publicado: blogueirasnegras.org
Precisamos falar sobre apropriação de cultura.
“Se cantar pra boy é evolução, eu vou morrer conservador.”
Eduardo, ex Facção central.
Aconteceu com o rock, com o jazz, com o samba, agora está acontecendo aos poucos com o pagode, com o funk e com o rap. Parece até que é um caminho natural da cultura negra, parece comum assistirmos o que é produzido pelos nossos, ser de alguma forma “silenciosa” e sorrateira, apropriado pelos mais favorecidos (brancos, classe média e alta) e transformado em algo embranquecido, folclórico, afastado de suas raízes. A apropriação de cultura é uma questão que deve ser levada a sério, mas ainda não é. Ainda só prestamos atenção quando algo muito “grande” acontece, ou seja, uma black face ali, um debochezinho aqui ou um show de artista negro pra um público completamente branco e rico, mas não deve ser assim. A ofensa não deve ser só levada a sério quando é direta, deve ser levada a sério também quando é indireta, quando tenta ser invisível.
O maior problema da apropriação de cultura é que ela, como qualquer mecanismo racista, tem o propósito de excluir o negro dos espaços, dar um novo formato pra sua identidade, limitar sua maneira de se expressar, criando uma nova cultura mais acessível e mais comerciável. Esse mecanismo faz o trabalho de substituir, de uma forma esdrúxula e direta, o negro pelo branco, um branco que vai buscar fazer exatamente o que o negro faz, mas com o bônus da cor que é mais aceitável e que deixa tudo mais bonito. Assim, sempre com o propósito de comercializar, a apropriação de cultura facilita a passagem pela mídia, a comercialização da cultura fica mais fácil, o capital corre tranquilamente.
Dessa forma ela exclui e invisibiliza o negro e o favelado , tornando esse processo cada vez mais engenhoso e que acontece por baixo dos panos, um racismo disfarçado de moda, de apreciação. Às vezes nós negros somos enganados com isso, pois essa apropriação tem diversas faces. Pra escurecer um pouquinho vou lançar um breve exemplo disso: podemos pensar na chegada de Elvis Presley na música americana. Ignorando toda a questão do artista e seu talento, não precisamos fazer muita força pra perceber que existia toda uma lógica de mercado por trás do surgimento desse ícone. O modo que ele dançava, o jeito que ele cantava, era um estilo completamente influenciado pela cultura negra e por artistas negros, artistas que obviamente causavam grande fervor na época como Little Richard e Chubby Checker, dentre outros.
Os brancos incomodados com o talento que os negros tinham e com o efeito que causavam nos jovens da época decidiram criar um ícone só deles que pudesse abafar esse fervor todo que a música negra causava. Funcionou muito bem, por isso hoje chamam Elvis de rei do rock-and-roll ignorando toda a história negra que existiu antes dele e isso é, sem dúvida, apropriação de cultura seguida da disseminação de uma história embranquecida.
Mas vamos falar um pouco do que está acontecendo agora, especificamente na cena musical brasileira. O maior exemplo de apropriação de cultura pode ser observado em alguns bailes funk que acontecem dentro das favelas hoje, direcionados apenas pra elite branca com ingressos custando 150 reais ou mais. O funk que era visto pela mídia como uma cultura que não presta, hoje atrai a classe média em peso, a ponto de saírem das suas casas bem localizadas e confortáveis para invadirem a periferia. Do outro lado, vemos também alguns artistas renomados como Seu Jorge, que recentemente fez um show em uma festa chamada VIP, onde a elite coxinha se reuniu para assistir o jogo de Brasil e México. Os ingressos custavam até 1000 reais e o único negro no lugar era o artista. Outro caso é o artista Criolo (ex Doido), que fez um show só para artistas da Globo onde o valor dos ingressos beirava os 200 reais.
Daí surge à questão: o negro só é moda quando vira produto? O rapper Criolo não representa o rap nacional e dentro da favela são raras as pessoas que conhecem seu trabalho. Mas o discurso dele, as músicas, todo o repertório é construído em cima de um cotidiano de favela, de empoderamento do povo negro. O mesmo acontece com o Seu Jorge. Por que o negro favelado não pode assistir aos seus shows e por que essa mensagem não chega mais até esse determinado grupo? Porque a música que eles produzem virou consumo apenas para a classe média branca?
Grande parte dessa classe média branca que invade a favela e faz aparições em shows de artistas negros acha o negro muito agradável para conviver, “tem amigos negros”, mas só quando esse negro serve pra alguma coisa, quando ele é “útil”. Quando acham que podem fazer uso da arte que esse negro produz, quando esse negro é uma peça de entretenimento e também quando podem usufruir do seu trabalho braçal – a maneira mais antiga de exploração – porque afinal de contas precisa do porteiro, do motorista, da empregada sempre a postos pra ajudar no que for preciso.
A questão é que escutar Criolo, Seu Jorge, usar dreads, turbante, ir em baile funk na favela, todas essas coisas não fazem ninguém menos racista e precisamos abrir os nossos olhos pra isso. Estamos afundados nesse processo todo. Nosso papel enquanto negras e negros é tentar ao máximo valorizar a nossa cultura de raiz, propagar o amor a nossa raça, se incluir e criar espaços afrocentrados, juntar forças e nos abraçar uns aos outros. Essa é a única arma, esse é o único jeito de lutar contra esse sistema que tenta nos esmagar todos os dias.
Precisamos acima de tudo perceber que o racismo continua impregnado dentro desses movimentos que dizem que “o preto está na moda”. Só porque a classe média branca gosta do que o negro produz não quer dizer que ela gosta de conviver com o negro nos seus espaços diários, que ela não pratique racismo todo o dia com seu porteiro, com sua empregada. A questão pontual é essa: porque o negro não está na moda quando o assunto é o extermínio da juventude negra? Por que não está na moda quando as nossas estatísticas de desemprego, população carcerária, população de rua, subempregos é mais alta? Por isso a apropriação de cultura não é bonita, não me agrada, não é um elogio, é um processo racista que infelizmente não nos damos conta por completo ainda. No entanto precisamos, precisamos muito falar mais sobre isso.
Referências
Criolo: http://www.rapnacionaldownload.com.br/novidades/criolo-ex-doido-faz-show-rio-com-ingresso-caro-e-cheio-de-celebridades/
Seu Jorge: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/seu-jorge-na-festa-da-copa-dos-coxinhas/
baile funk: http://revistadonna.clicrbs.com.br/2013/11/02/no-rio-de-janeiro-ingresso-para-baile-funk-na-favela-custa-no-minimo-r-150/
jovens brancas funkeiras classe média: http://revistadonna.clicrbs.com.br/2014/05/30/thamires-tancredi-de-iniciante-a-hard-as-funkeiras-que-vao-estar-no-baile-da-favorita/Acompanhe nossas atividades, participe de nossas discussões e escreva com a gente.
Mara Gomes* é estudante de psicologia, apaixonadíssima por quatro efes: Feminismo, Filosofia, Foucault e Frida Kahlo. Administra a página A Mulher negra e o Feminismo e alimenta ainda aquele velho sonho de mudar o mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário