por MÁRIO THEODORO*
A abolição da escravidão colocou a população negra em uma situação de igualdade política e civil em relação aos demais cidadãos. Contudo, como a literatura tem constantemente reafirmado, as possibilidades de inclusão socioeconômica dessa população eram extremamente limitadas. Como será visto a seguir, medidas anteriores ao fim da escravidão haviam colocado a população livre e pobre em uma situação de completa exclusão em termos de acesso à terra. Por sua vez, o acesso à instrução também não fora garantido por políticas públicas, não sendo sequer acolhido como objetivo ou garantia de direitos na Constituição Republicana de 1891. No mercado de trabalho, a entrada massiva de imigrantes europeus deslocava a população negra livre para colocações subalternas.
Esse processo foi marcado tanto por uma ausência de políticas públicas em favor dos ex-escravos e à população negra livre, como pela implementação de iniciativas que contribuíram para que o horizonte de integração dos ex-escravos ficasse restrito às posições subalternas da sociedade. Cabe lembrar que tal processo encontrava-se largamente amparado, como já indicado anteriormente, pela leitura predominante da questão racial no Brasil, segundo a qual, a questão do negro se referia não apenas à sua substituição como mão-de-obra nos setores dinâmicos da economia, mas à sua própria diluição como grupo racial no contexto do nacional.
a) A Lei de Terras de 1850
Entre os fatores que impediram a emergência de um sistema econômico capaz de absorver a mão-de-obra livre está a promulgação da Lei no 601/1850, a chamada Lei de Terras. Operando uma regulação conservadora da estrutura fundiária no Brasil, a Lei de Terras foi promulgada no mesmo ano em que se determinou a proibição do tráfico de escravos (Lei Euzébio de Queiroz), marco da transição para o trabalho livre. É nesse contexto que a nova medida legal começa a vigorar, restringindo drasticamente as possibilidades de acesso à terra na transição do regime escravista para o de trabalho livre.
Ao definir a compra como única forma de aquisição, a Lei de Terras pôs fim ao reconhecimento da posse, que havia sido realizado em 1822, pela resolução de 17 de julho.
A legislação de 1822 buscava incentivar o acesso à propriedade da terra ao lavrador não-proprietário,
combatendo o bloqueio exercido pelo latifúndio (FAORO, 1977, p. 407-408)
Como destaca Delgado (2005), o regime de posse teve vigência breve e transitória, com a instituição da Lei de Terras significando a recomposição do setor de subsistência sob a égide da grande propriedade. A nova legislação reconheceu as posses estabelecidas após 1822 somente se tivessem registros em cartórios ou paróquias dos municípios. A partir daí, ficou proibido o regime das ocupações, substituído pelos mecanismos de herança ou compra e venda, únicos instrumentos admitidos como legítimos no acesso à terra, inclusive no caso das terras devolutas. Além de alterar e regular a forma de aceder à propriedade da terra (inclusive das terras públicas) instituída nas duas décadas anteriores, a Lei de Terras procurou ainda definir os meios para operar a colonização, principalmente por incentivos à imigração de trabalhadores europeus pobres para trabalhar nas lavouras brasileiras (SILVA, 2006).
Assim, impedindo o acesso à terra para os trabalhadores pobres, os ex-escravos e seus descendentes, a lei de 1850
[...] liquida o sistema de posses fundiárias que se estabelecera em 1822 e que poderia transformar o setor de subsistência em regime de propriedade familiar; ademais, acaba com a possibilidade futura de transformação da mão-de-obra escrava liberta em novo contingente de posseiros fundiários, o que inclui ainda a possibilidade de criação de quilombos legais ou de estabelecimentos familiares legalizados (DELGADO, 2005,p. 29; ROSA, 2008).
Conforme indica Emília Viotti da Costa, a Lei de Terras baseava-se na idéia de que a única maneira de garantir o trabalho livre nas fazendas era dificultar o acesso à terra, o que faria com que o trabalhador livre não tivesse outra alternativa senão permanecer nas fazendas.20 Para os ex-escravos, dedicados em sua grande maioria às atividades rurais, a passagem ao trabalho livre não significou sequer a sua inclusão em um regime assalariado. Quando permaneciam nas fazendas, sua passagem à condição de dependente ampliou a massa de trabalhadores livres submetidos à grande propriedade e afastados do processo de participação nos setores dinâmicos da economia.
*artigo extraído do livro: As Políticas Públicas e a Desigualdade Racial no Brasil – 120 anos após a Abolição.
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