da metade de sua população.

Em 2014 o movimento negro deve dar um profundo mergulho nos esforços dos movimentos sociais e políticos de impor a reforma política, uma reforma que privilegie a participação popular, fortaleça os partidos, supere o impacto do capital nos resultados eleitorais, combata a sub-representação de mulheres, negros e jovens dos espaços de poder. Essa deve ser a mãe das reformas e prioridade na agenda democrática.

Agenda eleitoral e a luta contra o racismo

Nos anos pares, a cada biênio, ocorre eleição no Brasil, apesar da energia e recursos desprendidos, essa agenda tem beneficiado a democracia brasileira, na medida em que o mundo político, a classe dominante e o senso comum se atentam e mobilizam para o debate analisando o passado e projetando o futuro. Apesar de certo rebaixamento nos conteúdos dos debates promovido pela direita populista, gradativamente a consciência política do povo vai aumentando, o processo eleitoral tem também caráter pedagógico. Avaliam os governos, novos compromissos são estabelecidos e outros reiterados, de modo que a agenda eleitoral brasileira é terreno árido para acomodação.

O movimento negro tem aprimorado sua participação no debate eleitoral em todos os níveis, desde as contribuições de Abdias do Nascimento no governo Brizola (RJ) e no Parlamento (Câmara e Senado), logo após a Ditadura Militar aos dias atuais. Registro como marco importante da questão eleitoral e luta antirracismo a formulação do caderno “Brasil Sem Racismo”, que compôs o vitorioso “Programa de Governo 2002 Coligação Lula Presidente”, estabeleceu as bases da “Política de Igualdade Racial”, em processo de implantação em todo país desde 2003. Assim, verificamos a importância da eleição no processo político de superação do racismo, por isso deve ser a agenda prioritária para o movimento em 2014.

Devemos trabalhar para que o voto negro vá para candidaturas negras e/ou de esquerda, comprometida com a plataforma do movimento negro, com o desenvolvimento nacional, com os interesses dos trabalhadores, dos movimentos sociais e do povo. Não devemos estimular a ideia de que qualquer negro pode representar os anseios do movimento negro ou qualquer branco não pode representar.

A prioridade do movimento negro nessa eleição deve ser eleger um grande número de negros e progressistas para as assembleias estaduais, câmara federal, senado, governos de estados e Dilma para Presidência da República; acumular força para exigir a execução da plataforma antirracismo; introduzir o debate sobre a dificuldade de negros votarem em candidaturas negras e de esquerda; abrir espaço político para incluir negros e negras nas composições dos futuros governos; e consolidar lideranças negras nos cenários estaduais.

A atual pauta política do movimento negro deve está presente no debate eleitoral, devemos denunciar e propor medidas contra o genocídio que tem dizimado a juventude negra; dar consecução na agenda quilombola; instituir o SINAPIR; qualificar as estruturas governamentais de igualdade racial; prevê um volume de recursos digno para implantação das políticas de igualdade racial, ajustar a implantação das cotas nas universidades e incluir negras e negros em todos os escalões dos serviços públicos; e implementar definitivamente o estatuto da Igualdade Racial. 



Movimentos sociais são atores políticos relevantes

A grata surpresa em 2013 foi as mobilizações populares de junho, marco de um novo levante de massa, dessa vez se caracterizou pelo caráter espontâneo, logo, sem o controle dos Partidos e dos movimentos sociais brasileiro. Desde os eventos das “Diretas Já” e “Fora Collor” não ocorria no país manifestações de massas na proporção das que iniciaram em junho de 2013. Apesar de ainda não estar completamente estabilizado esse processo e de não ter posições definitivas e peremptórias sobre causas, impactos e significados desse histórico levante popular, um resultado legou: fortaleceu o caráter político dos movimentos sociais e sua condição de interferir na agenda nacional.

No Brasil o movimento negro sempre teve projeto de minoria, focado na resistência dos agravos do racismo, isso tem dificultado maiores avanços, visto que as ações de minorias marginalizadas geralmente são introspectivas, ou seja, de domínio exclusivo do campo. Prova disso é o desconhecimento do senso comum dos movimentos sociais da pauta antirracismo, só tem conhecimento das cotas.

Considero que para o movimento negro ajustar sua política a altura das exigências que uma maioria populacional impõe, tem que investir mais na unidade e ampliação de sua base social, propor também para além da esfera do racismo, pensar mais integralmente o Brasil. Para isso tem que construir mais pontes com outros segmentos dos movimentos sociais e inserir as reivindicações voltadas a superação dos impactos do racismo no processo da luta popular pelas mudanças. Por isso é fundamental compor espaços de articulação local e nacional como a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), Fórum Social Mundial (FSM), agendas como as pautadas pelas Centrais Sindicais, movimentos de juventude, feminista, LGBT, comunitário, ambiental, dentre outros.

Não vislumbro saídas isoladas para o movimento negro, parte fundamental das reivindicações de todos os segmentos dos movimentos sociais é econômica, diz respeito a quem se destina a maior fatia dos recursos públicos e a grande concentração de riquezas nas mãos de poucos. O movimento negro, de forma organizada, deve se fazer presente na luta para mudança na política econômica, substrato de todas as batalhas, e ajudar construir um país justo e sem racismo.


*Edson França 
Presidente da UNEGRO
Historiador. Membro do Comitê Central do PCdoB. Membro do Conselho Nacional de Igualdade Racial - CNPIR, na vaga de Notório Reconhecimento em Relações Raciais.
www.unegro.org.br

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