segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Desculpas: por que não vamos aceitar.

por Mônica Gonçalves *
Desculpas: por que não vamos aceitar.

Hoje errei na mão ao cozinhar: queimei o bife, que ficou duro e sem gosto. Dada a necessidade, engoli. Teria feito com mais gosto soubesse da sobremesa estava por vir em seguida: um pedido de desculpas, adocicado por muitas lágrimas. Esse foi mais difícil de digerir – sim, falo da agressora de Aranha. Em minha visão, todo psicólogo é, primordialmente e antes de tudo, um analista do discurso, que faz pontes entre significantes e significados, e acaba desvelar os sentidos que se ocultam nessa trama. Nos dicionários Aurélio e Houaiss predominam dois sentidos para a palavra desculpa: o primeiro gira em torno de pedir desculpas ou desculpar, solicitar perdão ou indulgência. O outro tem como núcleo a ideia de escusa, pretexto, justificativa, ou “razão ou motivo para atenuar ou eximir da culpa”. Quando vi e ouvi a cena, imediatamente pensei: trata-se de desculpar-se ou de inventar desculpas? Ah, não, nem como psicóloga pensei em (des)culpar-se, enquanto demanda psíquica. Jamais. E me pareceram os dois sentidos tão articulados que assim também me veio o entendimento do que deva ser a interpretação e a resposta. Primeiro: Patrícia e/ou os representantes de seus interesses (os dela e os deles!) disseram que ela não sabia o que estava fazendo. Sabia sim. Bastam apenas duas condições para se apreender os códigos culturais: ser humano e habitar este planeta. Ela atende às duas. Sua fala, que soa, assim, tão isolada, descabida e inadvertida, revela a sabedoria da aprendizagem social, da experiência concreta de existir num mundo social e politicamente organizado em bases racistas, ainda que essa experiência seja inconscientemente aprendida – o que só a torna mais letal, mas não menos eficiente. Sua fala demonstra que aprendeu que o negro é inferior, sem valor, que pode ser desqualificado. Mostra o legado bem sucedido do capitalismo e das teorias eugenistas; mostra o júbilo da ideologia racista, amplamente difundida, que pretende afirmar que não somos gente. Segundo: Patricia disse que não é racista. É sim! Pois não é exatamente isso que sua fala e ação revelam? Dizer que não é racista diante do que fez só me fez pensar: a que ponto chegamos!!! Pensa que somos loucos? Essa fala e ação revelam ainda a posição que ocupa numa escala racial a que todos estamos submetidos: um lugar de suposta superioridade – suposta –, mas sem dúvida de privilégios, cuja percepção, apropriada e distorcida, lhe permitiu olhar um outro sujeito e deslegitimá-lo em tudo o que os identifica: a condição de ser humano. É bem verdade que há muitos racistas que por uma inteligência cínica, medo ou cautela – dos quais a moça não pensou em se utilizar – não se manifestam. O contrario, porém, não pode ser afirmado: se nem todo racista se revela em sua ação, toda ação racista revela o sujeito dessa mesma qualidade. Terceiro: ela disse que não teve a intenção. Mentira. Vejam a contradição: ela, que chama um homem de macaco não sabe a diferença entre esse bicho e um homem! A ação dirigida, a intencionalidade e a capacidade de planejamento voltados à concretização de uma idéia pré-concebida no intuito de satisfazer nossas necessidades é o que distingue Aranha da aranha, que faz a teia sem saber de sua linha, de seu desenho, de seu por que. A aranha faz porque responde a uma programação filogenética. É também o que difere o homem de um papagaio, que é mero reprodutor de signos sonoros que não é capaz de simbolizar, que não respondem a significados culturais partilhados socialmente, nem tem sentidos pessoais pra ele. Quarto: ela disse que fez por amor ao Grêmio. E…? Ainda espero uma desculpa, ou deveria eu pensar que o amor justifica barbáries? Ah, deveria? Ah, então eu penso, ok, mas esse não foi um discurso de amor ao Grêmio, e sim de ódio aos pretos. O seu amor ao Grêmio você esteja a vontade para proferir. E o que me preocupa nessa trama toda nem é tudo isso. Não são as desculpas falaciosas, mas as lágrimas forjadas para colocar forçosamente no campo do compreensível o que não é justificável. O papel de vítima não cabe ao agressor. Ela, que não nos poupou de seu racismo, podia ter tido a decência de nos poupar do choro que não cabe a ela; a ela só cabem responsabilização e reparação. E percebam um detalhe quase irrelevante: antes de pedir desculpas ao agredido – ao sujeito individual e a todo o povo negro – ela pediu desculpas ao clube e a toda a nação gremista! Depoooois ela se lembra de que feriu alguém, como quem diz ‘ah, é mesmo, ainda tem isso, né?!’. Seria uma piada? Não se enganem: tão pouco ingênua é essa sujeita, tanto sabe o que faz que que não se furtou a pedir desculpas a uma entidade que canta – literalmente – a branquitude. (Sobre branquitude, ler tese doutorado Lia Vainer Schucman). Sabe que ofender um sujeito negro, concreto e real, num sistema social racista e racializado, é menos doloso que prejudicar um sujeito branco, ainda que abstrato! E é por tudo isso que não vamos aceitar desculpas. Que fique enegrecido: se ela fala por muitos, por um sentimento identitário de superioridade a partir da percepção do privilégio de que toda pessoa branca goza em nossa sociedade, a contrapartida também é valida: ofendeu a todos nós, sujeitos negros, homens e mulheres. Essa onda de revolta não é contra essa garota, trata-se de dar-se conta de todas as violências que já sofremos: a diáspora, a escravatura, a eugenia, o genocídio, o encarceramento, todos concretizados numa fala: macaco. Não me parece uma reação desproporcional. Ao fim, penso que era isso que ela realmente não sabia, que assim como ela não fala por si só, não estamos sozinhos nós, cá desse outro lado. E não vamos mais admitir. E pra deixar bem frisado que o personagem principal dessa mensagem é nosso enfrentamento cotidiano e continua, é nossa resistência, encerro com esses três vídeos, que embora menos projetados que a postura de Aranha, certamente nos orgulham e empoderam grandemente. Ela não sabia? Pois que os dessabidos saibam: não estamos sozinhos; não vamos admitir atos racistas e… desculpas pra eles? Não vamos aceitar! Referência https://www.youtube.com/watch?v=_wZa3K2F5jc https://www.youtube.com/watch?v=YJ2lpQQCx00 https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10201726019312463&id=1840013657 Imagem de destaque - Foto: Reprodução/ESPNAcompanhe nossas atividades, participe de nossas discussões e escreva com a gente.


Mônica Gonçalves*
Mônica Mendes Gonçalves, 28 anos, mulher, negra. Psicóloga desde 2008, neste ano ingressei no curso de Saúde Pública. De pequena aprendi com minha mãe que a mulher negra nasce na luta, e que essa afirmação de sua existência está em todos os palcos. Resisto a abandonar minha fé na mudança, expressa pelo desejo de lutar com os negros, as mulheres, os loucos, a saúde e a vida.


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