Entrevista de 2007 com a pesquisadora Mundinha Araújo - reportagem ainda atualíssima.
Mundinha Araújo conclui pesquisa sobre o líder da maior insurreição de escravos ocorrida no Maranhão
Por: Manoel Santos Neto
Uma
das figuras mais controvertidas da História do Maranhão – o Negro Cosme
– acaba de ressurgir por meio de uma cuidadosa análise de documentos
sobre a Balaiada e será o tema do novo livro da jornalista e escritora,
ensaísta Maria Raymunda Araújo, a ser publicado no começo de 2007. Ela
se prepara para este arrojado desafio, depois de ter conseguido, em
meados do mês passado, a reedição de seu livro Insurreição de Escravos
em Viana – 1867, editado pelo antigo Sioge em 1994.
A nova
obra de Mundinha Araújo, além de permitir uma releitura sobre a mais
sangrenta revolta popular da História maranhense – a Balaiada – lança
luzes sobre o polêmico Negro Cosme, hoje reconhecido como um dos mais
importantes personagens da luta contra a escravidão no Brasil. Mas nem
sempre foi assim. Mesmo tento um papel de inegável valor histórico, o
líder negro não escapou de ser tratado como um personagem folclórico em
boa parte da literatura que trata sobre o assunto.
No
romance Os tambores de São Luís, de Josué Montello, Negro Cosme é
apresentado como “o preto de mais poder em todo o nosso Maranhão”. O
trabalho de Mundinha comprova que, pouco antes de ser enforcado pelo
governo, Dom Cosme Bento das Chagas se assinava como tutor da liberdade
e chegou a se intitular imperador. A pesquisadora observa que o líder
negro passou a ser ridicularizado como um sujeito maluco, alienado ou
aloprado, que acabou virando lenda.
Aliás, numa das passagens da
obra-prima de Montello aparece a figura imponente do preto Cosme, “que
só andava num andor, no ombro de quatro pretos, metido numa roupa de
padre, com um chapéu alto na cabeça, dando patentes de capitão e
títulos de nobreza aos seus amigos, sempre por atos de bravura, e que
consistiam em saquear as fazendas próximas”.
Segundo Mundinha,
na bibliografia oficial varia entre dois a cinco mil o número de
guerreiros liderados por Cosme. Alguns livros salientam que ele, na
heróica luta pela liberdade, abriu uma escola, para que os negros
tivessem a chance de aprender a ler e escrever, e era sem conta a gente
armada de bacamartes, espadas, lanças, espingardas, facas, punhais,
barras de ferro e até pistolas, pronta para o combate. Montello retrata
Cosme no comando de ministros e cortesãos, “como o outro Imperador, que
vivia no Rio de Janeiro, com seu papo de tucano”.
Papéis da Balaiada lançam luzes sobre a escravidão negra
Desde
o período (1980-1990) em que organizou documentos para a História da
Balaiada, posteriormente publicados pelo Arquivo Público do Estado,
Mundinha Araújo passou a recolher e selecionar todos os papéis nos
quais havia referências, muitas delas ainda inéditas, sobre o Negro
Cosme. Uma constatação é inescapável: houve uma guerra paralela, uma
efetiva insurreição de escravos, chefiada por Cosme, ao longo de todo o
período em que durou a Balaiada no Maranhão.
Esta pesquisa dá
perfeitamente para se reavaliar fatos históricos e compreender Cosme
como um personagem que tem que ser estudado como alguém que teve um
destaque considerável, não como criminoso, como bandido, mas como
alguém que teve a capacidade de liderar milhares de negros, incluindo
escravos e pretos libertos, africanos e crioulos – os negros já
nascidos no Brasil, afirma Mundinha Araújo.
Para ela, o exército
de Cosme atuava como uma frente, com muitos africanos, porque o
Maranhão ainda tinha um contingente de africanos muito expressivo,
naquela época. Era uma batalha de guerreiros, e Luís Alves de Lima só
considerou realmente pacificada a província quando ocorreu a prisão de
Cosme, assinala Mundinha. A força do governo, que andava perseguindo o
Balaio no sertão, também perseguiu implacavelmente o Negro Cosme, na
fazenda da Lagoa Amarela, mas ele e seus guerreiros não se renderam.
Lutaram até o fim.
Preso em fevereiro de 1941, Negro Cosme foi
executado em setembro de 1842, após condenado à forca por liderar no
Maranhão uma das mais temidas insurreições do povo negro ocorridas no
Brasil. À frente dos quilombolas, Cosme tinha um projeto específico,
que muitas vezes fora confundido com a luta mais geral dos chamados
bem-te-vis. Ele insurgiu-se contra a escravatura, em favor da
liberdade. E foi lutando para pôr fim à escravidão que ele engrossou as
fileiras da Balaiada, a grande revolta popular que teve lideranças como
o chefe índio Matroá, o vaqueiro Raimundo Gomes, Manoel Ferreira dos
Anjos, o Balaio, e tantos outros que pegaram em armas contra o
arbítrio, a corrupção e outros desmandos, que tantas dores, danos,
humilhações e desgraças causaram às populações negras, camponesas e
indígenas daquela época.
O suplício de um defensor da liberdade
Dono
de uma impressionante biografia, que o elevou ao panteão dos mitos, Dom
Cosme Bento das Chagas, o defensor da liberdade, virou vilão, à luz da
bibliografia oficial, por conta de sua heróica participação na Balaiada
que, mesmo sem um comando central, infligiu fragorosas derrotas contra
o poder constituído, ocupando importantes cidades como Caxias, Humberto
de Campos e Icatu, esta última próxima a São Luís.
Mas o
processo que desencadeou a condenação à morte do líder negro está
relacionado à luta contra a escravidão. Cosme já havia liderado
inúmeros negros inssuretos nos idos de 1830, nos arredores da cidade de
Codó, o que lhe valeu uma condenação. Em 1839, à frente de inúmeros
negros, tomou a Fazenda da Lagoa Amarela, às cabeceiras do Rio Preto,
tornando-a, a partir de então, seu quartel-general. Dentro desse
quilombo militar, montou uma escola, a fim de que todos pudessem
aprender a ler e escrever, o que naquela época foi um feito notável,
tendo em vista que somente os mais abastados usufruíam desse direito.
Muitos
autores acreditam que Cosme se destacava na arte da estratégia militar,
pois seus inimigos o respeitavam e o temiam. Prova disso é que Luís
Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, reconheceu em Negro
Cosme, no mês de setembro de 1840, a mais importante figura a assustar
os fazendeiros, por estar à frente de milhares de negros por ele
sublevados.
Na Balaiada, os negros foram os últimos a
capitularem. A inssurreição foi dada por terminada somente quando as
tropas legais capturaram Cosme. No entanto, os combates foram tão
intensos e ferozes que a política oficial se viu frustrada na tentativa
de poupar a vida dos escravos, para serem entregues aos seus antigos
senhores. Negro Cosme é, sem sombra de dúvidas, um símbolo de liberdade
do povo maranhense, assim como Zumbi dos Palmares está entre os mais
ilustres heróis da Nação.
Violência e repressão nos tenebrosos tempos do Império
O
Brasil viveu, entre 1831 e 1840, uma época decisiva. A Independência
consolidou um modelo político centralizador. A Corte de dom Pedro I não
permitia a autonomia política das províncias, provocando cisões em
todas as regiões, onde as facções políticas disputavam a preferência do
imperador. Para complicar ainda mais, a enorme opressão social - típica
de uma sociedade escravocrata - tornava o equilíbrio político regional
extremamente frágil.
Com a abdicação de dom Pedro I, em 1831,
e a impossibilidade de seu filho, ainda criança, assumir o trono,
forças políticas e sociais desprestigiadas resolveram tomar o destino
em suas mãos, formando contingentes armados. Algumas revoltas, como a
Sabinada, na Bahia, e a Cabanagem, no Pará, colocaram em risco a
unidade nacional, ao propor a separação do Império. Os farroupilhas
chegaram a instituir um regime republicano no Rio Grande do Sul e em
Santa Catarina. Estes movimentos lutaram por projetos alternativos de
nação, mas foram vencidos no violento processo de construção do Brasil.
O
trabalho de Mundinha Araújo mostra que a primeira grande insurreição de
escravos ocorrida no Maranhão foi a liderada por Negro Cosme. A segunda
foi a insurreição de escravos ocorrida em Viana. Além da importância
histórica incontestável, a pesquisa de Mundinha também suscita uma
série de reflexões. Faça-se então a leitura do livro Insurreição de
Escravos, cuja reedição foi lançada durante uma sessão solene da
Academia Vianense de Letras, que aconteceu na Igreja Matriz da cidade
de Viana, na noite de 18 de novembro passado.
Trata-se do
relançamento de uma obra que veio a público em 1994 graças ao antigo
Plano Editorial do extinto Sioge e que, por seu inquestionável valor
documental, ganhou uma segunda edição (revista e ampliada) graças à
iniciativa da Academia Vianense de Letras e ao patrocínio da Prefeitura
Municipal de Viana, através da administração do prefeito Rilvamar Luís.
O presidente da Academia Vianense de Letras, Luiz Alexandre
Raposo, ressalta que, completamente esquecida pela história oficial,
não fosse este oportuno trabalho da pesquisadora Mundinha Araújo, a
“revolta dos pretos de Viana” tem alcançado, desde que o livro foi
editado pela primeira vez em 1994, citações nas mais diversas obras que
tentam melhor esclarecer a postura do negro frente a tão cruel forma de
dominação. De acordo com Luiz Raposo, alguns estudiosos do assunto
chegam a considerar o episódio vianense como um dos levantes de
escravos mais importantes já registrados no Brasil.
Por isso
mesmo, Mundinha Araújo afirma que o objetivo principal é a divulgação
de seu trabalho junto às escolas. Ela espera que o episódio, que foi
muito importante em Viana, desperte interesse dos professores e alunos.
“O que eu pretendo mesmo é, a partir de agora, retomar as visitas às
comunidades da região, que na época foram abrangidas por este
conflito”, ressalta Mundinha.
Para quem não sabe, ela é a
fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão e, há quase trinta
anos, tem se dedicado à pesquisa e ao registro da resistência da raça
negra, durante o período da escravatura. Técnica em Comunicação Social,
Mundinha tem atuação marcante na área da cultura maranhense,
destacando-se seu trabalho à frente do Arquivo Público do Estado
(1991–2002), quando foi promovida a modernização dessa instituição.
Além da pesquisa, em fase de conclusão, sobre a figura do lendário
negro Cosme (temível líder quilombola da época da Balaiada), Mundinha
também é autora dos seguintes trabalhos: Breve memória das comunidades
de Alcântara (1990), A invasão do quilombo Limoeiro (1992) e Documentos
para a História da Balaiada (org. – 2001).
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