quinta-feira, 10 de julho de 2014

Onde nascem os medos

Maria Rita

Maria Rita*

Uma das épocas mais deliciosas da vida é a primeira infância, vamos para a escola pelos nossos coleguinhas, pela “tia”, pelos desenhos, pelas brincadeiras, pelas estorinhas.
Como uma criança negra e gorda as brincadeiras nem sempre eram as mais divertidas, não preciso explicar que eu era praticamente um alvo pintado em branco e vermelho, mas de alguma forma eram situações contornáveis, embora fossem me afetar no futuro, não me limitavam, não me impediam de rir de outras antas situações e momentos. O mesmo já não aconteceu com as inocentes historinhas contadas pelas “tias”. Em 1985 existia a famigerada hora da estorinha, escolhíamos um livrinho ou a professora trazia a estória para compartilhar. Depois de Ou Isto ou Aquilo, Mãe que faz e acontece, A curiosidade premiada, eis que um dia foi compartilhada uma estória diferente.



Na maioria das estórias personagens branquinhos circulavam por mundos fantásticos, tudo era um mundo lindo e maravilhoso de aventuras, desventuras e diversão. Até que a estória diferente surgiu. Logo nos primeiros momentos do contar a minha atenção foi fisgado, o personagem principal da história se chamava Negrinho. Mas diferente de todas as outras historinhas a criança deste conto não brincava, ela estranhamente trabalhava e apanhava.
“E vou falar de um escravinho mais negro que carvão chamado exatamente de Negrinho. Não conhecia pai ou mãe e dizia que Nossa Senhora era sua madrinha. Apanhava do patrão e do filho que não era brincadeira.”
trecho de Negrinho do Pastoreio – Cecilia Meireles
Conforme a estória avançava a percepção de que Negrinho do Pastoreio não era uma criança feliz ia tomando conta do meu imaginário. Negrinho não era livre, ele tinha umdono, ele não era nem do pai, nem da mãe dele, era como se ele fosse um cachorro ou um gatinho.

Um belo dia Negrinho do pastoreio comete um erro, um erro que merece uma punição. Um estancieiro vizinho do Dono do Negrinho faz um desafio relacionado a um cavalo Baio. O negrinho deve apostar uma corrida montado neste cavalo e ele perde, e o castigo vem, não aquele esperado, de sentar num cantinho e pensar no que fez, ele “leva uma surra que eu vou te contar”. Como se não bastasse, delegam ao Negrinho então nesta mesma noite tomar conta dos animais do seu dono (pastorear), mas ele estava cansado, machucado e então dorme e perde os animais. Ele apanha novamente e desta vez ele é pendurado de cabeça pra baixo em cima de um formigueiro. As formigas então o devoraram. Neste ponto da história meu horror já era máximo, mas de alguma forma ficaria pior quando o Negrinho voltava a aparecer para o seu algoz.
O negrinho do Pastoreio é uma lenda afro-cristã muito contada no século XIX, que foi um pouco modificada no livro “Como Nascem as Estrelas” de Cecilia Meireles. Pode parecer um estória como outra qualquer, mas não sei se por identificação ou se porque a estória é realmente horrível e traumática (pelo menos para uma criança de 6 anos foi) mas eu tenho um absurdo medo de formigas até hoje, não importa o tamanho delas, não importa se estão sozinhas ou se existe um formigueiro, elas são seres malignos comedores de crianças.
Acredito que a intensão pedagógica desta leitura fosse só para trabalhar uma lenda, ou inserir o contexto da morte na vida de crianças tão pequenas, mas naquele momento não foi observada as especificidades de todos os alunos presentes. Tratar uma sala de aula toda como se ali houvessem personagens hegemônicos não configura de forma alguma a melhor metodologia de ensino.
Apesar deste fato ter ocorrido a mais de 20 anos, outros tantos aconteceram durante a minha vida acadêmica. Seria despreparo dos profissionais encarregados da minha educação, ou um despreparo de todo o sistema de ensino? Fico com a segunda opção. Se professores não percebem um aluno negro em sua sala de aula, o que dizer de alunos homo ou transexuais?
A escola atual ainda não está preparada para acolher a todos, ainda não sabe como humanizar a educação.
Quantos de nós carregam este tipo de lembrança amarga na memória? Me congela a alma o tempo todo a possibilidade do meu filho ser exposto a esse tipo de “estorinha”. Até quando o negro vai aparecer no contexto acadêmico apenas como escravo? Aparentemente o único momento na história da humanidade que tivemos alguma participação (neste caso até protagonismo, e esse eu dispensava).
Existem tantas outras lendas, tantos contos, tantos momentos históricos onde o negro não apenas está presente mas é herói, porque não estudar aquilo é positivo, aquilo que traz orgulho.
Pra quem quer uma alternativa as histórias de escravidão, existe por ai uma série de livros com histórias e lendas africanas que valem a pena:

Três contos africanos de adivinhação
Reconta três histórias vindas da literatura oral nigeriana . A ideia vai para além do cotar histórias, o livro desafia o leitor a solucionar enigmas que são apresentados as personagens antes do final da história. Os textos são resgates de narrativas africanas, cuja literatura tem como um dos propósitos transmitir ensinamentos de ética para uma boa convivência

Sikulume
São sete histórias africanas passadas num ambiente místico repleto de lendas e personagens fantásticos, tudo isso a partir do local de origem de seus ancestrais.
São histórias de amor, de coragem , superação e rola histórinha de terror também, mas ainda assim vale a pena. Sikulume pode ser visto como um resgate identitário e agente de formação de leitores afro-brasileiros.

 
Contos Africanos para Crianças Brasileiras
O Livro trás duas histórias de Uganda adaptados para leitores brasileiros, o primeiro fala sobre a inimizade do gato e do rato e o segundo fala sobre porque os jabuti tem o casco rachado.
O Livro ainda propõe que as crianças pesquisem outras versões da história para que reconheçam a riqueza e a diversidade das histórias.
Felizmente também existem filmes como Kirikou e a feiticeira e o incrível Contos da Noite(onde embora os personagens não tenham um tom de pele, a identificação, pelo menos em casa, foi imediata)
Histórias positivas são importantes, não devemos subestimar que identificação é necessária e influencia para o bem e para o mal. Por menos crianças com medo de seus destinos por serem aquilo que são, e pois mais estórias que nos deem prazer de ouvir.

Maria Rita*
Criei e escrevo o True Love, blog sobre cultura lésbica. Sou ,Gorda, Lésbica, Mãe, Balzaquiana e Baixinha. Apaixonada por café da manhã, livros e trilhas sonoras. Tenho medo de formigas e mortes idiotas. – “Coração de águia , inquietude de passarinho”

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