publicado: revista Filosofia
Quando nós, cientistas sociais, escrevemos sobre aspectos relativos ao pensamento do filósofo, escritor, dramaturgo, jornalista, agitador cultural e ativista político francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), precisamos nos precaver contra eventuais preconceitos introjetados a respeito do autor de O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica, publicado em 1943. Alguns dos principais expoentes da sociologia e da antropologia francesa do século 20 procuraram afirmar a legitimidade de seu método científico a partir da negação da figura paradigmática e – na percepção deles – hegemônica, representada por J.-P. Sartre. Era, então, preciso romper com o seu domínio no campo das ideias. Em O pensamento selvagem (1962), o etnólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), prócer estruturalista, tece críticas de natureza teórico-metodológicas ao excessivo apego sartriano pela história. Já a Pierre Bourdieu(1930-2002), filósofo por formação e cientista social por ofício, que no início de sua carreira estudou e trabalhou com um opositor de Sartre, Raymond Aron (1905-1983), também não poupava disparos contra aquele que era, na época, o principal intelectual público da França.
Comuna de Paris
Primeiro governo operário – ou “república proletária” –, da história, a Comuna de Paris foi fundada em 1871 durante levantes populares na época da Guerra Franco-Prussiana. A experiência da Comuna durou cerca de três meses.
Isto posto, e livre de sectarismos tolos e improdutivos, descobriremos em Jean-Paul Sartre um pensador capaz de fazer um cruzamento vigoroso, improvável para leitores descuidados, entre Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) e Karl Marx (1818-1883). As divergências entre os autores de Assim falou Zaratustra e O capital acerca do socialismo e, particularmente, de um episódio emblemático do período, a Comuna de Paris de 1871, nos levaria a crer na inviabilidade entre essas posições. Todavia, a filosofia sartriana é produzida com alto grau de densidade – e até certa dose de hermetismo, corrigida parcialmente no livreto O existencialismo é um humanismo (1946), resultado de uma conferência proferida em Paris. E quando aqui insiro o termo “densidade”, me refiro a uma reflexão na qual estão articuladas as proposições desses que são indiscutivelmente dois dos maiores pensadores do século 19, sob a perspectiva de figuras importantes para Sartre naquele presente momento, como o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), cuja influência é expressa já no título de sua obra Ser e tempo (1927), similar, mas com claras marcações de diferenças de conteúdo, e explicitamente no subtítulo de sua magnum opus (Ensaio de Ontologia Fenomenológica).
No entanto, sobre a famosa relação de Jean- Paul Sartre com as ideias de Heidegger, muitos já escreveram com maior propriedade. Fica, para mim, da releitura de O ser e o nada, a hábil articulação sartriana entre conceitos presentes nas obras de Nietzsche e Marx: vontade, liberdade, ação, consciência. Assim, ao correlacionar ação e liberdade, Sartre se volta às categorias desses dois pensadores de maneira que ele próprio possa fazer uma interpretação singular em um momento especialmente turbulento da história da humanidade, quando o socialismo era uma realidade construída institucionalmente após a Revolução de 1917 e em plena Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), ocasião em que, enquanto combatiam um inimigo comum, os blocos socialista e capitalista representados pela União Soviética e pelos Estados Unidos duelavam silenciosamente (ou nem tanto, vide episódios bélicos dramáticos nos estertores da Segunda Guerra) por uma hegemonia que desaguaria na Guerra Fria.
Uma passagem no livro de Sartre é representativa da marcação de posição que, de todo modo, todos aqueles com consciência desperta deveriam tomar: “Liberdade é liberdade de escolher, mas não liberdade de não escolher. Com efeito, não escolher é escolher não escolher” (pg. 592). Estamos, pois, condenados à liberdade. E, pessoalmente, Jean-Paul Sartre escolheu difundir a sua visão do existencialismo (afinal, há existencialismos, e não um existencialismo pronto e embalado), participar da luta da Resistência Francesa contra o poderio nazista; defender a descolonização da África e assumir posições de esquerda – algumas delas bastante controversas. Em um misto de vaidade e engajamento autêntico, teve muita exposição midiática. E, bem na linha que definiu, nem sempre acertou: embora “a ação [seja] por princípio intencional”, escreveu, “não significa, por certo, que devam ser previstas todas as consequências de um ato”(pg. 536). Em suma, a sua liberdade de escolha, que implica em enormes responsabilidades, pressupõe a possibilidade de erros e acertos, mas jamais de omissão diante da realidade.
A despeito de muitos considerarem a sua obra ultrapassada, congelada no contexto histórico de produção, Jean-Paul Sartre é um dos autores centrais para entender a filosofia política contemporânea, justamente pela sua intencionalidade de tratar da política para além dos estudos consagrados de Teoria do Estado, ainda que em muitos momentos o intelectual público tenha se valido de pressões contra o Estado para se afirmar como uma autoridade moral e intelectual no cenário francês e mundial durante o século 20.
Daniel Rodrigues Aurélio é mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC/ PUC-SP). Graduado em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), especialista em Globalização e Cultura e Sociopsicologia pela Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais (EPG/ Fespsp ). É editor da revista Conhecimento Prático Filosofia e autor, entre outros, dos livros Dossiê Nietzsche (Universo dos Livros, 2009) e Transgressão e adaptação: discurso de cidadania na literatura infanto juvenil na Abertura Política (Ixtlan, 2013).
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