sábado, 3 de julho de 2010

Amenização das disparidades sociais ou institucionalização do racismo?

Após quase dez anos de implementação, a Cotas Raciais ainda causam divergências

Por Juliane de Oliveira

A superação das desigualdades socioecônomicas impõe-se como uma das metas de qualquer sociedade que aspira a uma maior equidade social. Em face aos problemas sociais, algumas alternativas são propostas para atenuação de desigualdades que mantém em condições díspares cidadãos de estratos distintos. Uma das alternativas propostas no Brasil é o sistema de cotas no ensino superior que visaria a acelerar um processo de inclusão social e racial de grupos à margem da sociedade.

No centro dos debates mais polêmicos das políticas públicas da educação brasileira estão as Cotas Raciais, que se constituem em reservas de vagas para negros no ensino superior e, apesar das divergências, vem sendo implantadas pelas universidades brasileiras. A instituição dessas reservas foi a primeira política pública de impacto nas ações afirmativas empreendidas pelo Governo Federal. Depois da experiência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Universidade de Brasília (UnB), foi a primeira instituição federal a adotar o pleito, destinando 20% das vagas dos cursos de graduação para candidatos que se declarassem negros, já no vestibular de 2003.

A justificativa para o sistema de cotas é que certos grupos específicos, em razão de algum processo histórico depreciativo, teriam maior dificuldade para aproveitarem as oportunidades que surgem no mercado de trabalho, bem como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade. O conceito de cotização de vagas aplica-se a populações específicas, geralmente por tempo determinado. Estas populações podem ser grupos étnicos ou raciais, classes sociais, imigrantes, deficientes físicos, mulheres, idosos, dentre outros.

A Universidade Estadual de Ponta Grossa foi a terceira instituição estadual de ensino superior do Paraná a implementar essas políticas, a partir de 2006. Segundo a Pró-Reitora de Graduação, Graciete Tozetto Góes (Prograd/UEPG), os dados destes quatro anos iniciais referentes à adoção da reserva de vagas pela Universidade remetem à eficácia do sistema em produzir seus efeitos esperados que são: “a viabilização ou ampliação do acesso à Universidade por parte de uma minoria étnica regional no Sul do país, os negros, e de uma maioria estatística, os alunos concluintes do ensino básico público”.

No entanto, o sistema de cotas é considerada uma medida polêmica, gerando debates acalorados principalmente nos círculos acadêmico e político. É algo que divide opiniões, embora seja um consenso de que algo deva ser feito para diminuição das desigualdades entre os cidadãos e grupos sociais. Alguns argumentam que o problema é de base e que atacar as conseqüências não resolve o problema, apenas cria outro. Outros, no entanto, afirmam que são medidas emergenciais e necessárias diante da condição da comunidade negra no Brasil. Antonio Ozaí da Silva, Professor e membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP) acredita o que está em jogo são interesses bem definidos para aqueles que insurgem contra as Cotas Raciais. “O que contribui para intensificar a polêmica é o fato de que, por nossa formação histórica e o racismo disfarçado, mas latente em nossa sociedade, bloqueamos e nos recusamos a enfrentar o racismo”, pondera.

Uma das contradições relacionadas às cotas de cunho racial frequentemente citadas diz respeito à institucionalização do racismo: para alguns críticos, a distinção de etnias por lei acabaria por agravar o racismo já existente. É o caso da estudante de Engelharia de Alimentos, Roseli de Almeida, que acredita que as cotas apenas aumentam a questão do preconceito. “Quando alguém diz que precisa de cotas raciais para passar no vestibular e como se dissesse que uma raça é inferior à outra, que é menos inteligente, menos capaz”.

Já a estudante de Engenharia Civil, Maria Adelaide Ramos, ingressou na Universidade mediante vaga destinada às cotas e acredita que, para além das críticas e das falhas, a cota proporcionou à ela uma disputa mais justa no vestibular. “Meus pais faleceram num acidente em 2003 e, desde então, morei com minha avó que é aposentada e não poderia me ajudar com cursinhos de preparação para o vestibular ou pagar uma faculdade para mim. Eu trabalhava com serviços gerais, mas ganhava menos que a maioria”. Segundo ela, seria praticamente impossível entrar na universidade pelo sistema de seleção Universal, ou mesmo por cotas sociais (para egressos de escolas públicas sem diferenciação étnica). “Mesmo quem estuda em escolas públicas, faz um cursinho, ou tem maiores oportunidades”, salienta.

Outras controvérsias às cotas de cunho racial residem no fato de que seria difícil definir quem teria direito a tais políticas. Alguns defendem o critério de auto-declaração, outros defendem a instauração de uma comissão de avaliadores que, baseados em critérios objetivos e subjetivos, decidiriam quem teria direito às cotas. Esta questão não é ponto pacífico, pois não há consenso sobre o tema. Em geral, as cotas raciais são voltadas para a população autodeclarada negra - podendo abranger os pardos que se declarem negros. Um caso ocorrido em 2007 na Universidade de Brasília reacendeu a polêmica, pois dois gêmeos univitelinos foram classificados como sendo de etnias diferentes. Há, inclusive, ações de inconstitucionalidade já foram propostas por alguns políticos e entidades da sociedade civil contra o sistema de cotas. Guilherme Alves, professor do Departamento de Direito da UEPG, acredita que as cotas sejam “um testado de incompetência do Estado e uma forma esdrúxula de pagar uma dívida histórica (impagável) com o povo negro”. Na opinião dele, dever-se-ia investir mais na educação de base que nas cotas universitárias. “Ou o governo poderia dar bolsas de estudos em escolas particulares para essa comunidade”.

Sem extremismos, porém, o coordenador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (Neab), professor Paulo Vinícius Baptista da Silva, ao analisar o sistema de cotas, sua aplicabilidade e seus possíveis bônus ou ônus, ressalta que se deve perceber que qualquer ação afirmativa, que busca transpor as desigualdades e a igualdade material (utopicamente), deve ser aplicada por um determinado tempo, ou seja, não é um instituto que deva ser aplicado com um finalidade definitiva. “Juntamente a isso, há de se entender que as ações afirmativas, como o sistema de cotas, devem possuir ações conjuntas, atacando o problema desde a sua raiz, pois nenhum problema social foge da deficiência das estruturas de base, como educação, distribuição de renda, falta de oportunidade, e outros”, conclui.
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Avaliação da UFPR
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As primeiras turmas formadas pelo sistema de cotas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) se formaram-se em 2008, quando foi realizado um seminário para avaliar os primeiros quatro anos de implantação da medida. Segundo da Silva, são vários os resultados positivos. Estudantes oriundos de escolas públicas e afrodescendentes, por exemplo, apresentaram desempenho igual ou superior aos demais, além de ter menor índice de evasão.
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As cotas foram implantadas em 2005 na UFPR e, desde então, já beneficiou cerca de 5,2 mil alunos. Pelo sistema, 20% das vagas da universidade em cada curso são destinadas a alunos de escolas públicas e outros 20% para alunos negros, além de vagas para indígenas. Foram cerca de dois anos de discussão até a implantação. O professor Paulo lembra que uma das questões levantadas pelas pessoas que eram contrárias ao sistema dizia respeito a qualidade do ensino. Mas isto não representou problema, pelo contrário. O professor afirma que os alunos de escolas públicas apresentaram rendimento superior aos classificados no quadro geral, e os alunos afrodescedentes tiveram desempenho similar aos demais.
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Outro dado positivo é o índice de evasão. Entre os alunos negros a desistência é três vezes menor do que entre os alunos do quadro geral. Entre os alunos de escolas públicas chega a ser duas vezes menor. “Mostra que o investimento público nesses alunos é ótimo. O dinheiro é bem aplicado, com menos desistência, mais alunos são formados”, comenta. O estudante afrodescendente Roberto Jardim, 30 anos, disse que sempre estudou em escola pública e já havia tentado duas vezes vestibular na UFPR. “O sistema facilitou a entrada no curso de ciências sociais”, ressalta.
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A vice-presidente do Conselho Permanente de Direitos Humanos do Estado do Paraná, Maria de Lourdes Santa de Souza, diz que o sistema é importante para a história do Paraná. “Nunca tivemos tantos alunos negros na universidade”, comenta. Ela diz ainda que a presença e o convívio com outros alunos ajuda também a acabar com o preconceito que ainda existe, mesmo que muitas vezes de forma velada.
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Cotas em concursos públicos

No dia da Consciência Negra, a Câmara dos Deputados aprovou projeto que estabelece cotas raciais e sociais nas universidades públicas federais de todo o país. Pelo texto, 50% das vagas nas universidades serão reservadas para alunos vindos de escolas públicas. Metade dessas vagas será distribuída de acordo com critérios raciais e estabelecidas proporcionalmente de acordo com a distribuição populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A outra metade será distribuída de acordo com a renda familiar per capita que deve ser menor que um salário mínimo e meio.
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Quem defende a reserva de vagas tem se apóia nas estatísticas brasileiras. O professor Claudio Henrique Faustino argumenta que o povo brasileiro precisa saber mais sobre a realidade do negro no Brasil antes de criticar as chamadas “ações afirmativas” que visa incluir os negros em universidades, empresas públicas e até em algumas particulares através do sistema de cotas. “Apesar da tese de que no Brasil não há discriminação racial entre negros e brancos as oportunidades não são as mesmas e fica mais evidente quando confrontamos a realidade com dados de institutos de alta credibilidade como o Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos]”, afirma. Segundo ele, as pesquisas apontam que o trabalhador negro ganha menos que o trabalhador branco mesmo quando o tempo de estudo, grau de instrução e experiências são iguais.
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Para ele, esse quadro se agrava quando essas estatísticas estão presentes na maioria dos estados brasileiros e o valor do salário do trabalhador negro chega a ser quase metade do que recebe o trabalhador branco. “Além disso a maioria dos negros trabalham na informalidade são os maiores em índices de desemprego e mesmo com curso superior raramente ocupam cargo de chefia, conforme matéria publicada no Correio Popular em 6 de junho deste ano”.
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Texto disponível também em: http://laragazzadiparole.wordpress.com/

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