publicado: gazeta do povo
José Armando Fraga Diniz Guerra, coordenador geral da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae)
Há sete anos trabalhando na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), José Armando Fraga Diniz Guerra percebeu que o trabalho escravo é um fenômeno mais amplo do que se possa supor. Muito mais do que restrição à liberdade, essa forma de prestação de serviços deve ser compreendida como uma violação aos direitos humanos do trabalhador. Guerra hoje é coordenador geral da Conatrae, órgão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República dedicado a estudos desse tema, e explica que o fenômeno atinge – contrariando o senso comum – tanto o ambiente rural quanto o urbano. Em entrevista ao Justiça & Direito, durante passagem por Curitiba para participar do I Ciclo de Debates sobre o Tráfico de Pessoas, organizado pela Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos e pelo Núcleo de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas no Estado do Paraná, Guerra indica a necessidade de responsabilidade empresarial e consumo consciente para a erradicação de trabalho escravo no Brasil.
Como a Conatrae participou da discussão da Emenda Constitucional 81?
Ficha técnica
Natural de: Salvador (BA)
Currículo: Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental desde maio de 2007. Coordenador Geral da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
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A Conatrae realizou a articulação para a aprovação da Emenda Constitucional 81, que modificou o artigo 243 da Constituição Federal e que prevê agora a expropriação de propriedades urbanas e rurais onde seja encontrado trabalho escravo. Não é desapropriação, quando se paga indenização, mas expropriação, pois se toma sem indenização. O legislador brasileiro ao criar a Constituição colocou bem claro que será garantido o direito à propriedade que cumpra sua função social. A propriedade onde se utiliza trabalho escravo não cumpre a função social. A emenda fortalece o direito à propriedade no país ao garantir que a propriedade bem utilizada será assegurada e a propriedade onde haja violação de direitos humanos pode ser perdida. A emenda não é autoaplicável, é preciso ainda uma discussão sobre qual vai ser o procedimento de expropriação. Esperamos que essa regulamentação saia o mais breve possível para que esse instrumento da emenda seja aplicável.
A expropriação é o meio adequado para combater o trabalho escravo?
O trabalho escravo é uma situação não apenas trabalhista, há violação de direitos humanos e um imbricamento com as cadeias produtivas e com a economia brasileira em geral. Há situações em que o trabalho escravo é explorado em uma fazenda no interior remoto, mas, por todo o encadeamento da economia brasileira, o produto chega aos consumidores finais. Nesse sentido, entendemos que a punição econômica é muito importante. O trabalho escravo é explorado para conseguir uma maior vantagem na disputa de mercado. Reduzem-se os direitos dos trabalhadores a um certo ponto que vai para o patamar mínimo aceitável para a dignidade da pessoa, para ter um custo menor na mão de obra e conseguir vender o produto com mais lucro. Se o trabalhador escravo é explorado para a obtenção de vantagem econômica, as punições que vão ser efetivas têm de passar pelo âmbito econômico. Aí entra a “lista suja”, o cadastro de trabalhadores flagrado com trabalho escravo, que é uma lista na qual o governo federal publica quais foram as empresas que foram pegas com trabalho escravo. A partir daí, você tem uma mobilização de responsabilidade empresarial, por meio da qual, boa parte das empresas brasileiras faz parte de um pacto e se compromete a não comprar dessas empresas que usam trabalho escravo, o que é um outro tipo de punição econômica.
Por que a data da Chacina de Unaí foi escolhida como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo?
A Chacina de Unaí talvez tenha sido um dos momentos em que o Estado brasileiro na democracia foi mais atacado. Quatro servidores públicos federais em atuação, que estavam em uma fiscalização prévia em Unaí, MG, a menos de 200 quilômetros da capital federal, com carro oficial, foram metralhados. Segundo a investigação do crime, por fazendeiros locais. Foi um ataque não apenas à auditoria do trabalho, mas ao Estado brasileiro em sua atuação. A partir da mobilização para que esse crime não seja esquecido, houve uma proposta de lei sugerida pela Conatrae que foi aprovada e hoje é a Lei 12.064/09, que fixou a data de 28 de janeiro, quando ocorreu o crime em 2004, para que se discuta o trabalho escravo e como podemos combater essa chaga e também fazer uma leitura de como está o país nessa luta. Essa lei serve para que todo início de ano façamos uma reflexão e mobilização para que cada vez mais estejamos próximos do fim do trabalho escravo no Brasil.
Como a população entende o trabalho escravo?
Cada vez mais as pessoas entendem que o trabalho em condições análogas às de escravo, como coloca o artigo 149 do Código Penal, não está limitado a restrições de liberdade. O trabalho escravo, além de ser restrição à liberdade, pode ser uma situação de trabalho na qual se viole o ser humano e sua dignidade. Situações extremas de insalubridade e falta de condições. Aqui na Região Sul, há trabalhadores que estão no campo com graus negativos de temperatura sem a mínima proteção contra esse vento, tendo que ficar acampados em barracão de lona. Isso é uma condição que viola o ser humano. Cada vez mais as pessoas entendem que não é só uma questão de liberdade, é uma questão de violação de dignidade no trabalho. O trabalho não pode servir como espaço de violação da dignidade do ser humano.
Como o senhor avalia os boicotes às marcas de roupas que foram flagradas com trabalho escravo?
O consumo consciente é uma ferramenta muito forte no combate ao trabalho escravo. Se a população estiver consciente de como é a situação dos trabalhadores que produzem essa roupa e evitarem consumir produtos advindos dessa exploração extrema, é uma forma muito forte de pressionar as empresas a cumprirem padrões dignos de produção. Cada vez mais é papel da imprensa divulgar essa situação e fazer com que o consumidor tenha essa consciência. Até porque as empresas de roupa não vendem a roupa em si, elas vendem um estilo de vida. Pessoas que querem parecer descoladas não querem estar vinculadas à exploração de trabalho escravo. É muito importante a divulgação, e a conscientização é mais uma ferramenta de pressão para que as cadeias produtivas que utilizam trabalho escravo parem de fazê-lo.
A Conatrae dá atenção especial aos imigrantes, que têm chegado ao Brasil em grande número nos anos recentes?
Mesmo tendo seu crescimento diminuído, o Brasil continua a gerar empregos em grandes níveis e passa a ser um local atrativo para trabalhadores que antes optavam por melhorar de vida em outros países. O país cada vez mais tem entrada de estrangeiros, como haitianos, senegaleses, bengalis, bolivianos e peruanos. O Brasil é um país que foi construído em cima da migração, é um país de migrantes. Temos que continuar garantindo a esses trabalhadores condições de melhorias de vida e protegê-los. A pessoa que migra para mudar de vida está em uma situação difícil, ninguém migra se estiver bem em sua terra natal. Temos de garantir que essa vulnerabilidade não seja porta de entrada para o trabalho escravo. Já tivemos situações de resgate de bolivianos, peruanos e paraguaios, em São Paulo, na indústria têxtil e na construção civil. Aqui, no Paraná, já tivemos alguns casos na fronteira. Já houve haitianos encontrados em condições análogas à escravidão na construção civil. Mas não há vínculo direto entre trazer trabalhadores migrantes e eles serem explorados. Essas pessoas que vêm ao Brasil precisam de toda a proteção e todo o apoio do governo brasileiro para que não sejam vítimas de trabalho escravo ou de tráfico de pessoas.
Quais são os próximos desafios da Conatrae?
Nosso grande desafio talvez sejam as novas formas de exploração do trabalho escravo. Ultimamente temos muitas ocorrências de trabalho escravo em cidades, e antigamente se pensava que era um fenômeno rural. 2013 foi o primeiro ano em que tivemos mais resgatados na cidade do que no campo e também situações como trabalhadores resgatados em navios de cruzeiro. Em 2014, no dia 1.º de abril, tivemos o primeiro resgate de trabalhadores em um navio de luxo, no qual os trabalhadores estavam em condições análogas à escravidão. Nosso próximo desafio é criar uma rede nacional de combate ao trabalho escravo, que passa pela criação de comissões estaduais e municipais, nas quais possa haver interlocutores para discutir o tema.
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