domingo, 23 de fevereiro de 2014

“12 Anos de Escravidão” Herança racista

Cloves Geraldo *
publicado:vermelho.org.br

Cineasta anglo-africano Steve McQueen retoma o tema da escravidão para mostrar a permanência do racismo

Nefasta herança do sistema escravocrata, o racismo continua a assumir as mais diversas facetas, do preconceito ao diferente à disfarçada adoção de termos, como clean (limpo) ou aloiramento dos cabelos para estar na moda. Daí parecer ficção o filme que o cineasta afro-britânico Steve McQueen e seu corroteirista John Ridley estruturaram a partir das memórias do músico, escritor e abolicionista estadunidense Solomon Northup, “12 Anos de Escravidão”, lançada em 1853.

Do século XV, inicio do tráfico de escravos, ao século XIX foram vendidos 14.650.000 de africanos aos EUA (2). Na metade deste último, os afro-descendentes e os ex-escravos já circulavam como libertos no Norte dos EUA. Mesmo assim, no Sul, essencialmente agrícola, perdurava a escravatura. McQueen, em síntese exemplar, revela-o do instante em que o escravo, nativo ou africano, se torna mercadoria e tem seu preço fixado pelo leilão de cativos até chegar à fazenda. Ele não tem voz, apenas se submete.

Escravos são cotados em leilão

O leilão de escravos é um circo de horrores. Eles, homens, mulheres e crianças, são classificados segundo sua complexão física, saúde e habilidades laborais. E, uma vez precificados, são expostos nus diante dos compradores. Concluído o “pregão”, filhos são separados dos pais, irmãos dos irmãos, a família se desintegra. As sequências em que os filhos pequenos de Eliza (Sarah Paulson) são levados pelo comprador e seu choro constante, já na fazenda, corroem as entranhas dos mais insensíveis. 

Também a experiência de Northup, como escravo liberto, nada lhe serve. Ele se esmera em ser útil ao senhor de escravos Ford (Benedict Cumberbatch), para reconquistar a liberdade, mas sua solução para o transporte de madeira rende lucros a seu dono, mas só lhe traz problemas. McQueen ao ressaltar sua atitude mostra o quanto o senhor de escravos lucrava: como dono e como empresário. Northup, agora Platt, é, assim, duplamente rentável: como mercadoria e mão de obra, sem recompensa alguma.

Ocorre que no sistema escravocrata o escravo não é dono de sua força de trabalho, ele está à mercê dos interesses de seu dono. Serve como moeda de troca, penhora, empréstimo e venda. Platt hesita quando Ford, endividado, lhe diz que irá trabalhar na fazenda do poderoso Pepps (Michael Fassbender). É onde seu aprendizado de escravo se completa. É notável a clareza de McQueen para fazer o espectador entender a trajetória de Platt de ex-escravo esperançoso a ser humano mutilado.

Escravo é mula de carga

No sistema escravocrata, diz Northup/McQueen, o escravo passa do sonho à desilusão, dado ao tratamento de mula de carga que recebe. Deve suportar sempre mais às costas. De Platt e dos demais escravos, na fazenda de Pepps, é sempre exigida mais produção/colheita de algodão. Então ele, ao entender isto, perde a ilusão de libertar-se pelo esforço no trabalho. Não só pelo que sofre, mas pelos castigos impostos a Patsey (Lupita Nyong´o). As costas dela ficam em carne viva. E a autoestima e o ego se despedaçam.

McQueen não deixa de fora nenhuma etapa da desumanização perpetrada pelo sistema escravagista. Inclusive o uso da religião, dos versículos bíblicos, para sustentar os castigos e impingir medo ao escravo. Pepps, a cada chicotada em Patsey, cita um deles. Ao escravo era negado seu próprio ritual religioso. A exemplo do que fazem hoje certas igrejas evangélicas no Brasil ao invadir terreiros espíritas onde os afrodescendentes realizam seus rituais. Confundem, assim, culto aos orixás com rituais satânicos e só geram medo.

Notável a capacidade de McQueen em tratar de suas raízes e ser fiel à memória e luta de Northup. Embora Alex Hayley (1921/1992) tenha abordado este tema, em sua obra “Raízes”(1976), transposta para uma série televisiva de sucesso (1977), ele é mais contundente e corajoso. Não negligencia a contribuição dos afro-descendentes, como Steve Spielberg, em “Lincoln” (2012), que mostra a abolição como contribuição exclusiva deste, ou trata a luta do escravo como uma história de heroísmo, igual a Quentin Tarantino, em “Django Livre” (2012).

O Platt, de McQueen é o escravo que viveu as experiências de liberto e de cativo e entendeu a necessidade de organizar os seus para conquistar a abolição. Não foi um herói solitário do western, mas um revolucionário, que se entregou a causa de seu povo. Além disso, McQueen, ainda que tenha construído um filme de linguagem e estética clássica, soube fazê-lo usando os recursos com precisão e maestria. Adverso do que fez em “Shame” (2011), com cenas curtas, cortes rápidos, planos aproximados, closes. É um cineasta cuja estética serve ao seu tema.

“12 Anos de Escravidão”. (“Years a Slave”). Drama. EUA/Reino Unido. 2013.133 minutos. Fotografia: Sean Bobbit. Roteiro: Steve McQueen/John Ridley, baseado na biografia homônima de Solomon Northup. Direção: Steve McQueen. Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Lupita Nyong´o, Sarah Paulson, Benedict Cumberbatch.

(*) Bafta 2014 (prêmio inglês): Melhor filme e Melhor ator (Chiwetel Ejiofor)

(*) Globo de Ouro 2014: Melhor filme.

(1) “12 Anos de Escravidão”, Northup, Solomon, 232 págs, 2013, Editora Seoman.

(2) Franklim, Hope John; Moss, Jr., Alfred A., Da Escravidão à Liberdade, A História do Negro Americano, 1989, pág.51, Editora Nórdica, 


* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis, "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".

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