publicado:gazeta do povo
Assistimos, recentemente, à notícia de que uma criança recém-nascida
foi registrada, por força de uma decisão judicial, com os nomes de duas
mulheres, um homem e seis avós. O macho da espécie deu uma força na
concepção da criança, a qual será cuidada pelos três, com o detalhe de
que a gestante já convive há algum tempo com a outra mulher, formando,
conforme assinalado na sentença, “um ninho multicomposto e pleno de
afeto”.
No último século, parece que a sociedade perdeu o
interesse pela família ou, ao menos, relegou-a exclusivamente ao âmbito
particular da afetividade e das satisfações íntimas. Giddens observou
isso com muita perspicácia e batizou a família de “instituição-casca”:
cabe qualquer coisa dentro.
Entretanto, nunca, como hoje, a qualidade das relações familiares é
tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma
sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e
indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio
bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes
umas com as outras no âmbito social.
Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva
direta e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas,
sobretudo, da filosofia, da linguística, da lei, da ciência e da
ideologia, temperados, agora, com uma inovadora contribuição judicial.
Sem dúvida, certas rigidezes e automatismos nas relações familiares não
têm mais espaço nos dias atuais, ao passo que a tendência em reduzir a
família a um mero fato privado deve ser vista com reservas, diante da
ponderação entre os bens e interesses em jogo no tabuleiro social do bem
comum.
Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas
sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto
é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa, o que
dificilmente se dá num “ninho multicomposto” contratualmente e baseado
exclusivamente por umas veleidades comungadas a três ou mesmo em outros
redesenhos atuais da noção de família.
Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação
socializante da família, tarefa na qual ela sempre desempenhou um papel
chave e único para o bem comum e para a perenidade de uma civilização, o
que, historicamente, sempre se deu, segundo Lévi-Strauss, graças à
“união mais ou menos durável e socialmente aprovada de um homem, uma
mulher e seus filhos”.
Quando o ente familiar fica reduzido a uma espécie de célula primária
da vida individual (e não social), aquela vocação socializante fica
debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de
liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que
envolvem, necessariamente, uma interação ética de uns com os outros.
Investir nessa redução privatizante da família é semear, no longo prazo,
uma sociedade atomizada, onde o próximo será um ser anônimo e com o
qual me relacionarei sobretudo contratualmente, já que apenas os
interesses individuais falarão mais alto.
Ao contrário do admirável mundo novo pintado na sentença que
determinou o registro da criança, convém agirmos com uma certa prudência
social, antes de endossarmos sumariamente “novos ninhos”. Assim, ao
mesmo tempo em que se procura entender e, se for preciso, acolher os
riscos e as oportunidades que nossa época oferece à instituição
familiar, também se fornecem critérios seguros para a salvaguarda da
essência do ente familiar, principalmente quando se atenta contra sua
vocação socializante.
André Gonçalves Fernandes, juiz de direito, é mestre em Filosofia e
História da Educação, membro da Associação de Direito da Família e das
Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE Campinas.
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