publicado: gazeta do povo -14/04
A esperança de crianças e adolescentes que vivem em casas de acolhimento diminui à medida que o tempo avança. Essa realidade se opõe aos números que, à primeira vista, formariam uma equação perfeita: o Paraná tem 653 jovens aptos a ir para uma nova família e quase 3 mil acolhidos em abrigos. Enquanto isso, há cerca de 5 mil pretendentes habilitados a adotar. Então, por que a conta não fecha? Entre as respostas, estão o perfil buscado pelas famílias e a demora em habilitar as crianças à adoção. O acolhimento – definido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como medida protetiva provisória – acaba se tornando algo permanente.
Nos abrigos, a maioria absoluta é de acolhidos que não são mais crianças. Em Curitiba, 84% dos aptos à adoção têm mais de 11 anos. Os que têm entre 11 e 15 anos correspondem a 66% do total, e 18% têm mais de 15 anos. São meninos como Roberto*, 13 anos. Filho de uma usuária de crack, ele vive em uma instituição de acolhimento de Curitiba desde que se conhece por gente. Louco por futebol, o garoto de poucas palavras perdeu a esperança de conseguir um lar. “É mais fácil eu ser atacante de time grande do que ser adotado”, resumiu.
Apesar de os índices curitibanos serem maiores que as médias nacionais, a rejeição aos adolescentes abrigados não é exclusividade. Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) ajudam a entender por que essas moças e rapazes lotam as unidades de acolhimento. Menos de 1% das famílias habilitadas no Brasil têm interesse em ficar com uma criança que tenha mais de 8 anos. A possibilidade de um jovem com idade entre 13 e 16 anos ser adotada é próxima de zero.
Outras condicionantes também têm peso. Das famílias pretendentes brasileiras, 80,5% não aceitam adotar irmãos. Quase 30% só aceitam crianças ou adolescentes da cor branca. Na Região Sul, a restrição é ainda pior: 41% querem apenas filhos adotivos brancos. “Os casais ainda desejam uma menina loira e de olhos azuis. É incompatível”, resumiu o desembargador Fernando Wollf Bodziak.
Mas não é só o perfil que explica o fenômeno. Um aspecto do próprio ECA contribui para o grande índice de abrigamento: a prioridade deve ser sempre tentar a reintegração familiar, ou seja, viabilizar o retorno das crianças às famílias biológicas. Só depois de esgotadas as possibilidades é que elas podem ser encaminhadas à adoção. Quando isso ocorre, já é tarde. Elas já estão “velhas”.
Para a psicóloga e pesquisadora Lídia Weber, falta agilidade do Judiciário em localizar na fila os interessados em adotar os mais velhos. “Existe universo para adotar todos. Mas é preciso que as autoridades façam uma busca ativa, que localizem esses interessados no cadastro. O que não pode é cruzar os braços e manter esses adolescentes num limbo”, disse.
*Nomes fictícios
Apesar da idade, Mateus e Daniele foram adotados
Em agosto de 2011, quando o casal curitibano Alberto e Aristeia Rau entrou em uma instituição no Rio de Janeiro, foi recebido pelos sorrisos dos irmãos Mateus, então com 13 anos, e Daniele, com 10. Foi paixão à primeira vista. Dias depois, os meninos embarcaram para Curitiba. A adoção dos dois fugiu à tendência observada em todo o Brasil. Os irmãos são negros e tinham idade considerada avançada.
Os irmãos adotados se adaptaram à rotina da casa de Alberto e Aristeia. Mateus e Daniele se dão bem com os novos irmãos, Lucas, 21 anos, e André, 15 anos, filhos biológicos dos Rau. O flamenguista Mateus tem se inclinado mais ao esporte e à informática. Daniele, às artes: toca violão e se arrisca na pintura.
Nos fins de semana, os dias são de casa cheia, churrascos e gargalhadas. “A adoção tardia exige força e dedicação integral, porque os jovens já vêm cheios de hábitos e de experiências. Mas o amor compensa tudo”, finalizou Aristeia.
Obstáculos
Morosidade da Justiça faz crianças envelhecerem em abrigos, diz ativistaPara ativistas e gestoras de casas de acolhimento, o grande número de adolescentes em instituições tem relação direta com a demora do Poder Judiciário em analisar os processos e no encaminhamento das crianças à adoção. Hoje, apenas um quinto dos acolhidos no Paraná está apto a ser adotado.
Jovens que chegaram ainda bebês às instituições e que ainda não estão disponíveis à adoção contam-se aos montes. Isso indica uma falha grave, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que o processo de destituição do poder familiar ocorra em até 120 dias. O estatuto também fixa em dois anos o período máximo de permanência em abrigos.
“Demoram anos para destituir o poder familiar. Quando vai para a adoção, a criança já não é mais criança. A morosidade da Justiça faz as crianças envelhecerem nos abrigos”, definiu Aristeia Moraes Rau, criadora do Movimento Nacional das Crianças Inadotáveis (Monaci). Gestoras de outras duas instituições de acolhimento endossam esses argumentos.
O juiz Sérgio Kreus, da Vara de Infância e Juventude de Cascavel, explica que o processo é demorado por causa de seus trâmites, para garantir a ampla defesa aos pais. “A lei exige que sejam esgotadas todas as possibilidades de reintegração familiar. Muitas vezes os municípios e o próprio Judiciário não têm equipes técnicas suficientes e preparadas para promover a reintegração rápida e, quando esta se mostra inviável, de promover a avaliação e sugerir a destituição”, afirmou. “É preciso investir em pessoal e em capacitação”.
0 a 2 anos é a idade preferencial das crianças procuradas pelas famílias que pretendem adotar
Conformados
Irmãos moram há 11 anos em abrigo
Os sorrisos muito parecidos entregam logo: os seis jovens são irmãos. Unidos, cultivam sonhos diferentes. A mais nova, Mariana*, 14 anos, por exemplo, sonha ser jogadora de futebol. Vai muito bem na zaga. Os gêmeos Fernando* e Francisco*, 16 anos, gostam de rap, skate e bonés de aba reta. Seria mais uma família “convencional”, se há 11 anos não vivessem na Casa de Apoio Acácias, em Curitiba.
A alegria dá lugar a semblantes fechados quando se fala em adoção. Evitam falar do assunto. Adolescentes, negros e com vários irmãos, os jovens sabem que não têm o perfil buscado por quem quer adotar uma criança. “Para a gente já não faz diferença. A gente cresceu aqui e a vida aqui até que é boa. Tem tudo que a gente precisa”, minimizou Fernando.
Os anos que passaram no abrigo não lhes apagaram uma história de vida traumática. Antes do acolhimento, viviam nas ruas com o pai, catando papelão e dormindo ao relento. Nem sequer iam à escola. Meses antes, a mãe havia abandonado a família, por não suportar as seguidas surras que o marido – e pai das crianças – lhe dava.
“Fizeram uma festa porque aqui tem tevê e eles raramente viam”, relembrou a gestora da casa, Marlene Andrade. Segundo ela, nunca apareceram interessados em adotá-los. “Houve muita demora da Justiça na destituição do poder familiar. Com isso, envelheceram e as chances diminuíram”, disse.
No acolhimento, passaram a frequentar a escola e a fazer cursos. Mariana foi coralista e sabe tocar violino. O mais velho dos irmãos, Ricardo*, de 19 anos, trabalha em um cartório. Daiana*, de 15 anos, acaba de concluir o Ensino Médio e começou a trabalhar em uma creche. “A nossa recompensa é ver casos como o deles, em que as crianças crescem na vida”, definiu Marlene.
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