quinta-feira, 21 de julho de 2011

Joel Rufino dos Santos: a voz do morro na literatura

 O historiador, professor e escritor lança romance que aborda 50 anos da história do Brasil do ponto de vista de pessoas comuns, próximo ao estilo do grande escritor Lima Barreto. Por Marcos Aurélio Ruy

O romance Bichos da Terra Tão Pequenos, de Joel Rufino dos Santos (Editora Rocco, 2010, 206 páginas) narra importantes passagens históricas do Brasil dos anos 1950 aos 2000. Com o título extraído de poesia de Luís de Camões, o livro não pretende ser histórico, é pura ficção.
O autor apresenta o morro do Urubu, com características semelhantes aos morros cariocas e a trajetória de marginalização e perseguição política aos negros, aos pobres, aos esquerdistas, aos comunistas e a todos que de alguma forma postavam-se contra o regime, conscientemente ou não.

O protagonista da história Vinquinho é um daqueles personagens feitos para marcar a literatura para a eternidade. Traz em seu bojo a vida do subúrbio carioca em todas as fazes da história do Rio de Janeiro, por muito tempo a capital federal do país. Estão presentes no livro: a favela, a cidade, a repressão, a vontade do homem do povo de não encerrar-se em seu sofrimento na luta cotidiana pela sobrevivência.

Ativista do movimento negro e estudioso das questões do negro brasileiro, Joel Rufino dos Santos foi discípulo do marxista Nelson Werneck Sodré, com quem trabalhou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Foi preso e exilado pela ditadura fascista de 1964-1985, por seu envolvimento com a Aliança Libertadora Nacional, organização que partiu para a luta armada contra o regime militar.

Sempre na luta contra a discriminação racial e por um país menos desigual, o único professor negro de pós-graduação em Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro publicou mais de 50 livros, sendo este o mais recente. Concorde-se ou não com suas teses, Rufino consiste em leitura obrigatória para todos que desejam entender um pouco mais a formação do povo brasileiro, seja por obras ficcionais, seja pelas obras científicas.

Alguns livros do autor
O Dia em que o Povo Ganhou (Civilização Brasileira, 1979)
A Botija de Ouro (Editora Ática, 1984)
Afinal, Quem Fez a República? (FTD, 1989)
O que é Racismo (Editora Brasiliense, 1998)
A Vida de Zumbi dos Palmares (FAE/MEC, 1995)
Quando Voltei Tive uma Surpresa (Editora Rocco, 2000)
O Presente de Ossanha (Global, 2006)
Na Rota dos Tubarões; o Tráfico Negreiro e Outras Viagens (Editora Pallas, 2008)
Quem Ama Literatura Não Estuda Literatura: Ensaios Indisciplinados (Editora Rocco, 2008)

Texto do livro:

"Os quarenta jurados, caso único no Grupo de Acesso, deram nota dez à Alegria do Urubu. Com duas horas da apuração, a quadra na subida do morro põe gente pelo ladrão. Merienne, Rui Roberto e Fuad chegam nos ombros da massa. Puseram os barris de chope numa varandinha, era só sentar, abrir a boca, a sobra escorria pelos corpos, fazia riachos no chão. Martin, extasiado, procura uma cara conhecida na festa bárbara. Menino em Sulzback, sábado de manhã, vinha com colegas espiar pela janela a taberna da cidade, ainda com cheiro de Branntwein, cerveja derramada, salame, tutano de porco, sexo e sovaco. Imaginava um instante o que se passara ali, à noite, corpos apertados nos bancos de carvalho, lieds, canecas de líquido vermelho, um animal inteiro, talvez porco, talvez centauro, atirado periodicamente pelas criadas de tranças duplas e avental amarelo no centro da mesa comprida. O menino recuava para a luz da rua, com medo, como agora. Passa um trenzinho humano, carregam com ele, lhe derramam chope por dentro da camisa, as cuecas e as meias se encharcam. “Nada se parece mais com um alemão que um negro”, lhe sussurrara no sambódromo o chefe do Instituto, vendo passar uma ala de mulheres. “Nada se pode confiar nessa gente, quando não fazem na entrada fazem na saída”, o mesmo que se dizia na Europa sobre os alamanos de achas, no tempo de César, e sobre a pequeno-burguesia de Munique, lá por 1925, embriagada de esqui, cerveja, Karneval o Octoberfest, enquanto nos fundos corriam a patadas as disputas partidárias que deram no que deram, e mesmo dos roqueiros de hoje que derrubaram o Muro para em seguida ressuscitarem os símbolos que transportavam à Feldherrnhalle, Salão dos Generais, em cuja porta, levando-o para a escola, sua mãe diariamente parava, descia da bicicleta para juntos fazerem a saudação nazi obrigatória. Nessa época executaram Walter Klingenbeck, com dezenove anos, e sua mãe, grávida, o Marido no exército, lhe propôs um segredo – se fosse menino se chamaria em casa, secretamente, até que a guerra acabasse, Walter Klingenbeck. A ex-esposa, de um casamento breve e ruim, dizia maldosamente a Martin que um Jean Cristophe vive em cada alemão, trágico, abstrato, contido, telúrico como os negros do Brasil,mas é bom ressalvar, não os da África. “Um alemão sozinho é um alemão, dois é a Germânia”, completava ela, ex-aluna de Leopold Senghor em Paris, “tal e qual os negros que ao se reunirem instauram a negritude.” Duvidava disso, mas é verdade que ela o dizia com convicção, pouco se importando, como scholar, que o interlocutor concordasse."

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