terça-feira, 7 de outubro de 2014

Famílias privatizadas?

publicado:gazeta do povo
Assistimos, recentemente, à notícia de que uma criança recém-nascida foi registrada, por força de uma decisão judicial, com os nomes de duas mulheres, um homem e seis avós. O macho da espécie deu uma força na concepção da criança, a qual será cuidada pelos três, com o detalhe de que a gestante já convive há algum tempo com a outra mulher, formando, conforme assinalado na sentença, “um ninho multicomposto e pleno de afeto”.
No último século, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a exclusivamente ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Giddens observou isso com muita perspicácia e batizou a família de “instituição-casca”: cabe qualquer coisa dentro. 
Entretanto, nunca, como hoje, a qualidade das relações familiares é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras no âmbito social.
Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas, sobretudo, da filosofia, da linguística, da lei, da ciência e da ideologia, temperados, agora, com uma inovadora contribuição judicial. Sem dúvida, certas rigidezes e automatismos nas relações familiares não têm mais espaço nos dias atuais, ao passo que a tendência em reduzir a família a um mero fato privado deve ser vista com reservas, diante da ponderação entre os bens e interesses em jogo no tabuleiro social do bem comum.
Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa, o que dificilmente se dá num “ninho multicomposto” contratualmente e baseado exclusivamente por umas veleidades comungadas a três ou mesmo em outros redesenhos atuais da noção de família.
Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação socializante da família, tarefa na qual ela sempre desempenhou um papel chave e único para o bem comum e para a perenidade de uma civilização, o que, historicamente, sempre se deu, segundo Lévi-Strauss, graças à “união mais ou menos durável e socialmente aprovada de um homem, uma mulher e seus filhos”.
Quando o ente familiar fica reduzido a uma espécie de célula primária da vida individual (e não social), aquela vocação socializante fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma interação ética de uns com os outros. Investir nessa redução privatizante da família é semear, no longo prazo, uma sociedade atomizada, onde o próximo será um ser anônimo e com o qual me relacionarei sobretudo contratualmente, já que apenas os interesses individuais falarão mais alto.
Ao contrário do admirável mundo novo pintado na sentença que determinou o registro da criança, convém agirmos com uma certa prudência social, antes de endossarmos sumariamente “novos ninhos”. Assim, ao mesmo tempo em que se procura entender e, se for preciso, acolher os riscos e as oportunidades que nossa época oferece à instituição familiar, também se fornecem critérios seguros para a salvaguarda da essência do ente familiar, principalmente quando se atenta contra sua vocação socializante.
André Gonçalves Fernandes, juiz de direito, é mestre em Filosofia e História da Educação, membro da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE Campinas.

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