segunda-feira, 8 de março de 2010
No Haiti, não se anda sem camisa nem se mendiga
*Guilherme Voitch,Gazeta do Povo
Todo o sábado, a rua que dá acesso ao principal complexo militar das Nações Unidas em Porto Príncipe transforma-se no palco de uma grande feira ao ar livre. Por ela circulam diplomatas, alguns jornalistas e, principalmente, militares dos países que integram a Força de Paz da ONU no Haiti. São nepaleses, jordanianos, bolivianos, paraguaios, argentinos e brasileiros, muitos brasileiros. Os haitianos vendem roupas, tênis, bonés, pinturas, artesanato e todo tipo de souvenir que se possa imaginar. São vendedores implacáveis. Para agradar os clientes, aprenderam a falar espanhol, muito de português e até arriscam jordaniano e nepalês. Pegam os possíveis compradores pelo braço e enumeram as qualidades do produto. Negociam até a exaustão.
É difícil encontrar entre esses vendedores alguém que não tenha perdido um membro da família no terremoto de janeiro. Alguns perderam toda ela. Jean (o nome mais popular do Haiti) vende bandeirolas com o brasão haitiano. No desastre de janeiro, sua casa ruiu e morreram seus dois irmãos e um filho. Ele levou a mulher e a filha para a casa de parentes no interior do país e, desde então, tem dormido no chão, em frente à casa destruída. Jean só conta da tragédia depois que lhe perguntam. Ele é objetivo nas respostas e, rapidamente, traz de volta o assunto para o que lhe interessa: seus produtos. Os “melhores” por apenas dez dólares. “É ‘balato’, mas negocia”, diz em português afrancesado.
Os haitianos estão ali para fechar negócios e não para vender sua tragédia. A feira é um exemplo de uma cidade que pulsa em meio à normalidade. Uma normalidade caótica e miserável, mas ainda assim uma normalidade. Há algo de conhecido nas ruas do centro de Porto Príncipe. É uma capital terceiro-mundista com o trânsito infernal, buzinas ecoando por todo lado e gente amontoada nos tip-taps, os ônibus que levam dezenas de pessoas de uma parte a outra. O comércio de rua é monstruoso e se estende por toda a cidade. O povo afetado pelo maior desastre já enfrentado pela ONU compra, vende e busca emprego. Não há mais saques, ou corre-corres. “Muita gente estranha quando dizemos que Porto Príncipe tem atualmente indicadores de violência e criminalidade mais baixos que várias grandes cidades do mundo”, diz o Coronel Fernando Pereira, chefe da Comunicação da missão militar da ONU no Haiti.
De fato, as milícias que instauraram no país um clima de guerra civil antes da chegada dos capacetes azuis estão, pelo menos temporariamente, sem ação. Mesmo nos bairros tradicionalmente mais violentos, como Cité Soleil, ou naqueles que foram mais afetados pelos tremores, como Bel Air, as patrulhas brasileiras têm atuado de forma tranquila. Na madrugada do último dia 26 de fevereiro, as forças brasileiras promoveram uma das chamadas operações papai-noel, a entrega de alimentos feita de noite. Foram mais de 300 kits com alimentos não perecíveis e água entregues para moradores de Bel Air. Os haitianos fazem uma imensa fila indiana em que se agarram uns aos outros para não perderem o lugar. Os militares brasileiros alertam que a presença de jornalistas com câmeras e luzes podem deixá-los mais nervosos.
Há discussões aqui e ali entre eles, mas a distribuição flui sem problemas. Depois de uma hora de entrega, a comida chega ao fim. Um intérprete comunica pelo megafone que a distribuição acabou e que eles devem voltar para suas casas. Há pelo menos 100 pessoas na fila que não receberam comida. Elas ouvem o comunicado e batem palmas, antes de saírem para suas casas. “Dessa vez não houve alimentos para todos, mas eles sabem que vamos voltar e que temos um compromisso com eles”, diz o coronel Ajax Pinheiro, comandante do batalhão brasileiro no Haiti.
Há uma relação de respeito e em muitos casos até de admiração por parte dos haitianos para com os representantes das Nações Unidas e, de forma especial, com os militares brasileiros. Não há, porém, submissão. Fora das distribuições oficiais de mantimentos e remédios não se vê haitianos mendigando. Mesmo um civil andando nas áreas mais carentes não irá receber pedidos por comida ou por dinheiro. É desonroso, na particular lógica de honra do Haiti.
Na favela de Cité Soleil, em meio a porcos, cães, lixo entulhado e gente dormindo no chão, as crianças se aglomeram, aos gritos de “bon bagay” (gente boa, no linguajar creole). Elas querem fazer o cumprimento ensinado pelos soldados brasileiros, com o toque das mãos e a batida no peito.
O terremoto maximizou as noções de honradez haitiana. A maioria das casas foi destruída ou está condenada. Os moradores dormem na rua ou em barracas. A luz elétrica, que era pouca, acabou. Não há o mínimo de serviço de água tratada ou saneamento básico. Os habitantes de Porto Príncipe vagam como fantasmas de seus barracos até as valetas, onde fazem suas necessidades. Não há vergonha em serem vistos com as calças arriadas na beira de riachos e valas que se transformaram em sanitários gigantes.
De dia, o cheiro é insuportável e a poeira está em todos os lugares. A temperatura passa dos 30ºC, mas não se vê ninguém sem camisa.
As escolas que continuam funcionando recebem as crianças impecavelmente vestidas. O uniforme escolar é uma prova de status social em Porto Príncipe. Nas áreas mais pobres é que as roupas são mais brancas e melhor passadas. É por isso que as organizações humanitárias procuram identificar prioritariamente as crianças que andam peladas. Uma criança sem roupa não é uma criança pobre. É uma criança que perdeu sua família. No Haiti, andar com o torso nu remete à escravidão do período colonial. Talvez essa seja a única certeza que impera por lá. Os haitianos não querem ser escravos.
*O jornalista viajou ao Haiti a convite do Palácio do Planalto.
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