domingo, 23 de dezembro de 2012

Para muita gente, saber que alguém é negro já é o bastante

por*Leonardo Sakomoto


Há amigos que nunca foram parados em uma blitz policial. Normalmente, são brancos, caucasianos, bem vestidos, jeito de bom moço ou moça, com todos os dentes ou próteses bem feitas, dirigindo veículos que estão nos comerciais bonitos de TV. Aqueles com montanhas nevadas e cervos.

Um deles, por exemplo, me explicou que pilota uma moto há tempos sem habilitação. “A polícia não para de jeito nenhum.” Enquadra-se perfeitamente na categoria acima descrita.

Recentemente, um rosado conhecido foi parado em uma batida. Ficou transtornado. “Como se atrevem? Acham que sou um qualquer?”

Por outro lado, há aqueles que cansaram de cair na malha fina da polícia. Quase sempre, negros ou pardos.

De tanto ser parado, um outro conhecido já encara como hábito. Perguntei se isso não o revoltava. Explicou, com um certo cansaço, que, desde moleque, era sempre a mesma coisa. Então, se acostumou. Já chegou a cair em duas batidas na mesma noite. Procuravam um meliante.

A Folha de S.Paulo, deste domingo (23), traz um caderno discutindo a questão das cotas. Nele, debate as diferenças entre o perfil genético de estudantes entrevistados e o que eles autodeclaram. Explica que, às vezes, filhos de pais de pele cor parda nascem brancos ou negros. Ou, por vezes, uma pele negra esconde um perfil genético com grande participação de ancestralidade europeia. Mostrando que a história de cada família é mais complexa do que se imagina.

Na minha opinião, a questão genética não deveria influenciar. O preconceito não se traduz quando alguém tem conhecimento da ancestralidade do outro, mas ao observar a cor ou diferenças étnicas. Porque mesmo que essas diferenças visuais digam pouco sobre a origem da pessoa, séculos de racismo deram um significado bem claro para determinada cor de pele. E isso não pode ser alterado sem enfrentamento.

Na prática, muitos não esperam para perguntar o perfil genético do rapaz negro que vem no sentido contrário na rua escura. Simplesmente, atravessam para o outro lado ou correm. Balas perdidas com o DNA da polícia não são guiadas pelo perfil genético e pouco se importam que um rapaz de pele negra tenha 70% de ancestralidade europeia. Talvez, posteriormente, o legista ache interessante.

E a herança desse preconceito não precisa ter sido sentida por gerações e mais gerações. Se uma criança nascer com a pele mais escura que sua família vai sofrer preconceito na sociedade mesmo que seus pais não tenham sofrido. Se for pobre, pior ainda. Tomando como referência a média salarial, os valores pagos para uma mesma função na sociedade coloca, em ordem decrescente: homem branco rico de um lado e mulher negra pobre do outro.

Para Walter Benjamin, passado e presente são uma coisa só. No bafo da pessoa que está viva respiram também as pessoas do passado. Ao me relacionar com os outros, não faço isso só. Imprimo séculos de biografias, séculos de acomodação cultural, de preconceitos e medos, reforçadas pela imagem do que sou hoje. Não só a genealogia pesa sobre os ombros, mas também a história e as condições sociais do país. De certa forma, no “agora” está presente toda a história humana.

A Justiça que se pretende fazer com políticas de cotas não é apenas a de saldar a dívida de uma escravidão mal abolida com os descendentes dos negros escravizados que não foram inseridos como deveriam no pós Lei Áurea. Mas sim a tentativa de mudar o pensamento e a ação de uma sociedade, ainda calcada na relação Casa Grande e Senzala, que trata as pessoas de forma desigual por sua cor de pele.

Ou alguém duvida que, no fundo, Joaquim Barbosa não sofra preconceito por ser negro, mesmo ocupando a cadeira de presidente de nossa Suprema Corte? Quem duvida, leia as entrelinhas e os interditos nas palavras de políticos, de todas as agremiações, e de alguns colegas da mídia sobre ele.

Afinal, para muita gente, saber que alguém é negro já é o bastante.

*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário