quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O poeta da Cidade

publicado:Revista Cult
Entrevista Revista Cult

Num intervalo de suas férias em Paraty, Paulo Lins conversou com a CULT sobre seus trabalhos e a relação íntima com o samba e a favelaPatrícia HomsiHá muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo que o samba acabou. Só se foi quando o dia clareou”, dizia Paulinho da Viola em “Eu canto samba”. “O samba é uma tradição passada de pai para filho, o samba está na alma. Dentro do coração das crianças, na velha guarda, nas comunidades, nas ruas, nas esquinas, nos botecos, onde sempre esteve e de onde nunca saiu”, explica o escritor Paulo Lins, enquanto procurava melhorar o sinal de seu celular andando pelas ruas de Parati.
Nascido no bairro do Estácio, berço do samba e ambiente de seu segundo livro, Desde que o samba é samba, Paulo Lins é um dos quatro filhos de Amélia Maria Lins e Antônio de Souza Lins. Foi criado em meio ao samba do bairro e a histórias ouvidas em roda na casa dos pais. Ele aponta esse passado cultural como uma grande influência em seu trabalho. “Não tinha televisão, que era uma coisa muito rara. A hora em que a gente se reunia era a hora de contar histórias. Quando acabava, eu torcia para chegar o outro dia, para ouvir mais histórias”.
Os contos sobre folclore, marinheiros, assombrações, tradições africanas e o passado dos pais na Bahia trilharam o caminho de Paulo. Desde menino, o gosto pela redação e o bom desempenho em português chamaram atenção. Já na época em que morava na Cidade de Deus, corrigia algumas letras de samba das escolas. “Eu comecei a datilografar as letras dos sambistas. Depois, a corrigir o português. Mudava um versinho ali, um aqui, até fazer samba enredo”, relembra. Mais tarde, o escritor chegou a ganhar um bloco na comunidade.
Autor de Cidade de Deus e Desde que o samba é samba, Paulo foi influenciado por diversos ambientes contrastantes como o das escolas de samba – onde conheceu o burburinho e as personalidades da favela –, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – na qual estudou Letras – e das ruas da Cidade de Deus, para onde se mudou com 6 anos. Mais do que simples influência, o escritor utiliza histórias de suas raízes e de sua tradição como um meio de incitar discussão entre os leitores, de chamar atenção ao ambiente político e social das favelas do Rio de Janeiro e do Brasil. Essa preocupação política move as palestras e discursos de Paulo, estando fortemente associada a sua participação na recente Feira de Frankfurt. “O Brasil está precisando falar sobre política, sobre os problemas do país. O Rio de Janeiro está uma bagunça. A situação dos desmandos, as escolas públicas, saúde, corrupção, poder oligárquico, de forças antigas que querem tratar o Brasil como província… Isso deve ser discutido. Não podemos nos esquecer de falar sobre o lado social. Não se pode querer só ganhar dinheiro”.
Envolvido atualmente com projetos cinematográficos e televisivos, Paulo Lins acredita que essas novas áreas de atuação surgiram a partir da temática com que trabalha. Os novos projetos, segundo o autor, fazem parte de uma demanda do povo brasileiro pela demonstração dessa crua realidade da favela brasileira. “O cinema, por exemplo, me procurou. Eu nunca tinha pensado em fazer roteiro”, explica. Os roteiros, porém, já lhe renderam prêmios, como o de Quase dois irmãos, dirigido por Lúcia Murat. A história de uma negociação entre amigos de infância – um senador, e o outro, traficante – teve roteiro premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Na época do lançamento de Cidade de Deus, temas como o da desigualdade social, violência, racismo e condição do pobre no Brasil, sempre presentes na produção do escritor, tiveram sua discussão alavancada. “Isso depois veio para a arte, para a música, para todo o lugar. Tomou conta. E Cidade de Deus fez parte desse processo”.
Cidade de Deus
Interessado em poesia e literatura desde cedo, Paulo Lins começou a escrever ainda no curso de Letras. Antes mesmo de se formar, já lançara um livro independente de poesia, área de maior interesse do autor. “Meu negócio era poesia. Eu militava na poesia. O romance era mais para estudo, é claro, e deleite”.
A oportunidade de escrever em prosa sobre a favela veio durante uma pesquisa antropológica coordenada por Alba Zaluar. Paulo se misturava aos sambistas, aos bandidos, a todos os moradores da Cidade de Deus, sendo responsável pela pesquisa etnográfica da violência na favela. Cidade de Deus começou como uma “narrativa literária” sobre a violência, escrita como parte da pesquisa de Alba. “Não era um romance, porque eu nunca tinha escrito romance… Era muito novo! Eu nem estava pensando em escrever livro, não tinha pretensão de ser escritor”, esclarece.
O primeiro passo foi dado pela própria Alba Zaluar, que enviou os esboços a Roberto Schwarz, crítico e professor aposentado de Teoria Literária. Schwarz incentivou a continuação do projeto; entretanto, ainda havia praticamente todo o romance a ser escrito. “Acho que comecei a escrever em 86, mas levei mais uns dez anos nessa ‘aventura literária’, como disse o Roberto”, lembra Paulo. No início, Cidade de Deus seria um livro de prosa, sim, porém voltado aos estudantes de antropologia e sociologia. Paulo “pensava nos estudantes. A princípio, era um projeto bem universitário, para a Academia, para lançar dois mil, três mil exemplares”. O sucesso foi além das expectativas acadêmicas do autor.
Logo após o lançamento, Cidade de Deus preenchera uma demanda da própria universidade, anteriormente interessada no estudo da criminalidade. O livro foi traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. No início, as universidades estrangeiras se interessaram pelo tema. Como explica Paulo, “tendo livros traduzidos nessas línguas, o acesso é garantido em boa parte da Europa e da África, onde muitos falam inglês e francês, e também na América Latina, que fala espanhol”.
Mas é com a chegada do filme homônimo, dirigido por Fernando Meirelles, que Cidade de Deus atinge países que, segundo o autor, não têm tradição de ler literatura brasileira. O filme foi indicado ao Oscar nas categorias de Direção, Edição, Roteiro Adaptado e Fotografia, além de ter sido eleito um dos 100 melhores filmes da história pela revista Time. “O audiovisual, todo mundo vê. Com o sucesso do filme, o livro foi traduzido na Estônia, Polônia, Coréia, Japão…”.
Como todo criador, Paulo Lins enxerga sua criação de maneira única: “Eu gosto do filme, tenho críticas, lógico, mas gosto muito do filme. Ao longo dos anos, eu já gostei, já não gostei, já gostei mais, já gostei menos… É uma relação familiar”, brinca o escritor.
Na favela
Além das críticas com intuito de “golpe publicitário”, do “fala-fala”, como ironiza Paulo, a repercussão do filme e do livro na Cidade de Deus foi boa. “Todo mundo gostou. Meus amigos na Cidade de Deus continuam os mesmos”, completa. Desde que se formou em Letras, Paulo saiu da Cidade de Deus. Já morou em Angra, Mogi Mirim, Espírito Santo, e atualmente mora em São Paulo. Aliás, o carioca revela um amor por São Paulo, especialmente pelo bairro de Perdizes, por onde anda “para cima e para baixo”. “Eu adoro São Paulo, porque é onde muitos dos meus amigos moram. É claro que ninguém gosta do lado ruim, do trânsito, por exemplo, mas o lado bom é muito bom”.
Apesar da paixão por São Paulo, o escritor sempre volta ao antigo bairro cuja história guiou sua carreira. “Eu sou um ‘filho da ponte’”, brinca, referindo-se à ponte aérea Rio-São Paulo. “Costumo ir visitar os meus amigos. Vou lá quando tem uma festinha”. E completa: “Na verdade, não adianta morar num lugar paradisíaco se você não tem amigos por lá”.
Quanto às histórias contadas no livro, não havia impedimentos entre os moradores da favela: “A maioria já não existia mais, na verdade. Como o livro se passa nos anos 1980, não houve problema”. No entanto, o contato com a violência e a criminalidade é constante. “Quem nasce na favela geralmente tem relação com bandido. Às vezes, é seu vizinho, é da sua cor, geralmente é negro, nordestino. É igual você. Mesmo que não se conheça nenhum, é algo próximo. Um sujeito com quem você estudou na escola, por exemplo, que mais tarde vira bandido…”.
Debate
O contato e a reflexão sobre problemas como a violência e a desigualdade da Cidade de Deus de Paulo Lins ultrapassam os limites das favelas. A discussão invadiu grandes eventos literários como a Feira de Frankfurt, realizada em 2013. O discurso de abertura do escritor Luiz Ruffato, que tratou dos problemas sociais do Brasil, corrobora a ideia de Paulo sobre a importância de se conversar sobre política em qualquer ambiente cultural. Em sua fala, que fechou o evento, Paulo Lins reiterou o discurso do amigo e chamou atenção às dificuldades e injustiças sociais do país, resgatando um poema de sua autoria: “Fui feto feio feito no ventre do Brasil/ Estou pronto para matar, já que sempre estive para morrer” diziam os primeiros versos.
“Foi uma participação política”, resumiu Paulo sobre a Feira. “Não dá para falar sobre outra coisa. Hoje se discute isso com as crianças… Eu dei palestras nas periferias de São Paulo, em favelas, em fábricas de cultura, e falei para esses jovens tudo o que disse na Feira. O assunto está no botequim, nos bares, nas feiras. Vai além das universidades”.
Entre os compromissos com a editora e com a organização da Feira, Paulo Lins acredita que a confraternização com os escritores também serviu de espaço para mais debates: “No final do dia, tinha um bar em que toda a rapaziada se encontrava. Eu tomo cerveja toda terça-feira com o Marçal Aquino, estou sempre com o Marcelino Freire, o Luiz Ruffato é meu camarada, conheço a Alice Ruiz há 30 anos, o Ferréz é meu parceiro, meu amigo. A maioria é de amigos meus. Estamos discutindo literatura e política, mesmo entre aqueles com quem eu não tenho intimidade. Porque eu conheço as obras dessas pessoas”. Entre amigos, Paulo Lins conta que se sentiu em plena Mercearia São José, na Vila Madalena, em São Paulo. O clima brasileiro da “Merça”, como o bar foi apelidado pelo escritor, se instalou em Frankfurt.
Guerra cultural
Paulo Lins considera essa discussão da Feira de Frankfurt e de tantas outras aqui no Brasil, como a de Manaus, Votuporanga, São Paulo ou Petrópolis, muito oportuna. Para ele, cultura e poder se misturam, já que o povo detém a cultura e é por meio desta que o poder político se aproxima da população.
“A cultura é motivo de guerra até hoje”, argumenta Paulo. Citando o conflito entre muçulmanos e judeus israelenses e a perseguição de evangélicos e católicos às religiões e aos costumes africanos, o escritor vê as intolerâncias religiosas e culturais como uma tentativa de dominação e imposição de hábitos. Paulo ainda relembra a aproximação entre políticos e líderes comunitários a partir do momento em que o negro ganha o direito ao voto. Estes líderes, que possuíam influência perante toda comunidade, eram sambistas e mães de santo, perseguidos pela polícia numa época em que tocar pandeiro e praticar capoeira era crime.
A criminalização da capoeira, do samba e da umbanda uniu as práticas, fazendo com que o nascimento e desenvolvimento de cada uma delas se confunda na história das outras. Por esta razão, Paulo, filho de Iemanjá, Ogum e Xangô, recorreu à umbanda durante um bloqueio criativo, no processo de produção de Desde que o samba é samba, lançado quase quinze anos depois de sua estreia na literatura em prosa, com Cidade de Deus.
Paulo Lins frequentara terreiros de umbanda na infância, mas decidiu voltar por convite do amigo, Sombrinha, músico e fundador do grupo Fundo de Quintal. Para escrever Desde que o samba é samba, o autor pesquisou massivamente o samba, assunto central do livro. O conhecimento sobre a umbanda, porém, veio direto das fontes, de Zé Pelintra e Maria Padilha, mais precisamente, as entidades que conversaram com Paulo no centro.
A umbanda é uma religião aberta a várias outras crenças, sendo ela, inclusive, uma derivação do catolicismo e do candomblé. O escritor, que atualmente frequenta centros, diz crer em todas as religiões. “Eu gosto muito de conhecer culturas. Gosto particularmente da cultura africana”.
Desde que o samba é samba
Assim como a umbanda dá espaço a ritmos e culturas plurais, o samba, que se consolidou nos mesmos ambientes da religião africana, também se apropria e se transforma conforme o tempo e as influências. O pagode é um exemplo disso: “Pagode é samba. Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Arlindo Cruz são todos sambistas. Separar pagode de samba é equivocado. Desde que o samba começou sempre houve mudanças, variações, como no jazz, por exemplo, em toda música”.
Para Paulo, estas variações e até mesmo os novos movimentos musicais, como o funk, que nasceu nas favelas – “no jeito de cantar, de falar que a rapaziada usa” – só fortaleceram o samba. “A cultura só acaba se o povo acabar. Ela não se perde enquanto se configurar como tradição, só agrega”. A música é parte importante da inspiração do escritor, que possui preferências amplas: de Criolo a Nando Reis, de Martinho da Vila a Otto.
Paulo até se arrisca na percussão, “tudo no batuque”, como brinca, e costuma fazer letras com o amigo, Marcelo Yuka, ex-integrante da banda O Rappa, atualmente na F.UR.T.O. “Na verdade, eu vivo o mundo musical dele. Ele é poeta e nós discutimos música e poesia. A gente faz uma ‘baguncinha’ quando se encontra”.
Projetos
Além de companheiro de composições, Marcelo Yuka também foi um dos envolvidos nos projetos de Paulo Lins além da literatura. O escritor dirigiu o clipe “Minha alma (A paz que eu não quero)”, d’O Rappa, na época em que o amigo ainda era baterista, e “Não se preocupe comigo”, da F.UR.T.O. No intervalo entre Cidade de Deus e Desde que o samba é samba, Paulo se envolveu com o cinema e com a produção televisiva. “O pessoal pensava que eu não iria escrever outro livro, mas eu estava ocupado com outros projetos”.
O primeiro convite veio do cineasta Cacá Diegues, com quem Paulo Lins trabalhou no roteiro de Orfeu, de 1999. Depois vieram os roteiros de alguns episódios de Cidade dos homens e trabalhos com a roteirista e diretora Kátia Lund, bem como com Lúcia Murat. A pressão pela produção do segundo livro foi preenchida pelo escritor com projetos ligados à temática, porém utilizando outros formatos artísticos. “Toda a relação com o tema da Cidade de Deus é muito natural. Todos os trabalhos me puxaram para isso”.
Contratado pela rede Globo como roteirista na época de produção da série baseada em Cidade de Deus, Cidade dos homens, Paulo Lins se envolveu com Luiz Fernando Carvalho no projeto da série Suburbia, que tratava especificamente de uma pessoa com quem o diretor “teve uma relação de mãe e filho”, que trabalhara na casa dele. A história possibilitou a discussão de diversos temas do interesse de Paulo, como o racismo, a exclusão social, o abandono, a violência e até mesmo os reflexos da escravidão. A relação da empregada doméstica, inserida quase maternalmente na casa onde trabalha, é, como avalia Paulo “uma das facetas mais feias do Brasil”. “Mas ninguém quer falar nisso, porque grande parte da classe média está envolvida”. O assunto, no entanto, seguia raramente discutido, até a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) das Domésticas, regulamentada no ano passado.
Essa exploração da doméstica, para o escritor, chega a remontar o período de escravidão. “Depois da abolição da escravidão, o negro não se inseriu por completo na sociedade. Quando acaba a escravidão, o negro já se torna marginal. É um processo natural. Até hoje é assim”. Inconformado com o tratamento do negro, especificamente da mulher negra e pobre que se torna empregada doméstica, Paulo conta: “Os próprios bandidos falam: sabe por que eu te assalto? Porque, quando eu era pequenininho, a minha mãe tinha que trabalhar cuidando de você. Você tinha duas mães, e eu não tinha nenhuma”.
O sucesso de Suburbia trouxe a Paulo mais projetos na televisão, como o que está trabalhando em Parati, durante suas férias, ou melhor, as férias de seu filho, João, de 8 anos, e da filha, Mariana, de 24 anos. “Eu não tenho férias! Trabalho de onde for”. Envolvido num projeto de novela, linguagem à qual não está acostumado, o escritor diz estar fazendo seu “dever de casa”, lendo muitos capítulos de autores consagrados, pesquisando e anotando ideias. No dia anterior ao que conversou com a CULT, Paulo trabalhou desde o final da tarde e por toda a madrugada. “Mas eu gosto, é um prazer!”. Além disso, os passeios com os filhos lhe tomaram o resto do dia. “Fui à praia, passeei… Começo na hora em que dá para começar, não é?”. Preocupado com a educação dos filhos, o pai admite ter incentivado a leitura de todos eles. “Tem que ficar atento, senão o bicho pega!”. Além dos dois que viajaram para Parati com Paulo, ainda há Frederico, de 32 anos, que é produtor cultural.
Apesar dos trabalhos audiovisuais, Paulo Lins ainda é um apaixonado por poesia. O escritor está lançando um livro de poesia sobre o lixo, concebido junto a Maurício Carneiro, Eduardo Lima e Beo da Silva, “a 8 mãos”. “Era um projeto para criança, depois se tornou adulto, agora eu já nem sei para quem ele é”. Misturando projetos de televisão, cinema, literatura ou até teatro, Paulo faz questão de escrever sem parar, “o que der na telha”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário