quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A MEDIOCRIDADE INTELECTUAL – Capítulo II de “O Homem Medíocre” de José Ingenieros

 

I — O homem rotineiro


A rotina é um esqueleto fóssil, cujas peças resistem à carcoma do século. Não é filha da experiência; é a sua caricatura. A primeira é fecunda, e engendra verdades; a outra é estéril, e as mata.
Na sua órbita giram os espíritos medíocres. Evitam sair dela, e cruzar espaços novos; repetem que é preferível o mau conhecido ao bom ignorado. Ocupados em desfrutar o existente, alimentam horror a toda inovação que perturbe a sua tranqüilidade, e lhes traga desassossegos. As ciências, o heroísmo, as originalidades, as invenções, a própria virtude, parecem-lhes instrumentos do mal, posto que desarticulam o edifício dos seus erros: como nos selvagens, nas crianças nas classes incultas.
Acostumados a copiar, escrupulosamente, os preconceitos do meio em que vivem, aceitam, sem verificação, as idéias distiladas no laboratório social: como esses enfermos de estômago imprestável, que se alimentam com substâncias já digeridas nos frascos das farmácias. Sua impotência para assimular idéias novas, obriga-os a adotar as antigas

A Rotina, síntese de todas as renuncias, é o hábito de renunciar a pensar. Nos rotineiros, tudo é menor esforço; a preguiça enferruja a sua inteligencia. Cada hábito é um risco, porque a familiaridade se forma no sentido das coisas detestáveis e das pessoas indignas. Os atos que, a princípio, provocavam pudor, acabam por parecer naturais; a retina percebe os tons violentos como simples matizes, o ouvido escuta as mentiras com igual respeito com que ouve verdades, o coração aprende a não se agitar diante de ações torpes.
Os conceitos são crenças anteriores à observação; os juízes exatos, ou errôneos, são consecutivos a ela. Todos os indivíduos possuem hábitos mentais; os conhecimentos adquiridos facilitam os vindouros, e marcam o seu caminho. Até certo ponto, ninguém pode subtrair-se à sua ação. Não são exclusividades dos homens medíocres; mas, nestes, representam sempre uma passiva obseqüência ao erro alheio. Os hábitos adquiridos pelos homens originais são genuinamente seus, intrínsecos: constituem o seu critério, quando pensam, e o seu caráter, quando atuam; são individuais e inconfundíveis. Diferem substancialmente da Rotina, que é coletiva e sempre perniciosa, extrínseca ao indivíduo, comum ao rebanho; consiste em ser contagiado pelos preconceitos que infestam a cabeça dos outros. Aqueles caracterizam os homens; esta empana as sombras. O indivíduo plasma para si próprio nos primeiros; a sociedade impõe a segunda. A educação oficial envolve esse perigo; tenta apagar toda originalidade, pondo iguais opiniões em cérebros diferentes. A cilada persiste no inevitável trato mundano com homens rotineiros. O contágio mental flutua na atmosfera, e acossa por todos os lados; nunca se viu um tolo originalizado pela contiguidade, mas freqüentemente é possível que um engenho se atoleie entre palpavos.
A mediocridade é mais contagiosa que o talento.
Os rotineiros racionam com a lógica dos outros. Disciplinados pelo desejo alheio, encaixam-se em seu escaninho social, e se catalogam, como recrutas, nas fileiras de um regimento. São dóceis à pressão do conjunto, maleáveis ao peso da opinião pública, que os aplaina, como inflexível laminador. Reduzidos a sombras inúteis, vivem do critério alheio; ignoram-se a si próprios, limitando-se a crer que são como os outros julgam. Os homens excelentes, ao invés, desdenham a opinião alheia na justa proporção em que respeitam a própria, sempre mais severa, ou a de seus iguais.
São sáfios sem que, entretanto, se julguem desgraçados por isso. Si não se presumissem razoáveis, o absurdo que representam, enterneceria. Ouvindo-os falar durante uma hora, parece que esta tem mil minutos. A ignorância é seu verdugo, como outrora o foi do servil, e o é atualmente do selvagem; ela os transforma em instrumentos de todos os fanatismos, dispostos à domesticidade, incapazes de gestos dignos.
Seriam capazes de enviar em comissão um lobo e um cordeiro, surpreendendo-se, depois, sinceramente, de ver o lobo voltar sozinho. Carecem de bom gosto e de aptidão para o adquirir. Se o humilde guia de museu não os detém, com insistência, passam indiferentes diante de uma madona do Angélico, ou de um retrato de Rem-brandt; à saída, assombram-se diante de qualquer mostrador contendo oleografias de toureiros espanhóis, ou de generais americanos.
Ignoram que o homem vale por seu saber; negam que a cultura é a mais profunda fonte da virtude. Não procuram estudar; suspeitam, porventura, a esterilidade do seu esforço, como essas mulas que, pelo costume de marchar a passo, perderam a faculdade do galope. Sua incapacidade de meditar acaba convencendo-os de que não ha pro blemas difíceis, e qualquer reflexão parece-lhe um sar casmo; preferem confiar em sua ignorância, para adivinhar tudo. Basta que um preconceito seja inverossímil, para que o aceitem e o difundam; quando jugam ter errado, podemos jurar que cometeram a imprudência de pensar. A leitura produz-lhe efeitos de envenenamento. Suas pupilas se deslizam frívolamente sobre centões absurdos; gostam dos mais superficiais, desses em que um espírito claro nada poderia aprender, embora sejam bastante profundos para empantanar um torpe. Engolem sem digerir, até a indigestão mental; ignoram que o homem não vive do que engole, sinão, do que assimila. O atascamento pode convertê-los em eruditos, e a repetição pode dar-lhes hábitos de ruminantes. Mas, acumular dados não é aprender; tragar não é digerir. A mais intrépida paciência não transforma um rotineiro em pensador; é preciso saber amar e sentir a verdade. As noções mal digeridas só servem para atolar o entendimento .
Povoam a sua memória com máximas de almanaque, e ressucitam-nas de vez em quando, como se fossem sentenças. Sua cerebração precária tartamudeia pensamentos armazenados, fazendo gala de simplezas que são a espuma inocente da sua tolice; incapazes de espicaçar a sua própria cabeça, renunciam a qualquer sacrifício, alegando a insegurança do resultado; não suspeitam que "há mais prazer em marchar em direção da verdade, do que em chegar a ela".
Suas crenças, limitadas pelos fanatismos de todos os credos, abarcam zonas circunscritas por superstições pretéritas. Dão o nome de idéias às suas preocupações, sem advertir que são simples rotina engarrafada, paródias de razão, opiniões sem juízo. Representam o senso comum desbocado, sem freio do bom senso.
São prosaicos. Não têm ânsias de perfeição: a ausência de ideais impede-os de pôr, em seus atos, o grão de sal que poetiza a vida. Estão saturados dessa humana tolice que obsecava Flaubert, insuportavelmente. Êle a descreveu em muitas personagens, devido a ela tomar tão grande parte na vida real. Homais e Bouriseu são seus protótipos; é impossível julgar se é mais tolo o racionalismo agressor do boticário livre-pensador, ou a casuística untuosa do eclesiástico profissional. Por isto, o autor os fez ditosos, de acordo com sua doutrina: "ser tolo, egoísta, e ter uma boa saúde, eis aí as três condições para ser feliz. Mas, si vos falta a primeira, tudo está perdido".
Sancho Panza é a encarnação perfeita dessa animalidade humana: resume em sua pessoa as mais conspícuas proporções da tolice, do egoísmo e da saúde. Em hora, para êle fatídica, chega a maltratar o seu amo, numa cena que simboliza o desdobrar vilão da mediocridade sobre o idealismo. Horroriza pensar que escritores espanhóis, julgando mitigar, com isto, os estragos do quixotismo, se tenham jeito apologistas do grosseiro Panza, opondo o seu bastardo sentido prático aos quiméricos sonhos do cavaleiro; houve quem o encontrou cordial, leal, crédulo, iludido, em tal grau, que o poderia tornar em símbolo exemplar de povos.
Como não distinguir que um tem idéias e outro apetites; um, dignidade e outro servilismo; um fé e outro credulidade; um, delírios originais de sua cabeça e outro absurdas crenças imitadas das alheias? O autor de "Vida de Dom Quixote e Sancho" respondeu a todos, com profunda emoção, fazendo que o conflito espiritual entre o senhor e o lacaio, se resolva na evocação das memoráveis palavras pronunciadas pelo primeiro.
"Asno és, e asno hás de ser, e em asno hás de acabar quando se esgotar o curso da tua vida".
Dizem os biógrafos que Sancho Panza chorou, até convencer-se de que, para ser asno, faltava-lhe apenas a cauda. O símbolo é cristalino. A moral também; em face de cada forjador de ideais, mil Sanchos se alinham, impávidos, como si, para conter o advento da verdade, fosse necessária a conjura de todas as hostes da estultícia.
O revérbero da originalidade cega o homem rotineiro. Foge dos pensadores alados, albino diante da sua luminosa reverberação. Teme embriagar-se com o perfume do seu estilo. Si pudesse, proscrevê-los-ia em massa, restaurando a Inquisição e o Terror; aspectos equivalentes de um mesmo ciúme dogmatista.
Todos os rotineiros são intolerantes; a sua exígua cultura condena-os a ser assim. Defendem o anacrônico e o absurdo; não permitem que as suas opiniões sofram a fiscalização da experiência. Chamam herege ao que busca uma verdade, ou aspira a um ideal, os negros queimam Bruno e Severt, os vermelhos decapitam La-voisier e Chenier. Ignoram a sentença de Shakespeare.
"O herege não é aquele que as queima na fogueira, sinão, aquele que a acende".
A tolerância dos ideais alheios é virtude suprema dos que pensam. É difícil para os semi-cultos; inacessível. Exige um perpétuo esforço de equilíbrio diante do erro dos demais; ensina a suportar essa conseqüência legítima da falibilidade de todo juízo humano. O que trabalhou muito para formar suas crenças, sabe respeitar as dos outros. A tolerância é o respeito, nos outros, de uma virtude própria; a firmeza das convicções, reflexivamente adquiridas, faz estimar nos próprios adversários um mérito cujo preço se conhece.
Os homens rotineiros desconfiam da sua imaginação, persignando-se quando esta os atribula com heréticas tentações. Arrenegam a verdade e a virtude, si elas demonstram os erros dos seus juízos; revelam grave inquietude, quando alguém se atrave a perturbá-los. Astrônomos houve que se negaram a olhar para o céu, através do telescópio, temendo ver desbaratados os seus erros mais firmes.
Pressentem um perigo em toda idéia nova; se alguém lhes dissesse, que os seus preconceitos são idéias novas, chegariam a julgá-los perigosos. Essa ilusão os faz proferir balelas com a solene prudência de augures, que temem desorbitar o mundo com suas profecias. Preferem o silêncio e a inércia; não pensar é a única maneira de não errar. Seus cérebros são casas de hospedagem, mas, sem dono; os outros pensam por eles que, no íntimo, agradecem esse favor.
Os rotineiros carecem de opinião a respeito de tudo o que já não tenha julgamentos definitivamente consolidados. Seus olhos não sabem distinguir a luz da sombra, como os rústicos não sabem distinguir o ouro do latão; confundem a tolerância com a cobardia, a discrição com o servilismo, a complacência com a dignidade, a simulação com o mérito. Denominam sensatos os que subscrevem mansamente os erros consagrados, e conciliadores os que renunciam a ter crenças próprias; a originalidade no pensar produz-lhes calefrios. Comungam em todos os altares, emulsionando crenças incompatíveis, e chamando ecletismo a suas tolices; julgam, por isso, descobrir uma agudeza particular na arte de não se comprometer com juízos decisivos Não suspeitam que a dúvida do homem superior foi sem pre de outra espécie, muito antes que Descartes a explicasse; é afã de retificar os próprios erros, até aprender que toda força é falível, e que todos os ideais admitem aperfeiçoamentos indefinidos. Os rotineiros, ao contrário, não corrigem, nem se desconvencem nunca; suas opiniões são como os cravos: quanto mais se bate neles, mas eles penetram. Entendiam-se com os escritores que deixam rastros onde põem a mão, denunciando uma personalidade em cada frase, principalmente si procuram subordinar o estilo às idéias; preferem as descoloridas lucubrações dos autores despersonalizados, isentas das aresta que dão relevo a toda forma, e cujo mérito consiste em transfigurar vulgaridades mediante aplicação de barrocos adjetivos. Si um ideal borboleteia nas páginas, si a verdade faz estalidar o pensamento nas frases, os livros parecem-lhes material de fogueira; quando eles podem ser um ponto luminoso no porvir, ou no sentido da perfeição, os rotineiros desconfiam .
A caixa cerebral dos homens rotineiros é um estojo de jóias vazio. Não podem raciocinar por si mesmos, como se o cérebro lhes faltasse. Uma antiga lenda conta que, quando o Criador provoou o mundo de homens, começou fabricando os corpos à guisa de manequins. Antes de lançá-los em circulação, levantou-lhes a calota craneana, encheu as cavidades com pastas divinas, amalgamando as aptidões e qualidades do espírito, boas e más. Ou fora imprevisão ao calcular as quantidades, ou desalento do Criador ao ver os primeiros exemplares da sua obra prima; o certo é que muitos ficaram sem mescla, sendo enviados ao mundo sem coisa alguma dentro. Esta lendária origem explicaria a existência de homens cuja cabeça tem uma significação puramente ornamental.
Vivem uma vida que não é viver. Crescem e morrem como plantas; não necessitam ser curiosos, nem observadores. São prudentes, por definição, de uma prudência desesperadora. Si um deles passasse junto ao campanário inclinado de Piza, afastar-se-ia, temendo morrer esmagado. O homem original, imprudente, se detém a contemplá-lo; um gênio vai mais longe: sobe ao campanário, observa, medita, ensaia, até descobriras leis mais altas da física. É Galileu.
Si a humanidade tivesse contado somente com os rotineiros, os nossos conhecimentos não excederiam os que um avoengo hominídio poderá ter tido. A cultura é o fruto da curiosidade, dessa inquietação misteriosa que convida a olhar para o fundo de todos os abismos. O ignorante não é curioso; nunca interroga a natureza .
Ardigó observou que as pessoas vulgares passam a vida inteira vendo a lua no seu lugar, em cima, sem perguntar porque é que ela está sempre ali, sem cair; julgarão que perguntar tal coisa não é próprio de pessoa bem educada. Dirão que está ali, poroue é o seu lugar, e lhes parecerá estranho eme outros procurem explicarão de coisa tão natural. Só o homem de bom senso, que comete a incorreção de se opôr ao senso comum, isto é, um original ou um gênio — que nisto se homologam — pode formular a pergunta sacrílega: porque é aue a lua está ali, e não cai? Esse homem que ousa desconfiar da rotina, é Newton, um audaz, a auem coube adivinhar alguma semelhança entre a pálida lâmpada, suspensa no céu, e a maçã que cai da árvore, sacudida pelo vento. Nenhum rotineiro teria descoberto que u’a mesma força faz girar a lua para cima e cair a maçã para baixo.
Nesses homens, imunes da paixão da verdade, supremo ideal a que pensadores e filósofos sacrificaram a sua vida, não cabem impulsos de perfeição. Suas inteligências são como as águas mortas: povoam-se de ger mes nocivos e acabam apodrecendo. Aquele que não cultiva a sua mente, vai direito no sentido da desagregação da sua personalidade. Não debastar a própria ignorância, é como perecer em vida. As terras férteis tornam-se más, quando não são cultivadas; os espíritos rotineiros povoam-se de opiniões que os escravizam.
fonte: Consciência.org

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