quinta-feira, 7 de junho de 2012

Em Carta Alunos/as de Especialização da UFPR apoiam Estudantes Negras vítimas de Racismo

CARTA ABERTA EM APOIO E SOLIDARIEDADE ÀS DUAS ALUNAS NEGRAS E
COTISTAS RACIAIS DO CURSO DE PEDAGOGIA DA UFPR.
Se numa brincadeira você ri e eu choro, então não houve brincadeira! 
Iniciamos nossa manifestação de repúdio à atitude preconceituosa da professora Lígia Regina Klein, do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ao dizer que duas alunas negras se pareciam com “macacas”.
Para isso, pedimos licença aos nossos ancestrais africanos que foram sequestrados e aprisionados no Brasil por mais de 350 anos na condição de escravizados. Externamos nosso respeito à população negra brasileira que padece de estrutura perversa de racismo que destaca o país como sendo “um dos racismos mais perversos e sofisticados do mundo” (Carneiro, 2000), em função das estruturas das relações de poder, das estratégias de manutenção do “status quo” e de uma educação no ensino fundamental, médio e superior que pouco ou nada está voltada para a educação das relações étnico-raciais.
No contexto da citação acima vimos a público manifestar nosso apoio e nossa solidariedade às duas alunas mulheres, negras, jovens e cotistas raciais do curso de Pedagogia da UFPR.
Tem sido amplamente divulgado nos meios de comunicação, assim como nas redes sociais o ocorrido no dia 11 de abril de 2012, por volta das 20h35, na sala de aula 704, no prédio Dom Pedro I, no Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná um episódio envolvendo duas alunas negras cotistas do curso de Pedagogia da UFPR, que vieram a denunciar, posteriormente, segundo Boletim de Ocorrência amplamente divulgado através de jornais e redes sociais, a professora Lígia Regina Klein por injúria racial (Art. 140 parágrafo 3º do Código Penal ) por se referir às alunas como se fossem macacas.
Contudo, enquanto o processo tramita em instâncias legais considerando que racismo no Brasil é crime (Lei 7716/ 89 e Lei 12.288/10. Estatuto da Igualdade Racial) e a justiça ainda não finalizou o processo, temos assistido a uma série de moções de apoio em defesa da professora. Tais argumentos tendem a inocentá-la e afirmam que as acusações das alunas são caluniosas, infundadas e injustas ou como se tudo não passasse de um “lamentável equívoco”. Equívoco de quem? De quem brincou ou de quem chorou com a brincadeira? Quem brincou não deveria ter brincado? Ou quem chorou não deveria ter chorado?
A professora, que tem uma trajetória pública em defesa dos movimentos sociais, desculpou-se com as alunas em carta aberta. Sobre o episódio , Klein alegou que se tratava de uma “brincadeira” sem intenção de ofender as alunas que são negras, jovens e cotistas raciais. Diz: “O que ocorreu: em sala de aula, em horário de intervalo, aguardando o tempo para o início das aulas, deparo-me com duas alunas (para mim, absolutamente indiferente da sua condição étnico/racial) comendo bananas. Numa atitude absolutamente carinhosa, fiz uma brincadeira...” Continua: “O que eu literalmente falei foi "- ah... agarradinhas numa bananinha, hem... parecem duas macaquinhas" (Profa. Lígia Regina Klein, Carta enviada em 18/04/2012, amplamente divulgada na internet- grifo nosso).
Entendemos que uma das questões centrais em torno da Lei 10.639/2003, que altera a LDB e torna obrigatório o ensino de História da África, Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas é discutir a educação das relações étnico-raciais e, sobretudo, primar pela valorização da diversidade étnico-racial no ambiente escolar. Assim é inconcebível que haja na atual conjuntura social, destacadamente, na UFPR, uma Instituição comprometida desde 2005 com um programa de inclusão racial, educadores capazes de olhar e tratar os seus alunos “absolutamente indiferente da sua condição étnico/racial”, conforme confessou a professora Lígia. Ao contrário, acreditamos que as diversidades precisam estar explicitadas nos olhares dos educadores comprometidos com as transformações sociais. Não se pode ter um olhar universal sobre o padrão estético (fenótipo) das pessoas e muito menos dos educandos. Hoje a UFPR constitui um espaço onde encontramos alunos homens e alunas mulheres; alunos negros, brancos, indígenas ou amarelos; alunos com deficiência e sem deficiência; alunos homossexuais e heterossexuais; alunos jovens ou idosos que precisam ter suas identidades reconhecidas.
Todo educador responsável tem o dever de saber que todas estas diversidades são portadoras de subjetividades e não são poucas. Há estigmas e estereótipos que recaem mais sobre uns que em outros. Reproduzir práticas discursivas comparando o animal macaco às duas alunas negras, que são cotistas raciais, foi um erro gravíssimo e que não se deve aceitar com naturalidade dentro do ambiente acadêmico, tendo ou não a intenção de ofender. Queremos chamar atenção a um processo injusto e cruel no Brasil de mais de meio milênio que gerou e gera sofrimentos e humilhações para com a população negra (pretos e pardos). Por isso mesmo, a responsabilidade da pessoa que assume uma postura pública em defesa dos oprimidos é maior. E
não há como ser diferente. Espera-se, justamente, dela uma postura firme de combate aos estereótipos e estigmas que recaem sobre a população negra e não o reforço dos mesmos. Uma pessoa que tem uma trajetória em defesa dos oprimidos não pode ser inocentada de suas responsabilidades pelos seus atos de preconceito, discriminação e racismo ainda que não tenha sido a “intenção”.
No mesmo sentido, observamos que os olhares daqueles que já inocentaram a professora, em função de sua trajetória  acadêmica, antes mesmo de um parecer judicial, não se voltaram para a trajetória de vida destas duas jovens, mulheres, negras e cotistas raciais daquela Instituição.Verificar, por exemplo, nos históricos escolares o que fez a “brincadeira” da professora lhes produzir sensação de humilhação, dor, sofrimento e discriminação seria no mínimo sensato para julgar o caso. A maioria das crianças negras nas escolas brasileiras são xingadas de macacas constantemente. Negros são xingados de macacos porque macacos não são humanos. Pessoas negras são humilhadas quando comparadas a animais e acabam não se vendo representadas como seres humanos na sociedade. O racismo questiona a humanidade das pessoas negras. É curioso que uma das alunas [quando ouviu o pedido de desculpas da professora] reafirmou sua preocupação com a continuidade do processo [dentro da UFPR] de forma que pudesse atuar para que ninguém mais fosse xingado, para que ninguém mais tivesse que mudar de curso ou de turno como tem ocorrido, para que outros (as) alunos (as) não tenham que passar pela mesma situação. (Carta/Relato enviada por Paulo Vinícius B. da Silva, em 22/04/2012 sobre a reunião com a professora e alunas em e-mail amplamente divulgado).
Aqui, entendemos que a preocupação da aluna não foi evidenciar a professora, mas chamar atenção para o comprometimento da Universidade neste e em outros casos que acontecem lá dentro.
Mesmo com o pedido de desculpas da professora, as alunas acharam justo continuar o processo e “fora” das instâncias da Universidade. E isso, além de revelar que elas continuam ofendidas, pode inferir que foram pressionadas a aceitar o pedido de desculpas e não continuar o processo. Acreditamos que cabe à Universidade junto as suas instâncias legais promoverem ações de combate ao racismo e acatar o que a legislação estabelece ao invés de tentar solucionar o problema simplesmente com pedido de desculpas. Se assim for, indica que os alunos(as) negros(as) que são cotistas raciais e que sofrem algum tipo de discriminação racial estão completamente abandonados na UFPR. No mesmo sentido, o acordo e o pedido de desculpas pela professora ocorreram em sala fechada onde as alunas, que ainda estão no segundo ano de pedagogia, dialogaram com cinco professores doutores do Setor de Educação: Profa. Dra. Deise Picanço; Profa. Dra. Ligia Regina Klein; Prof. Dr. Paulo Vinícius B. da Silva; Profa. Dra. Tânia Maria Baibich e Profa. Dra.Tânia Zimmer. Não nos pareceu uma reunião em que as alunas teriam outra saída que não, naquele momento, aceitar o pedido de desculpas. Ainda a respeito disso, Miranda em sua carta questiona :
“Colocadas no espaço acadêmico vindas de um segundo ano de curso, ainda sem argumentos para elucidar seu próprio constrangimento, muito mais sentido do que compreendido sob uma ótica intelectual? Quem pode entender facilmente o que é a histórica da apartação social quando não se viveu tal apartação? Teriam realmente estas estudantes sido acolhidas, ou teria sido definida sua acusação de intransigência ou imaturidade? Pergunto aos senhores meus colegas [professores do Setor de Educação]: se sabem realmente como transcorre a vida dos cotistas nesta Universidade?... (Carta enviada pela Profa. Dra. Sônia Miranda. Departamento de Educação UFPR. Amplamente divulgada na internet) Pelo que se observa, nesta reunião, os docentes agiram em flagrante violação aos valores democráticos e dos direitos humanos.
Também não parece justo que as alunas passem de vítimas a rés na estrutura da Universidade onde quase se constituiu um acordo tácito entre professores influenciando alunos da pós-graduação e graduação. Uma chuva de e-mails enviados aos movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos solicitaram apoio, assinaturas em moções em defesa da professora Lígia sem enfatizar o fato em si.
Os membros da academia, pelo que observamos, usaram sua “legitimidade” e sua estrutura de poder sem oferecer as vítimas chances alguma de defesa. Quem de fato se preocupou com as alunas? Numa metáfora bastante simples: tudo nos lembra, sem exageros, o filme “Avatar” de James Cameron. Fica nítida a postura de silêncio e omissão do caso onde as vítimas é quem deveriam receber moções de o poio dos segmentos sociais e das pessoas comprometidas com o combate ao racismo, considerando a forma como o caso foi tratado dentro da UFPR. Até o momento, houve uma única manifestação pública em defesa das alunas por parte dos professores do Setor: Caso das estudantes afrodescendentes... um outro olhar.
Contudo, a professora Lígia, em carta aberta, assumiu que errou.
Diz: Em condições opostas, cometemos o mesmo erro: descuidamos de que é a História que dá conteúdo às palavras. Falei sem nenhum laivo de racismo, mas mesmo assim cometi um erro: desconsiderei a história de dor de vocês. Filhas dessa história terrível de reiterado preconceito, vocês têm toda legitimidade (sob seu ponto de vista) de fazer uma leitura que incluía o racismo.
(Ligia Klein. Carta encaminhada ao NEAB em 19/04/2012- grifo nosso) O cerne do debate qual é? É o racismo. E, sobretudo o “racismo acadêmico” quando percebemos que a Universidade, muitas vezes, age tal quais muitas escolas quando praticam “racismo institucional”: acobertam, negam, defendem, articulam com as redes de apoio, ficam em silêncio ou silenciam o grito de quem contesta a forma de educar. Não raras vezes as crianças negras, vítimas de discriminação racial no cotidiano escolar, são tidas como equivocadas. Este esquecimento, negação e silêncio são de cunho estratégico na manutenção do “status quo” da estrutura. Para Nelson Inocencio (1999):
Por haver uma hegemonia da intelectualidade branca que reduz e minimiza as sequelas do racismo é que o embate no campo das ideias torna-se um confronto absurdamente desequilibrado, deixando, obviamente, militantes/acadêmicos negros, que querem intervir no debate dentro da universidade, em significativa desvantagem. (INOCÊNCIO,1999. p.26. grifo nosso)
Nesse contexto, chamamos atenção para duas questões centrais na educação das relações étnico-raciais: o valor da diversidade étnico-racial como prática constante dos educadores e a inercialidade na forma como o racismo brasileiro é tratado na sociedade brasileira, nas Universidades e especialmente neste caso: como mera “brincadeira”.
Entendemos que as moções de apoio à professora não conseguiram problematizar a temática do racismo tampouco a necessidade de que a Universidade cumpra as suas responsabilidades na promoção da igualdade racial. Seja na forma de produzir conhecimento, redução da subrepresentação de docentes negros; seja na forma como a Lei 10.639/2003 vem sendo implementada. Precisamos com urgência perscrutar a forma como o programa de inclusão social e racial na UFPR vem sendo gerenciado para a garantia de sua efetividade. Sabemos que o racismo atua de forma estrutural e multifacetada. Atua nas pessoas de diferentes formas sejam elas progressistas ou conservadoras, por isso é preciso dialogar sobre a questão de forma comprometida.
Por fim, asseguramos que a professora Lígia com intenção ou sem intenção de ofender estas jovens mulheres negras e cotistas raciais, ofendeu-as, perversamente, ao dizer que elas pareciam macacas. E ofendeu a população negra de forma geral. Ninguém por ser progressista pode ser inocentado de qualquer prática racista, machista ou homofóbica ou de reproduzir estigmas e estereótipos sobre grupos raciais. Justamente o que se espera é uma cobrança maior destes que publicamente assumem um papel de defesa dos oprimidos.
Referências:
CARNEIRO, Sueli. Entrevista concedida a Marina Amaral, Marina Fuentes, José
Arbex et alii. Disponível em
em 29 out. 2000. [Entrevistadores: Marina Amaral, Marina Fuentes, José Arbex
Jr., Ricardo Vespucci, Marco Frenette.]Sueli Carneiro,
INOCENCIO, Nelson. Relações raciais e implicações estéticas. In: OLIVEIRA,
Dijaci David de. 50 anos depois: relações raciais e grupos socialmente
segregados. Brasília: Movimento Nacional de Direitos Humanos, 1999.

Maio de 2012, mês de reflexão sobre as relações.

1ª Turma do Curso de Especialização Pós em Educação das Relações Raciais
da UFPR/Carta assinada por todos os alunos da turma.

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