sábado, 13 de setembro de 2014

Racismo no Brasil é Institucional e Estrutural

Comunicado à imprensa divulgado pelo Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes a respeito da conclusão de sua visita oficial ao Brasil, que ocorreu entre os dias 3 e 13 de dezembro de 2013.

Confiram em áudio: http://bit.ly/1bD2hGQ

Crédito da foto: Ivone Alves/UNIC Rio

Brasília, 13 de dezembro de 2013. O Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes agradece ao governo do Brasil pelo convite para visitar o país para estudar a situação dos afro-brasileiros e pela sua excelente cooperação na condução de nossa visita. Queremos salientar que as opiniões expressas nesta declaração são de natureza preliminar e não são, portanto, abrangentes. Nossas conclusões e recomendações serão desenvolvidas plenamente quando nos reportarmos sobre a visita ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

No decorrer de nossa visita tivemos a oportunidade de nos reunir com inúmeros funcionários do governo federal, estadual e municipal, das Nações Unidas e interagir com a sociedade civil, incluindo comunidades negras em Brasília, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Nossa visita permitiu uma oportunidade única para compreender a situação dos direitos humanos dos afro-brasileiros. Os resultados preliminares de nossas amplas consultas e reuniões estão apresentados abaixo.

Durante os últimos 10 anos, o Brasil mostrou vontade política para superar o racismo e abordar as questões de igualdade racial enfrentadas pelos afro-brasileiros. O Brasil desenvolveu um conjunto de iniciativas consagradas pela Constituição, legislação infraconstitucional e políticas públicas de promoção da igualdade racial, cuja face mais visível são as ações afirmativas. A adoção da lei 10.639, em 2003, sobre o ensino da história e da cultura da África e dos afro-brasileiros nas escolas, é um passo importante no reconhecimento da contribuição dos negros para a construção da sociedade brasileira. O decreto n º. 4887, de 2003, e os decretos posteriores, reconhecem e definem os títulos de propriedade das comunidades quilombolas, têm por objetivo enfrentar a desigualdade socioeconômica e o direito à terra de um dos grupos mais marginalizados do país.

A adoção do Estatuto da Igualdade Racial em 2010 é um passo crucial na promoção da igualdade para os afro-brasileiros. A decisão da Suprema Corte em 2012 sobre a constitucionalidade das cotas raciais para acesso ao ensino superior, e as atuais discussões no Congresso sobre as cotas para cargos públicos, também são medidas para corrigir as desigualdades históricas que têm impedido que os afro-brasileiros tenham acesso a tais espaços.

Estamos conscientes de que, para superar o legado do colonialismo e da escravidão, os desafios enfrentados pelo Brasil são de enorme magnitude. As injustiças históricas continuam afetando profundamente a vida de milhões de afro-brasileiros e estão presentes em todos os níveis da sociedade brasileira. Os negros do país ainda sofrem racismo estrutural, institucional e interpessoal.

Apesar do compromisso do governo, do quadro jurídico abrangente e da ampla gama de políticas públicas, o avanço no desmantelamento da discriminação racial ainda é lento. As leis e políticas ainda não são suficientemente eficazes para promover uma mudança substantiva na vida dos afro-brasileiros. Ademais, constatamos também que alguns setores da sociedade acreditam que o Brasil é uma democracia racial.

Os afro-brasileiros constituem mais da metade da população brasileira, no entanto, são sub-representados e invisíveis na maioria das estruturas de poder, nos meios de comunicação e no setor privado. Esta situação tem origem na discriminação estrutural, que se baseia em mecanismos históricos de exclusão e estereótipos negativos, reforçados pela pobreza, marginalização política, econômica, social e cultural.


Crédito da foto: Ivone Alves/UNIC Rio

Embora o Brasil tenha avançado na redução da pobreza, da pobreza extrema e das taxas de desigualdade, processo do qual os afro-brasileiros se beneficiaram, constatamos que ainda há um grande contraste entre a precariedade da situação dos negros brasileiros e o elevado crescimento econômico do país. Os afro-brasileiros não serão integralmente considerados como cidadãos plenos sem uma justa distribuição do poder econômico, político e cultural.

Com frequência, o racismo institucional assume a forma de uma repartição desigual dos gastos públicos. Manifesta-se também nos baixos indicadores socioeconômicos e no baixo nível de participação na administração pública e de representação na vida política. Afro-brasileiros se beneficiam proporcionalmente menos de instalações educacionais e de saúde, da administração da justiça, do investimento público e privado, infraestrutura básica e outros serviços. Expressamos preocupação com a situação das pessoas sem-teto e sem terra; preocupa-nos igualmente a falta de moradia e a insuficiência de políticas de habitação que afetam negativamente vida dos negros brasileiros, particularmente nas favelas e quilombos.

A discriminação múltipla afeta tanto as mulheres e meninas negras quanto os indivíduos LGBT, manifestando-se em desigualdades no acesso à saúde e ao emprego nos setores público e privado. A sociedade civil denunciou a feminização da pobreza, a elevada proporção de mulheres afro-brasileiras que trabalham em condições precárias, principalmente no serviço doméstico, e a dificuldade de acesso a saúde que acarreta taxas elevadas de mortalidade materna.

Deve-se observar que o racismo institucional continua presente no sistema de justiça e segurança em todos os níveis. É ele que impede a igualdade de acesso à justiça para afro-brasileiros quando vítimas de violações. Além disso, manifesta-se na prática de perfil racial, nos números desproporcionais de prisões e representação excessiva de negros na população carcerária.

Observamos com preocupação o alto nível de violência e criminalidade que afeta a sociedade brasileira. Fomos informados de graves violações de direitos humanos perpetradas pelas forças de segurança, em particular pelas Polícias Civil e Militar, contra os jovens e adolescentes negros. Muitas dessas violações ficam impunes. Funcionários governamentais denunciaram a violência devastadora e os assassinatos. No entanto, a partir de reuniões com a sociedade civil, soubemos que isto continua sendo uma prática generalizada. Devemos ressaltar que um dos pilares centrais dos direitos humanos é o respeito ao direito à vida e à integridade física. Lembremos que as normas imperativas dos direitos humanos proíbem os Estados de cometerem execuções sumárias, extrajudiciais e arbitrárias.

Queremos parabenizar o trabalho do governo em reconhecer os títulos de propriedade dos quilombolas e consideramos este um passo importante no sentido de garantir seus direitos. No entanto, continuamos preocupados com os graves atrasos que a maioria das comunidades enfrenta na obtenção de títulos fundiários.

Crédito da foto: Ivone Alves/UNIC Rio

Durante as visitas aos quilombos e nas reuniões com os governos, fomos informados sobre a grave falta de acesso às terras tradicionais, sobre a pobreza extrema e os males sociais relacionados, os quais acarretam atos de agressão e perseguição contra quilombolas defensores de direitos humanos. Comunidades quilombolas também denunciaram o racismo ambiental e o impacto negativo da indústria extrativista e do agronegócio.

Quanto ao racismo interpessoal, este tem sido amplamente documentado. Ele se apresenta sob a forma de atitudes de rejeição e exclusão contra os afro-brasileiros. Estamos particularmente preocupados com o racismo sofrido pelas crianças nas escolas e o respectivo impacto psicológico. Além disso, o racismo contra os afro-brasileiros é reforçado por estereótipos e preconceitos amplamente difundidos pelos meios de comunicação de massa.

Estamos também preocupados com o racismo, a perseguição e as violações dos direitos culturais e à liberdade de religião sofridas por comunidades religiosas de origem africana, dentre outros, o Candomblé e a Umbanda.

Como mencionado anteriormente, parabenizamos os avanços legislativos e as políticas públicas implementadas pelo Brasil para combater as desigualdades raciais enfrentadas pela comunidade negra. Esperamos que o Brasil continue no caminho iniciado durante o governo Lula e seguido pelo atual governo da presidenta Dilma.

A luta contra o racismo deve engajar toda a sociedade brasileira. A sensibilização, o diálogo intercultural e a educação são essenciais para desconstruir a ideia de hierarquia racial. Ações concretas e implementações efetivas de leis e políticas públicas para a igualdade racial são essenciais para fazer uma mudança real e impactar positivamente os afro-brasileiros.

O fim da desigualdade racial, do racismo, da discriminação, da xenofobia e das intolerâncias correlatas beneficiará não só os negros brasileiros, mas também o conjunto da população do Brasil. Reforçará a democracia, a primazia do direito e o desenvolvimento social e econômico. Esperamos, ainda, que os progressos alcançados no combate ao racismo no Brasil tenham um impacto profundo e duradouro em todos os países da América Latina que compartilham o legado de racismo.

Saudamos também a abertura do governo e sua atitude transparente e objetiva frente à situação das comunidades negras e os desafios a serem enfrentados. Gostaríamos de agradecer o Itamaraty, a SEPPIR, o governo – nos níveis federal, estadual e municipal -, o Congresso Brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, a sociedade civil, os vários afro-brasileiros e, por fim, o Sistema das Nações Unidas no Brasil pelo seu apoio nesta missão.

Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013

Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes

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O Grupo de Trabalho é composto por cinco especialistas independentes servindo em suas capacidades pessoais: Verene Shepherd (Jamaica), relatora-presidenta; Monorama Biswas (Bangladesh); Mireille Fanon-Mendes-France (França); Mirjana Najcevska (Antiga República Iugoslava da Macedônia) e Maya Sahli (Argélia).

O Grupo de Trabalho de Especialistas sobre Afrodescendentes foi estabelecido em 2002 pela então Comissão de Direitos Humanos, após a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, em 2001.

Os especialistas das Nações Unidas, entre outras atividades, realizam visitas a países sob o convite dos governos para facilitar o entendimento da situação dos afrodescendentes em várias regiões do mundo, bem como para promover um completo e efetivo acesso a saúde, educação e justiça por parte dos afrodescendentes. Para saber mais, clique aqui.

Veja o relatório de 2005 do Relator Especial contra o Racismo das Nações Unidas para o Brasil clicando aqui.

Para mais informações e pedidos da mídia, favor contatar:
• No Rio de Janeiro: Valéria Schilling ou Gustavo Barreto (+55-21-2253-2211 / valeria.schilling@unic.org)
• Em Genebra: Sandra Aragon-Parriaux (+41-22-928-9393 / saragon@ohchr.org) ou escreva para africandescent@ohchr.org
• Para pedidos da mídia relacionados com outros especialistas independentes das Nações Unidas: Xavier Celaya, Direitos Humanos da ONU – Unidade de Imprensa (+ 41 22 917 9383 / xcelaya@ohchr.org)

Direitos Humanos das Nações Unidas, website do país – Brasil: clique aqui.


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