Em narrativas tão orais que podemos quase escutar os personagens ao nosso ouvido, o escrito nos leva à complexidade do Brasil
Por Leda Cartum
João Ubaldo Ribeiro era baiano e sergipano, escritor e jornalista, era membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), mas se entediava com o “papo de literatura”. Nem para lá nem para cá, esse que foi considerado um dos maiores escritores brasileiros de seu tempo, falecido dia 18 de julho, vítima de embolia pulmonar, adotou uma postura anti-intelectual e, às grandes discussões metafísicas preferia as conversas descompromissadas nos botecos do Leblon. Como deixou claro em seu discurso de posse na ABL, “sou apenas um romancista, um contador de histórias”. João Ubaldo nasceu em 1941, na ilha de Itaparica, na Bahia, mas mudou-se aos 2 meses para Sergipe, e ali passou toda a infância. Foi, desde pequeno, um grande leitor, incentivado pelo pai – tanto que aos 6 anos, mesmo sem entender nada, já lia Hamlet. Estudou direito na Universidade Federal da Bahia, onde foi colega de Glauber Rocha: juntos, os dois editaram revistas e jornais culturais, além de participarem de movimentos estudantis.
É a partir dessa história que Ubaldo se tornou escritor, tendo já seu segundo livro, Sargento Getúlio (1972), premiado com o Jabuti de Revelação de Autor. Mas, mesmo que tenha sido ele próprio quem traduziu alguns de seus livros para o inglês – caso raro de escritor que traduz a própria obra –, declarava, sem cerimônias: “Eu não sei nada o suficiente para escrever além de Itaparica, minha terra. Aquele universo de Itaparica me absorve inteiramente”.
Realmente, o fato de ter suas obras adaptadas para televisão, cinema e teatro, e traduzidas para línguas como alemão, finlandês, holandês ou hebraico, sendo conhecidas no mundo inteiro, não contradiz a veia regionalista que atravessa esses livros. A ilha natal de João Ubaldo torna-se, em seus romances e crônicas, um microcosmo onde o mundo todo acontece: desde os causos de oradores locais até experiências genéticas em laboratório.
Mas é importante lembrar que chamar a sua literatura de regionalista não significa associá-la ao exotismo pitoresco da ideia de “cor local” que essa palavra já caracterizou. Aqui, o romance regionalista do Nordeste é o ponto de partida para reflexões que abrangem toda a história brasileira, na sua complexidade: em meio a narrativas tão orais que podemos quase escutar o personagem falando ao nosso ouvido, nascem críticas políticas e sociais que colocam em jogo as questões fundamentais de um país subdesenvolvido e cheio de injustiças e desigualdades. Embates morais, engajamento político, dilemas metafísicos recheiam livros que, ao mesmo tempo, são muito claros e habitados por personagens típicos do povo brasileiro. Esse olhar tão particular, dialogando com autores como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, levou João Ubaldo a ser apadrinhado pelo grande Jorge Amado, que o considerava “um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, entre os maiores ficcionistas contemporâneos do mundo inteiro”.
Seu livro mais extenso, tido como um clássico e mesmo um épico dentro da literatura nacional, surgiu, segundo o próprio Ubaldo, de uma provocação singela. Como ele conta, Viva o Povo Brasileiro (1984) começou a ser escrito porque seu então editor fez uma brincadeira, dizendo que “vocês, escritores brasileiros, só fazem esses livrinhos fininhos para ler na ponte aérea, que a gente traça num instante”: imediatamente, João Ubaldo tomou para si o desafio de compor um livro que parasse em pé. E foi muito bem-sucedido: com 640 páginas, essa foi a obra que consagrou o escritor – chamado por Haroldo de Campos de “desmedido, exorbitante, caudaloso romance-rio de Ubaldo”, é um livro que se dedica a quatro séculos da história do Brasil, misturando personagens fictícios a fatos históricos, viajando de Itaparica ao Rio de Janeiro, São Paulo e até Lisboa. É uma investigação da construção da identidade nacional, que passa por episódios como a invasão holandesa, a chegada da família real portuguesa, até outros mais recentes do século XX, como o Estado Novo e a ditadura militar. A partir da ideia de que “não existem fatos, só existem histórias”, que consta na epígrafe de Viva o Povo Brasileiro, Ubaldo desentranha o país e nos faz conhecê-lo a partir da perspectiva de seus personagens.
Além de seus dez romances, dos livros de contos e dos infantojuvenis, João Ubaldo também foi um grande cronista. Suas colaborações para jornais renderam diversas coletâneas de livros de crônicas, em que conhecemos a intimidade e as opiniões do escritor, que conversa conosco como se estivéssemos sentados com ele numa mesa de bar. Sempre com um humor muito característico, é nesses textos que ele confessa, por exemplo, que não entende nada de processo criativo e que, muitas vezes, não consegue aturar a tagarelice de seus próprios personagens. É também ali que ele nos conta suas anedotas da vida boêmia, transcrevendo detalhadamente os diálogos que surgem entre uma cerveja e outra, e que podem conter um retrato mais fiel do país e de seus habitantes do que muitos livros didáticos.
Hoje, pouco depois de sua morte aos 73 anos, podemos confirmar: João Ubaldo Ribeiro, ganhador do maior prêmio da língua portuguesa, o Prêmio Camões, coloca-se como um dos imortais de nossa literatura. Se, como dizia o autor, “um país sem seus livros, suas canções, seu cinema, suas pinturas e esculturas não é um país, é apenas um conglomerado de vizinhos malsatisfeitos”, João Ubaldo foi um daqueles que colaboraram para nos tornar muito mais do que esses vizinhos desagradáveis: é um dos artistas que compuseram e compõem o que chamamos de Brasil.
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