terça-feira, 29 de julho de 2014

Elas no Grafite

Gabriela Soutello e Patrícia Homsi

Grafite de Jana Joana, de São Paulo
publicado na revista Cult
Na calçada estreita de uma travessa entre as ruas Clélia e Coriolano, no bairro da Lapa, Carolina Maciel, Magrela ou simplesmente Mag, de 28 anos, e Fefa, amiga e parceira de pinturas, posicionam seus carrinhos de compras abastecidos de galões e embalagens de tinta spray. O sol forte, o calor e a necessidade de ganhar mobilidade levam Mag a erguer a saia longa, manchada de pinturas anteriores.

O cabelo, porém, continua solto, enquanto a artista desenha os primeiros traços. Os carros que transitam por ali são poucos, mas exigem que as duas se protejam rapidamente na calçada. Uma Kombi passa com cuidado. O motorista deseja “bom trabalho” às meninas. Depois, uma simpática senhora pede: “Continuem fazendo esse trabalho bonito. Isso é que é arte! Se precisarem tomar uma água, eu moro na segunda casa, bem aqui!”.

Há quem não considere o grafite arte. Para estes, trata-se de mera pichação. Há quem diga que é “coisa de adolescentes” e culpe grafiteiros e grafiteiras pela “deterioração do espaço público”. Mas há também os que se surpreendem positivamente com o movimento, que avança pelas cidades, transforma muros e prédios abandonados, chega às paredes mais altas, aos túneis e viadutos.

Frequentemente associado à pintura rupestre, o grafite surgiu na década de 1970, nos guetos da cidade de Nova Iorque, Estados Unidos. Hoje, é visto como elemento cultural imerso no movimento hip hop, acoplado ao break, ao rap e às figuras de DJs e MCs. Entre tubos, sprays, pincéis e rolinhos, o grafite se faz presente como intervenção artística na paisagem urbana.

Para Sista Kátia, nascida há 27 anos em Salvador e grafiteira desde os 15, “o grafite ainda é a arte dos excluídos, é a anti-arte”. Tendo crescido em contato direto com o movimento nas ruas, Kátia defende o grafite também como manifestação social. “É a forma mais pura de a gente se manifestar, seja para dizer coisas boas ou ruins ou soltar um grito. É o reflexo do que a gente está vivendo hoje”, diz.

“Pode representar tanto um apelo estético de flores numa casa abandonada, um embelezamento no cinza, ou frases enormes de protesto, como se viu muito nas manifestações de junho”, acrescenta. Para ela, “o grafite vai servir sempre como uma forma de mostrar que a gente está viva e percebe tudo o que está acontecendo”.

Verônica Amores, de São Paulo

Panmela Castro, artista carioca de 32 anos, também considera o grafite uma forma de expressão e interação com as pessoas. “Quando eu botava tinta na parede, todo mundo queria falar comigo. Criei a boneca boladona, um tanto autobiográfica, porque estava insatisfeita e queria falar com as pessoas, mas era muito tímida”, explica.

Histórias contadas nos muros

Ligada ao feminismo e ao anarquismo desde a adolescência, Sista Kátia foi apresentada aos muros por amigos homens, e logo surgiu o desejo de quebrar estereótipos femininos por meio de uma pintura própria: “Comecei a pintar com meninos e os temas eram sempre ligados ao cotidiano deles”, diz. Por isso, ela criou uma boneca gordinha, desenhada sem roupas, de cabelos ora cacheados, ora trançados, ora no estilo black power.

“A ideia é questionar o belo e o padrão imposto”, diz. “Se a gente não se encaixa, fica no limbo. Por que eu tenho que emagrecer, alisar o cabelo, ser alta?”. Em busca da continuidade de sua personagem em meios mais receptivos, Kátia decidiu formar grupos femininos de grafite e pintar conforme sua temática preferida.

Nas mulheres de Panmela Castro, o padrão é representado como uma prisão. “Eu trabalho com tons quentes, rosa, vermelho, que são cores femininas. Não que eu ache que a mulher feminina é necessariamente essa, mas falo dessa prisão que é o estereótipo da mulher rosa, delicada, de cabelos longos. As minhas mulheres estão presas a isso, por isso estão sempre tristes e cheias de lágrimas”, explica.

As personagens de Mag também são desenhadas em cores quentes, principalmente em laranja. A artista tenta expressar tudo o que a incomoda relacionado à sociedade. “Quando eu expresso o que sinto como mulher, a dor faz com que as mulheres se identifiquem com aquilo”, diz. Segundo ela, existem diferenças também na apreensão de homens e mulheres: “Elas acham maravilhoso; já os homens acham forte demais. Até se incomodam um pouco”, conta Mag.

Mag Magrela, de São Paulo

“Cada trabalho quer passar uma mensagem e cada muro é uma história diferente”, afirma Nina Pandolfo, que tem 36 anos e hoje pinta em tela – mas que já passou por suportes como madeira, vidro, parede e até pedra. “Teve uma vez em que eu passei em uma rua que tinha meninas prostitutas de 14, 15 anos. Para protestar, pintei meninas de calcinha. Chegou um cara e falou que eu estava pintando pornô, e eu respondi: o que é pior, a pintura ou a realidade?”.

Nina teve seu primeiro contato com o grafite aos 13 anos, quando participou de uma oficina em uma sala só de meninos. O professor, quando a viu, disse de imediato: “Olha, aqui é um curso de grafite, viu?”. Nina não se intimidou: assentiu e entrou. Já havia feito teatro de rua e passado a observar o espaço público como um suporte alternativo para seus trabalhos artísticos. “Na primeira vez em que eu pintei na rua, não estava preocupada com a polícia, com o proibido. Minha adrenalina era conseguir passar um desenho de 15 centímetros para uma parede de 6 metros”.

Esta integração com o espaço também é fundamental para Jana Joana, de 35 anos, que carrega o grafite como sinônimo de arte livre. A grafiteira desenha e pinta desde os oito, a partir de um curso de iniciação artística que fez em São Paulo. Quando foi às ruas, entre os 19 e os 20 anos, Jana começou usando látex e tintas nacionais “bastante aguadas”, por conta dos altos custos dos sprays, o que deixava suas pinturas, segundo ela, com ares de aquarela, o que se tornou predominante no grafite nacional. “Acabei desenvolvendo uma técnica mais minha, adaptada às condições que tinha. Se é isso que a gente tem, é com isso que a gente vai transformar o mundo!”, diz.

No traço de Jana Joana percebe-se a busca da máxima identificação com a mulher: o selfie e o empoderamento, “mesmo na rua, um mundo um pouco mais masculino”. Tendo por objetivo principal alguma transformação no receptor de sua arte, Jana afirma: “Gosto de pensar que estou ajudando alguém a se encontrar. É uma pretensão: a gente manda uma mensagem e ela vai ser recebida de acordo com o receptor”.

Foi também pensando em aproveitar o canal direto com as pessoas, de impacto imediato que Nina Pandolfo saiu grafitando as ruas. “É uma arte efêmera, pode durar uma hora, um dia, um ano, você não sabe. É difícil construir uma história que seja perpetuada, que você passe e fale: ‘olha aqui, é um grafite da minha tataravó!’”.

Sista Kátia, de Salvador

Barreiras

Nos anos 1990, o grafite invadiu as ruas com mais força e repercussão. Em consequência, veio também a repressão. “Na época, você não sabia se era porque você é mulher ou se era por se tratar de algo novo”, afirma Nina. “Como com tudo que é novo, as pessoas ficam em dúvida se gostam ou não”.

Segundo Verônica Amores, de 34 anos, “por vivermos em uma sociedade machista, patriarcal e violenta, o fato de ser grafiteira requer muito mais cuidado do que quando se é um grafiteiro homem”. Para ela, “pintar na rua é sempre uma missão, um desafio, porque a gente nunca sabe o que vai encontrar”, diz. “A rua é viva, é perigosa, abraça a gente”. Mag acredita que a energia positiva direcionada à ação acaba atraindo atitudes boas dos passantes, mas é necessário vigiar o caos do lado de trás. “Eu estou de costas para o mundo, mas a mochila é como uma armadura”, brinca.

“Tem essa coisa de ficar ligada, saber evitar uma situação de risco, evitar comentários que não sejam bacanas”, ressalta Sista Kátia. “Tem gente que acha que pode fazer alguma coisa pelo fato de você estar sozinha pintando o muro, se expondo”.

Apesar das dificuldades, Mag afirma que o fato de ser mulher também impõe mais confiança na hora de conseguir autorização para pintar um muro. “Sinto mais facilidades do que barreiras na rua. É muito mais fácil que alguém confie em mim, por ser mulher, para pintar um muro”, expressa Mag. “Não é fácil dar a cara para bater, mas é gratificante deixar que todas as pessoas que passam pelo meu trabalho entrem no meu mundo”, conclui.

Panmela Castro, do Rio de Janeiro

Movimento
Por ser uma arte ligada ao hip hop, afirma Sista Kátia, as atitudes acabam prevalecendo em relação ao diálogo, e diferenças são encaradas “de uma maneira muito mais tranquila”. “É no muro que a gente vê quem é quem: se a menina pinta melhor que dez caras no evento, os dez caras vão rodar”.

Foi Sista Kátia quem criou o movimento Sistas Crew (2007), destinado a meninas grafiteiras com a ideia de promover encontros para, além de grafitar, articular um processo de formação política: “A gente se juntou com uma rede de grafiteiras brasileiras que hoje nem existe mais e fez o Encontro Nacional de Grafiteiras, que durou quatro dias e juntou pelo menos 50 meninas em Salvador”.

Também no intuito de controlar a disparidade entre homens e mulheres no grafite, a artista Panmela Castro criou a Rede Nami, que organiza as grafiteiras e procura oportunidades para elas. “Várias coisas vão limitando a expressão e a convivência da mulher com a rua. Os trabalhos no grafite já são poucos, mesmo para os homens, então o objetivo da Nami é investir para que ambos tenham simplesmente as mesmas chances”, justifica.

Além de mobilizar artistas, a Rede Nami promove debates sobre violência contra a mulher – a própria Panmela foi vítima de abusos em seu primeiro casamento – e procura contar as histórias das vítimas nos muros. As discussões e projetos chegaram a cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador, levando oportunidades e conscientização a escolas, praças e paredes.

Kátia reitera a importância de “tornar a rede de grafiteiras algo consequente, não só estético”, que venha de um processo político. Para se ver que, seja simplesmente para se expressar artisticamente, seja para buscar a mudança, “as meninas não só pintam, como também têm opinião formada”.

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