Vivi as duas experiências no mesmo dia. Fui assistir ao filme de Lee Daniels, “O mordomo da Casa Branca”, uma vigorosa e bem produzida história do racismo nos EUA, a mostrar a incrível violência com a qual os negros americanos foram tratados, muito tempo depois de o presidente Lincoln ter acabado com a escravidão. Violência que não poupou nem mesmo os trabalhadores que serviam os presidentes , como o mordomo Eugene Allen, interpretado pelo ator Forest Whitaker, em brilhante atuação. Um filme para refletir sobre a força da democracia americana, capaz de viver esses horrores e , ao mesmo tempo, eleger e reeleger um negro para a presidência. Aliás, o filme mostra que o processo foi longo e contou com os cidadãos nas ruas e os políticos em seus gabinetes, trabalhando para diminuir a chama da estupidez e da ignorância racial, processo marcado por marchas e contramarchas angustiantes para os que sofriam a dor da discriminação. Assistindo ao filme aprendemos da decisão do presidente Eisenhower de enfrentar o governador do Arkansas e fazer valer a lei que permitia a brancos e negros frequentarem as mesmas escolas. Vimos o presidente Kennedy esbravejar na televisão contra a violência no Alabama e o presidente Johnson defender o direito de voto dos negros. Ou seja, poder público ( com altos e baixos) e entidades civis ( com acertos e extremismos) lutaram juntos , em um processo que não deve terminar nunca, para oferecer aos negros os mesmos direitos e benefícios que todos podem almejar em um país como os EUA.
E, não tem como ser diferente, saí do cinema pensando em nossa sociedade discriminatória, na qual pretos ( como o IBGE os define) ganham menos, tem menor formação, apanham mais da polícia, tem menor expectativa de vida, habitam as regiões mais insalubres, frequentam mais as filas do SUS e os morgues oficiais e extraoficiais. No entanto, pouco a pouco, com grande empenho da sociedade civil organizada e do poder público, ser negro no Brasil começa a deixar de ser uma “vergonha” e começa a ser uma atitude. Lógico que nada tem a ver com “raça”, no sentido científico do termo; tem a ver com uma história na qual construiu-se um conceito de raça para discriminar e justificar diferenças que eram produzidas social e economicamente. Agora, esse mesmo critério – histórico – é usado para buscar compensar e minimizar o estrago de uma parte da elite branca que sempre viu os negros como o Outro menor e desvalorizado. Mais ou menos como as empregadas domésticas, quase todas negras ou pardas, agora portadoras de direitos que há muito eram direitos de todos mas que nossa herança escravista não admitia para elas.
Essa recuperação do lugar devido dos negros na sociedade brasileira passa também pela delimitação de momentos simbólicos de homenagens e lembranças da luta travada por muitos, ao longo dos séculos, na defesa de uma sociedade mais justa. Nos EUA, criou-se o dia para lembrar do pastor Martim Luther King, grande catalisador dessa luta pelos direitos civis dos negros americanos que é um orgulho para o mundo todo e faz dos EUA a grande democracia que é. Um dia de feriado na maior nação capitalista do mundo, para os brancos e negros americanos lembrarem que o poder público dos EUA assumiu um lado, o lado da luta contra a segregação, discriminação e preconceito. Um feriado que deve custar caro aos cofres da nação que mais dinheiro produz no mundo. Mas que tem um valor muito maior que os milhões ( bilhões, certamente) de dólares que deixam de ser arrecadados pelo comércio ávido de vendas e bons negócios: o valor da lembrança que esse país, os EUA, só poderão olhar para seus próprios olhos, com confiança e respeito, se admitirem o erro brutal e mesquinho que cometeram e prometerem, nesses momentos solenes e sagrados, que nunca mais cometerão atos assim e se o fizerem, serão punidos exemplarmente.
Enquanto isso, em Curitiba, a associação comercial, conseguiu na justiça, a anulação do feriado municipal em lembrança e em homenagem ( e para a reflexão) do dia da consciência negra. O motivo? O prejuízo que terá o comércio curitibano com a medida. Assim como acontece nos demais feriados – os religiosos, por exemplo – nunca questionados por nossos devotos vendilhões de templos.
Atos como esses não devem perder-se no vento. O dia 20 de novembro, dia da consciência negra, dia da lembrança de que somos ainda, e muito, um país racista e discriminatório, deve ser lembrado como um dia de não consumo. Se os comerciantes, com ajuda prestimosa e providencial do poder judiciário, negam o direito para homenagens e reflexão, que fiquem de braços cruzados nas portas de suas lojas , esperando Godot.
Publicado: gazeta do povo
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