Luiz Alberto Mendes: 'Talvez a única saída seja uma ruptura com o que somos'
13.12.2013 | Texto: Luiz Alberto Mendes* | Ilustração: Carnovsky
A toda hora morrem crianças de fome e maus-tratos, e nós ignoramos, devassamos as vitrines dos shoppings centers, como se nada disso Nos dissesse respeito. Talvez a única saída seja uma ruptura com o que somos
Sinto uma necessidade profunda em nós de romper com o que fomos para construirmos algo mais saudável e que nos faça felizes de fato. Há um enorme potencial em cada um de nós, que só foi explorado superficialmente. O que há de pior em nós, reconheço, é bem fácil alcançar, chegamos rápido. A melhor fase demora a chegar. Parece tão longe que nem sequer dá para imaginar como vai ser. Apenas poucos iluminados levantaram a cortina e tiveram um vislumbre de como será. Parece ótimo ter um potencial não realizado; ruim seria se não houvesse mais nada para desenvolver. Dá até quase para sentir; estamos iniciando os primeiros degraus de nossa caminhada rumo às estrelas.
O que faríamos se amanhã fosse nosso último dia? Com certeza nos quedaríamos a pensar no que faríamos sendo aquele nosso último dia. E nada faríamos de importante porque nossa mente estaria ocupada em pensar no que fazer. Não creio que possamos romper com tudo o que fomos, apesar da desesperada necessidade. Não há como modificar o que já fomos; pois aquilo está se transformando em consequências e está em nosso dia a dia. Tudo é fluência, não temos mais tempo, estamos batendo de frente com a vida e essa prática nos absorve completamente.
Não creio em transformação, mas, contraditoriamente, acredito na força determinante da vontade. Creio que alguém pode se indignar com o que existe, romper com seus valores e partir para o esforço da ultrapassagem para substituí-los conscientemente. Pelo menos foi o que se deu comigo. São cerca de 40 anos de batalhas renhidas. A guerra ainda não está vencida e parece que não vai ter fim.
Acredito que devemos, sim, ter esperanças de que podemos romper com o que está por aí e modificar as coisas. Mas somente no tempo. Na verdade, após mais de 60 anos de experiência de vida, tudo me parece paulatino e sedimentar. Nada de verdadeiro acontece de repente. O problema é que a modernidade tornou o tempo tão sem tempo que a gente não tem ideia de quando será o tempo de agir ou mesmo se esse tempo já passou e nós nem percebemos. É nítido e claro para nós que precisamos de tudo aqui e agora.
FÚTIL E BANAL
De uma coisa tenho certeza: não podemos continuar a invadir em vez de comunicar; a vasculhar em vez de descobrir; a controlar em vez de amar e a possuir em vez de ser amigo. É só na base de nossos valores que as coisas podem funcionar. Embora não saibamos ainda ao certo o que é de fato certo, nós já sabemos, comparativamente, o que é mais justo. A futilidade nos tem contaminado como uma doença, um lento morrer para o que há de importante na vida. Vivemos nos mostrando ao mesmo tempo em que nos escondemos apavorados quando alguém quer realmente saber. Na verdade, tudo o que queremos é ser aprovados. Às vezes, por pouco a gente não se mata apenas para se divertir.
Estamos inseguros, inquietos e não sabemos como nos conduzir. Nossa liberdade se limita a imitar modelos prescritos e há muito defasados. Continuamos em frente, duros como pedras, dirigindo nosso carro sem nos importar com a emissão dos poluentes e sonhando com a pílula salvadora para dormir. Em todo lugar e a toda hora morrem crianças de fome, abandono e maus-tratos. E nós devassamos, salivantes, as vitrines nos shoppings centers, como se nada disso nos dissesse respeito. A dor do outro é a pior das dores, aquela que se debate e grita alto em nossas consciências.
Romper com o quê, com o medo que nos assusta? Mas tudo nos atinge e frustra; as outras pessoas são sempre um mistério insondável a nos desafiar. Não nos identificamos com esse ser que, consciente ou inconscientemente, nos tornamos. Carregamos nas costas o peso de nossas ânsias, culpas sombrias, vivemos a confundir frieza com silêncio e tratamos nossas sensações mais intensas com remédios. E, se temos necessariamente que romper para começar de novo, então talvez a única alternativa viável seja romper com nós mesmos para reiniciar.
*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail élmendesjunior@gmail.com
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