foto: Oscar Calavia Sáez*
publicado: www.geledes.org.br
O texto abaixo, de autoria do antropólogo Oscar Calavia Saez, professor do Departamento de Antropologia da UFSC, foi enviado por Susan de Oliveira, com a informação de que ele o escreveu “em defesa do laudo da sua ex-orientanda, a antropóloga Flávia Cristina de Melo, citado como fraudulento pelo deputado Luis Carlos Heinze (PP/RS), autor da PFC 61/11 que visa instalar a CPI da FUNAI e anular laudos de demarcações de terras. O laudo de Flávia Cristina de Melo desapropriou área da Reserva de Mato Preto (RS), cerca de 4.230 hectares que foram devolvidos aos Guarani”.
Um grupo de deputados federais, membros ao que parece da bancada ruralista, acaba de solicitar a criação de uma CPI que investigue o papel que a FUNAI, o INCRA, diversas ONGs e departamentos universitários desempenham na demarcação de terras indígenas e quilombolas. Sou professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, que ganha um destaque especial nessas denúncias, e fui o orientador da tese de doutorado de Flávia Cristina de Melo, a antropóloga citada nesse documento. São motivos suficientes para manifestar-me a respeito.
Os nobres deputados passam revista à legislação que regula as terras indígenas e quilombolas; às ações de governo que as implementam, e às dos tribunais que dirimem os conflitos daí decorrentes, e reclamam de que, no meio desses três poderes, a Universidade, junto com essas outras entidades, exerça um outro poder (na opinião deles inadequado e fraudulento) que promove a proliferação dessas terras indígenas e quilombolas.
A Universidade não é um poder da República, mas é a encarnação institucional do saber da República. Quanto ao tema em pauta, esse saber está bem estabelecido. Sabemos que a formação do Brasil impôs um pesado tributo sobre a sua população originária: guerra, integração forçosa, esbulho de suas terras. E recorreu também a um tráfico de seres humanos que, depois de servirem durante séculos ao agronegócio da cana e do café e a todos os outros afazeres mais duros da economia, receberam uma liberdade formal, mas não um lugar desde donde exercê-la; esse é, se alguém não lembra, a origem da população negra brasileira.
Esse é o passado, e para que a história possa seguir em termos mais pacíficos e mais justos – e, assim, mais realmente prósperos – a República tem adotado políticas de reconhecimento e reparação, mais generosas agora do que foram no passado. Mesmo assim condicionadas a alguns requisitos que o documento dos deputados revisa: uma história de resistência, posse permanente das terras nos últimos decênios, etc. A partir da Constituição de 1988, o contencioso histórico tem sido resolvido para muitos, não para todos. Não, precisamente, para os mais afetados pelos esbulhos que continuaram no último século, enxotando os índios – especialmente os Guarani – e os pequenos agricultores negros de um canto a outro de um território que ia sendo loteado e atribuído a outros proprietários, especialmente no sul do país.
Os nobres deputados se escandalizam de que um 14% do território brasileiro seja destinado a grupos indígenas que representam um 0,30% da população, e pensam que isso é um obstáculo para o progresso do Brasil.
Deveriam talvez se perguntar por quê a prosperidade do Canadá não está sendo ameaçada por ter destinado aos povos indígenas – pouco mais vultosos lá – um 40% do seu território. Quiçá seja porque a prosperidade de um país não está atrelada à celeridade com que se consomem suas terras e seus recursos naturais com destino a uma exportação lucrativa, e sim a um desenvolvimento digno de toda a sua população, e a uma administração criteriosa do seu meio ambiente. Devem saber que esse 14% é uma parte fundamental da floresta preservada no Brasil. Mas, é claro, os deputados devem fazer parte dessa ampla bancada que entende que também se reservou espaço demais para as matas e as beiras de rio; que a produção pode avançar sempre mais um pouco sobre elas, enquanto um milagre segura o solo e a umidade. Na Universidade sabe-se que esses milagres não existem.
Os nobres deputados se inquietam porque algumas terras reivindicadas para índios e quilombolas tenham um alto valor produtivo ou venal – do qual parecem bem informados. Haverá algum propósito oculto nessas reivindicações? Deveriam lembrar que foi precisamente isso, o valor de suas terras, o motivo para que os mais fracos fossem uma e outra vez expulsos do lugar onde se encontravam há setenta, cem ou duzentos anos.
Deveriam explicar também quão miserável deveria ser o valor de uma terra para que eles estimassem razoável destina-la aos seus donos originais, ou aos descendentes dos escravos.
Os nobres deputados se preocupam, com muita razão, pela insegurança jurídica que causam as reivindicações de terras, especialmente para colonos que ocuparam lotes outrora indígenas. Mas devem saber que injustiças não resolvidas sempre geram insegurança jurídica. Por isso mesmo há muito tempo, em lugar de hostilizar e resistir às iniciativas de instituições indigenistas, universidades e Ministério Público, deveriam ter tomado iniciativas próprias que não fossem, como sempre o foram, as de eliminar, de fato ou de direito, aquelas populações indígenas ou negras que eles só conseguem enxergar como empecilhos; que foram esteios da construção do país mas podem ser já tratadas como bananeira que deu cacho.
O documento dos deputados não alude a essa suspeita, sempre presente em CPIs desse teor, de que as terras indígenas ameacem a soberania nacional, já que com freqüência se situam nas fronteiras do país. Mas talvez não tardará em aparecer também esse bordão, que é uma amostra de malícia ou de ignorância culpável: esses territórios estão nas fronteiras porque as fronteiras foram garantidas pela presença indígena. O caso mais conspícuo pode ser o do Amapá, onde a diplomacia brasileira ganhou uma extensa faixa de terras à Caiena francesa fazendo reconhecer como brasileiros os índios que lá moravam – embora então, como ainda agora, esse índios falassem francês…
Os índios tantas vezes acusados de comprometer a soberania são os mesmos que durante séculos, antes mesmo da Independência, foram definidos como “muralhas dos sertões”, a proteger o espaço que viria a ser o do Brasil, e que o continuam a fazer, integrando em grande número os batalhões de selva do exército brasileiro.
Bem longe da Amazônia, os deputados também se preocupam com fronteiras: pretendem que os índios Guarani que reivindicam terras no sul do país são, na verdade, argentinos ou paraguaios; o que parece inconteste é que são povos privados de cidadania sobre cujo território foram traçados, sem a mais mínima consulta a eles, os limites desses países. Os deputados entendem que, enquanto as fronteiras se apagam para a expansão do agronegócio brasileiro em territórios vizinhos, elas devem ser aplicadas com rigor para os seres humanos aos que, a um lado e outro da fronteira, esse prodigioso desenvolvimento deixa sem chão.
Eu entendo, como os deputados, que ONGs e Universidades não deveriam se intrometer em questões de estado que competem aos três poderes constitucionais. É lamentável que estes, e muito especialmente o Legislativo, prefiram advogar por fortunas particulares deixando a outros as tarefas que interessam ao Brasil no seu conjunto: a defesa do seu meio ambiente e o destino do seu povo.
Enfim, vale a pena refletir sobre um detalhe, presente no documento, que tem sido motivo para ataques irônicos contra o laudo da antropóloga Flávia de Melo a respeito da aldeia de Mato Preto. Ela teria revelado que a decisão de se deslocar para essa terra foi tomada pelos Guarani durante uma sessão religiosa em que se consumiu um chá alucinógeno. Superstição, irracionalidade misturada a decisões sérias? Os nobres deputados devem ter visitado, em Brasília, o memorial-mausoléu do presidente Juscelino Kubitschek. Lá, num painel bem visível que trata das origens do seu empreendimento, ficamos sabendo como a construção de Brasília foi prevista num sonho profético do santo católico Giovanni Bosco, que quase um século antes da construção da capital viu a civilização cristã chegando naqueles sertões então ocupados “apenas” por índios nus. Se a demarcação de uma terra indígena deve ser posta em dúvida por ter se amparado em visões próprias de uma religião indígena – tão respeitável como qualquer outra, enquanto perdure o pluralismo religioso – caberia também se perguntar o quê fazem esses três poderes ali onde os sonhou um clérigo italiano que jamais pisou terra brasileira.
*Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Um grupo de deputados federais, membros ao que parece da bancada ruralista, acaba de solicitar a criação de uma CPI que investigue o papel que a FUNAI, o INCRA, diversas ONGs e departamentos universitários desempenham na demarcação de terras indígenas e quilombolas. Sou professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, que ganha um destaque especial nessas denúncias, e fui o orientador da tese de doutorado de Flávia Cristina de Melo, a antropóloga citada nesse documento. São motivos suficientes para manifestar-me a respeito.
Os nobres deputados passam revista à legislação que regula as terras indígenas e quilombolas; às ações de governo que as implementam, e às dos tribunais que dirimem os conflitos daí decorrentes, e reclamam de que, no meio desses três poderes, a Universidade, junto com essas outras entidades, exerça um outro poder (na opinião deles inadequado e fraudulento) que promove a proliferação dessas terras indígenas e quilombolas.
A Universidade não é um poder da República, mas é a encarnação institucional do saber da República. Quanto ao tema em pauta, esse saber está bem estabelecido. Sabemos que a formação do Brasil impôs um pesado tributo sobre a sua população originária: guerra, integração forçosa, esbulho de suas terras. E recorreu também a um tráfico de seres humanos que, depois de servirem durante séculos ao agronegócio da cana e do café e a todos os outros afazeres mais duros da economia, receberam uma liberdade formal, mas não um lugar desde donde exercê-la; esse é, se alguém não lembra, a origem da população negra brasileira.
Esse é o passado, e para que a história possa seguir em termos mais pacíficos e mais justos – e, assim, mais realmente prósperos – a República tem adotado políticas de reconhecimento e reparação, mais generosas agora do que foram no passado. Mesmo assim condicionadas a alguns requisitos que o documento dos deputados revisa: uma história de resistência, posse permanente das terras nos últimos decênios, etc. A partir da Constituição de 1988, o contencioso histórico tem sido resolvido para muitos, não para todos. Não, precisamente, para os mais afetados pelos esbulhos que continuaram no último século, enxotando os índios – especialmente os Guarani – e os pequenos agricultores negros de um canto a outro de um território que ia sendo loteado e atribuído a outros proprietários, especialmente no sul do país.
Os nobres deputados se escandalizam de que um 14% do território brasileiro seja destinado a grupos indígenas que representam um 0,30% da população, e pensam que isso é um obstáculo para o progresso do Brasil.
Deveriam talvez se perguntar por quê a prosperidade do Canadá não está sendo ameaçada por ter destinado aos povos indígenas – pouco mais vultosos lá – um 40% do seu território. Quiçá seja porque a prosperidade de um país não está atrelada à celeridade com que se consomem suas terras e seus recursos naturais com destino a uma exportação lucrativa, e sim a um desenvolvimento digno de toda a sua população, e a uma administração criteriosa do seu meio ambiente. Devem saber que esse 14% é uma parte fundamental da floresta preservada no Brasil. Mas, é claro, os deputados devem fazer parte dessa ampla bancada que entende que também se reservou espaço demais para as matas e as beiras de rio; que a produção pode avançar sempre mais um pouco sobre elas, enquanto um milagre segura o solo e a umidade. Na Universidade sabe-se que esses milagres não existem.
Os nobres deputados se inquietam porque algumas terras reivindicadas para índios e quilombolas tenham um alto valor produtivo ou venal – do qual parecem bem informados. Haverá algum propósito oculto nessas reivindicações? Deveriam lembrar que foi precisamente isso, o valor de suas terras, o motivo para que os mais fracos fossem uma e outra vez expulsos do lugar onde se encontravam há setenta, cem ou duzentos anos.
Deveriam explicar também quão miserável deveria ser o valor de uma terra para que eles estimassem razoável destina-la aos seus donos originais, ou aos descendentes dos escravos.
Os nobres deputados se preocupam, com muita razão, pela insegurança jurídica que causam as reivindicações de terras, especialmente para colonos que ocuparam lotes outrora indígenas. Mas devem saber que injustiças não resolvidas sempre geram insegurança jurídica. Por isso mesmo há muito tempo, em lugar de hostilizar e resistir às iniciativas de instituições indigenistas, universidades e Ministério Público, deveriam ter tomado iniciativas próprias que não fossem, como sempre o foram, as de eliminar, de fato ou de direito, aquelas populações indígenas ou negras que eles só conseguem enxergar como empecilhos; que foram esteios da construção do país mas podem ser já tratadas como bananeira que deu cacho.
O documento dos deputados não alude a essa suspeita, sempre presente em CPIs desse teor, de que as terras indígenas ameacem a soberania nacional, já que com freqüência se situam nas fronteiras do país. Mas talvez não tardará em aparecer também esse bordão, que é uma amostra de malícia ou de ignorância culpável: esses territórios estão nas fronteiras porque as fronteiras foram garantidas pela presença indígena. O caso mais conspícuo pode ser o do Amapá, onde a diplomacia brasileira ganhou uma extensa faixa de terras à Caiena francesa fazendo reconhecer como brasileiros os índios que lá moravam – embora então, como ainda agora, esse índios falassem francês…
Os índios tantas vezes acusados de comprometer a soberania são os mesmos que durante séculos, antes mesmo da Independência, foram definidos como “muralhas dos sertões”, a proteger o espaço que viria a ser o do Brasil, e que o continuam a fazer, integrando em grande número os batalhões de selva do exército brasileiro.
Bem longe da Amazônia, os deputados também se preocupam com fronteiras: pretendem que os índios Guarani que reivindicam terras no sul do país são, na verdade, argentinos ou paraguaios; o que parece inconteste é que são povos privados de cidadania sobre cujo território foram traçados, sem a mais mínima consulta a eles, os limites desses países. Os deputados entendem que, enquanto as fronteiras se apagam para a expansão do agronegócio brasileiro em territórios vizinhos, elas devem ser aplicadas com rigor para os seres humanos aos que, a um lado e outro da fronteira, esse prodigioso desenvolvimento deixa sem chão.
Eu entendo, como os deputados, que ONGs e Universidades não deveriam se intrometer em questões de estado que competem aos três poderes constitucionais. É lamentável que estes, e muito especialmente o Legislativo, prefiram advogar por fortunas particulares deixando a outros as tarefas que interessam ao Brasil no seu conjunto: a defesa do seu meio ambiente e o destino do seu povo.
Enfim, vale a pena refletir sobre um detalhe, presente no documento, que tem sido motivo para ataques irônicos contra o laudo da antropóloga Flávia de Melo a respeito da aldeia de Mato Preto. Ela teria revelado que a decisão de se deslocar para essa terra foi tomada pelos Guarani durante uma sessão religiosa em que se consumiu um chá alucinógeno. Superstição, irracionalidade misturada a decisões sérias? Os nobres deputados devem ter visitado, em Brasília, o memorial-mausoléu do presidente Juscelino Kubitschek. Lá, num painel bem visível que trata das origens do seu empreendimento, ficamos sabendo como a construção de Brasília foi prevista num sonho profético do santo católico Giovanni Bosco, que quase um século antes da construção da capital viu a civilização cristã chegando naqueles sertões então ocupados “apenas” por índios nus. Se a demarcação de uma terra indígena deve ser posta em dúvida por ter se amparado em visões próprias de uma religião indígena – tão respeitável como qualquer outra, enquanto perdure o pluralismo religioso – caberia também se perguntar o quê fazem esses três poderes ali onde os sonhou um clérigo italiano que jamais pisou terra brasileira.
*Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário