Uma questão de fundo permeia os movimentos sociais, em especial o movimento antirracista, no momento em que vivemos: Qual a relação que eles devem estabelecer com o Estado? Para responder esta questão, retomamos o conceito de Estado como aparelho institucional cujo objetivo, em última instância, é manter os privilégios de classe em uma dada formação social.
No caso da formação social brasileira, dois autores importantes apontam pistas para podermos entender esse processo. O primeiro é Jacob Gorender, que, em O Escravismo Colonial, defende a ideia de que vigorou no país um modo de produção original – chamado por ele de escravismo colonial. A escravização de africanos criou valor que foi incorporado ao sistema mercantil de então e até impulsionou a Revolução Industrial na Inglaterra, conforme afirma o historiador Erich Williams. Diante disso, todo o arcabouço institucional vigente no país era voltado para a manutenção de uma ordem escravagista e de economia dependente.
É nesse cenário que se faz a passagem da mão de obra escrava para o sistema assalariado, e o País avança para o capitalismo. Outro autor importante que faz esse estudo é Clóvis Moura (Sociologia do Negro Brasileiro e Dialética Radical do Brasil Negro).
Moura é constantemente desqualificado na academia e até por alguns dirigentes do movimento negro. Cobram dele uma “maior precisão nas informações e nos dados”. Recentemente, numa banca de qualificação da qual participei na FFLCH-USP, questionou-se, por exemplo, a ênfase dada por Moura para o Quilombo dos Palmares. O questionador argumentou: Se ele foi tão importante, por que hoje não há “remanescentes como de outros quilombos”?, esquecendo ou fingindo desconhecer que Palmares foi massacrado.
A qualificação de Moura não está, necessariamente, na precisão ou não das informações e dados. Isso é uma leitura superficial da obra dele. Quando Moura fala que a abolição que se faz em 13 de maio de 1888 tem um caráter inconcluso por não prever medidas de inclusão dos ex-escravizados e escravizadas no sistema social porque a luta “saiu dos quilombos e foi para a dimensão parlamentar”, quis enfatizar os limites da ação institucional.
Fazendo uma interpretação dessas posições, tem-se que o Estado brasileiro foi formatado para possibilitar a vigência desta tipologia de acumulação de riquezas e de relações sociais de classe. As modulações do aparelho de Estado, nos diversos momentos conjunturais, não significam uma mudança estrutural na sua lógica, até porque se manteve o modo de produção local e sua articulação com a formação social capitalista global.
É exatamente esse o raciocínio de Clóvis Moura quando identifica a opção de passagem do sistema escravista para o capitalista dependente como os limites estruturais de ação por dentro do aparelho institucional. Em outras palavras, a forma de abolição obtida em 13 de maio de 1888 foi o limite possibilitado pelo aparelho de Estado brasileiro voltado para a manutenção daquela ordem – patrimonialista, capitalista dependente e racista. E é também o aspecto que diferencia o projeto abolicionista dos movimentos abolicionistas radicais, como a Revolta dos Alfaiates, em que se desenhava uma outra perspectiva de sociedade e também de Estado.
A consolidação do modelo capitalista no Brasil nos anos 1930 – momento que alguns autores, como Nelson Werneck Sodré, chamam de “revolução burguesa brasileira” – apontou para algumas modulações com relação ao panorama anterior. Esse período do final do século XIX, pós-abolição, até os anos 1930 foi marcado por um projeto político de branqueamento da população brasileira, apresentado, inclusive, como um modelo inovador de extermínio diferenciado dos paradigmas segregacionistas, conforme tese defendida pelo cientista João Batista Lacerda no Congresso Mundial das Raças, em 1911.
Que modulações foram estas?
A principal delas foi a incorporação da ideia de “mestiço” como uma característica nacional – em um momento de revalorização do “nacional”, necessário para um projeto político de reposicionamento do País na ordem mundial. Para tanto, foi necessária a disseminação mais intensa da ideia da democracia racial no País, e é com essa qualidade que o País é estudado pela Unesco nos anos 1960. Vejam a diferença: enquanto nos anos 1910 a política de branqueamento era vista como um modelo “limpo” de etnocídio de negros e negras, nos anos 1960 a miscigenação era ressignificada como um paradigma de tolerância e de apagamento das violências étnicas. Graças a isso, há uma revalorização da presença negra em determinados espaços (os lúdicos, de preferência) e a interdição desta mesma presença nos lugares onde se aproxima do poder.
Ora, com base nisso é que se pode estudar as possibilidades de participação institucional do movimento antirracista. Todas as demandas da população afrodescendente brasileira apontam para transformações profundas – por exemplo, a titulação das terras dos quilombolas implica a mudança na estrutura fundiária, as cotas nas universidades implicam partilhar um espaço de poder, entre outros – em que os aparelhos institucionais demonstram, em cada momento, os seus limites. Com isso, cria-se uma situação perigosa para os militantes antirracistas que optam pela institucionalização: serem os gerenciadores das tensões sociais emanadas da luta antirracista criando uma situação de disputa autofágica dentro do próprio seio da população afrodescendente. Parafraseando um termo muito utilizado no movimento sindical sobre os dirigentes sindicais que atuam para “amaciar” os conflitos de classe, seriam os afropelegos.
Uma situação particular que favorece ainda mais o surgimento dos afropelegos é a fragilidade organizativa do movimento antirracista. Por serem organizações que representam um segmento social que está na base da pirâmide social, a pressão pela institucionalização e cooptação é muito mais intensa. A dificuldade de manter uma estrutura própria e autônoma que sirva como pressão política nos espaços institucionais, ainda que estes contem com a participação de militantes negros, dificulta a discussão na prática dos limites e possibilidades da ação institucional.
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