público: gazeta do povo
Já se foi o tempo em que apenas pelo casamento formal uma família era
reconhecida como tal. Ao contrário do que alguns podem pensar, não é o
fim dos tempos, tampouco da família como meio adequado para o
desenvolvimento pessoal, e base da sociedade. Muito pelo contrário! O
que hoje se vê é o reconhecimento amplo e acolhedor de inúmeras formas
de família, constituídas, sobretudo, pelos laços do afeto e desejo de
cuidado. Os vínculos formais e biológicos passaram a conviver em
harmonia com os socioafetivos.
As famílias recompostas,
reconstituídas ou famílias-mosaico, como são denominadas as novas
composições familiares depois de rompimentos de vínculos anteriores, são
uma realidade atual, e resultado da busca pela felicidade do indivíduo.
Nessas reorganizações familiares, não é raro que sejam desenvolvidas
relações afetivas entre seus membros, que muito se assemelham (e por
vezes se tornam ainda mais profundas) às formais e biológicas. Sob o
ponto de vista jurídico, esses vínculos socioafetivos construídos com a
convivência dão origem a direitos e deveres mútuos.
Famílias privatizadas?
Assistimos, recentemente, à notícia de que uma criança recém-nascida foi registrada, por força de uma decisão judicial, com os nomes de duas mulheres, um homem e seis avós. O macho da espécie deu uma força na concepção da criança, a qual será cuidada pelos três, com o detalhe de que a gestante já convive há algum tempo com a outra mulher, formando, conforme assinalado na sentença, “um ninho multicomposto e pleno de afeto”.No último século, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a exclusivamente ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Giddens observou isso com muita perspicácia e batizou a família de “instituição-casca”: cabe qualquer coisa dentro.
A família é uma construção cultural e, como tal, acompanha os
movimentos da sociedade. Não é raro, em se tratando do dinamismo dos
relacionamentos humanos, que a percepção da existência de determinado
direito seja revelada pela doutrina, seguida pelo reconhecimento
judicial em sentenças proferidas em ações que reclamam providências em
situações já vivenciadas, para posteriormente ser objeto de legislação
específica.
Com a Constituição de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana
passou a nortear o direito nas relações familiares, atribuindo ao afeto
valor jurídico. A possibilidade de atribuição de multiparentalidade
registral, fundada em laços biológicos e socioafetivos, e sem distinção
de grau de importância entre elas, decorre da função que cada indivíduo
exerce no seio familiar, e da equiparação dos vínculos afetivos aos
biológicos. Padrastos e madrastas que desenvolvem relações
paternofiliais com seus enteados, por exemplo, podem ter direitos e
deveres reconhecidos, inclusive para atribuição do sobrenome, direito de
convivência e pagamento ou recebimento de alimentos, além de possíveis
direitos sucessórios.
Neste contexto, é possível e adequada a recente decisão judicial que
assegurou a um casal homoafetivo feminino, residente no Rio Grande do
Sul, o direito de registrar a filha gerada com a participação de um
amigo do casal, sob a condição de este poder exercer plenamente sua
paternidade, com o nome de ambas na função materna. No caso específico, a
criança gerada só pode ter informações genéticas de apenas uma das
mães, embora o projeto, o desejo, as funções da maternidade, o afeto e
os cuidados sejam compartilhados por ambas.
Os laços da afetividade são considerados indispensáveis para a
caracterização da parentalidade socioafetiva, ficando as razões
patrimoniais do seu reconhecimento em segundo plano. Merece destaque, na
fundamentação da sentença que autorizou o registro, a observação do
magistrado de que a intenção de ambas as mulheres era “assegurar à sua
filha uma rede de afetos”, o que, além de admirável, não poderia ser
negado pelo “Judiciário, guardador das promessas do Constituinte de uma
sociedade fraterna, igualitária, afetiva”. Nesse sentido, nada mais
adequado e justo que seja permitida a maternidade registral de ambas as
mães, cuja dupla maternidade expressa retrata a realidade emocional
vivenciada, sem que seja possível vislumbrar qualquer prejuízo para a
criança, que se desenvolverá cercada de amor e cuidados.
Adriana Antunes Maciel Aranha Hapner, advogada, é presidente da
Comissão de Direito de Família da OAB-PR e do Instituto Brasileiro de
Direito de Família, seção Paraná (IBDFAM-PR).
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