Segundo informa o Google, o homem mais velho do mundo chama-se José, mora no interior da Amazonia e tem 128 anos; e há duas mulheres mais velhas do mundo, a senhora Luo, chinesa e a senhora Candúlia, cubana, ambas com 127 anos.
Pois bem, senhoras e senhores senadores, José já estava com três anos e Luo e Candúlia com dois quando aconteceu a efeméride que hoje lembramos, o fim da escravidão dos negros em nosso país. Portanto, o brasileiro, a chinesa e a cubana são mais velhos que a dita Lei Áurea, assinada pela generosa e alva princesa, como até hoje ensinam às nossas criancinhas.
Por mais longevos que sejam os citados, a realidade — aviltante e infamante realidade— é que a libertação dos negros foi tão recente que não supera sequer uma vida um pouco mais estendida.
Na verdade, e a bem dela, nada temos a comemorar.
Não porque fomos o último país do mundo a reconhecer os negros como seres humanos, detentores dos mesmos direitos que os de pele clara, como já antes havíamos reconhecido, depois de uma infalível bula papal, que o índio possuía alma.
Por isso também deveria o Brasil cobrir-se de vergonha.
Não porque em vez de se indenizar os negros, sequestrados na África e submetidos aqui ao trabalho forçado, exigiu-se antes a indenização dos senhores de escravos, como condição para o abominável resgate dos homens e mulheres pretos. Na fala do trono de 3 de maio de 1888, dias antes da tal Lei Áurea, a dita e celebrada redentora elogiou “a abnegação dos proprietários” por abrir mão de suas “peças”, sem que recebessem o resgate pelo sequestro de toda uma raça.
Por isso também deveria o Brasil cobrir-se de vergonha.
Nada temos a comemorar, acima de tudo, porque há 125 anos não cessamos de perseguir, humilhar, torturar e assassinar os negros, em uma contínua, implacável e impiedosa campanha contra os descendentes de africanos que sequestramos e escravizamos.
É a nossa vingança de pele e alma brancas contra os amaldiçoados filhos de Cam. Escaparam da senzala, mas não escaparam de nosso ódio. A contragosto, contra o nosso aprazimento e proveito, foram soltos, mas não se libertaram de nosso preconceito; não escaparam de nossos olhos, da precisa seleção epidérmica que sabemos fazer tão bem……. e disfarçar. Afinal, somos homens cordiais.
À feição de Borges, vamos a alguns breves capítulos da história brasileira da infâmia contra os homens e mulheres pretos.
Foram três séculos de escravidão negra no Brasil. Malditos 300 anos. Tão amaldiçoados que nem os próximos 300 anos serão suficientes para purificar o país da crueldade contra um povo, condenado ao opróbrio por causa da cor da pele.
Talvez soubéssemos mais ainda sobre essa vergonha se os arquivos da escravatura no país não tivessem sido destruídos. É como age a nossa elite branca e racista, é como a casa grande escreve a história.
Foi assim também que ela agiu depois da ditadura de 1964-1985, queimando arquivos, escondendo corpos, tentando apagar mais um capítulo de seu infamante e maldito mando.
A queima dos arquivos da escravatura impede-nos de saber com exatidão quantos negros foram sequestrados na África; quantos morreram no transporte; quantos morreram nos primeiros tempos do cativeiro, pela violência do tratamento, pela inadequação ao trabalho forçado ou das lembranças da liberdade, das tristezas da sujeição. E quantos foram assassinados pelos senhores, pelos sinhozinhos e sinhazinhas? E quantas Baronesas de Grajaú cegaram e assassinaram seus negros?
Não sabemos muito, queimaram os arquivos, como a ditadura o fez, porque a desmemória é também um instrumento de dominação
A história brasileira da infâmia, pinçada na verdade dos fatos, talvez pudesse começar com a chegada dos africano aos portos brasileiros. Assim que desembarcados, eram submetidos a dois rituais, a duas sinalizações: eram ferrados e marcados em brasa e, batizados. Marcados na pele e marcados na alma, estavam aptos para serem admitidos nas senzalas e na bem-aventurada comunidade cristã, estavam habilitados ao cativeiro e aos reinos dos céus.
Embora assinalados com o sinal da salvação tinham que construir seus próprios locais de oração. E temos então essa ignomínia chamada “Igrejas dos Homens Pretos”, porque o Deus e os Santos dos brancos, ainda que fossem os mesmos dos negros, não poderiam ser conspurcados, ultrajados com o insulto aviltante da presença dos negros, na hora da missa, há hora do terço. Um apartheid imundo, asqueroso patrocinado pela Santa Madre.
Estão aí, pelas cidades brasileiras, testemunhando essa infâmia, as tantas “Igrejas e Irmandades dos Homens Pretos”. Como será que os senhores de escravos, os padres, as piedosas sinhás e sinhazinhas imaginavam o céu? Para ascendê-lo, os negros seriam transmudados em brancos?
Confesso que sempre tive curiosidade em saber o pensamento da Santa Madre sobre esse grave, transcendental assunto.
Tirantes as ações de um que outro padre ou freira, a Igreja foi omissa, conivente e partícipe desse tricentenário holocausto dos negros no Brasil. É celebre a frase de Joaquim Nabuco. Disse ele, botando uma pá de cal em todas as tentativas de se relativizar o papel da Igreja, notadamente de sua indolente hierarquia, na escravização e maus tratos aos negros.
Eis a conclusão do abolicionista:
“A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz a favor da emancipação”.
As sementes da dor espalham-se e germinam por todo canto da terra brasileira. A história de nossa infâmia prolonga-se, estende-se, ultrapassa os trezentos anos do cativeiro dos negros.
As sementes da dor marcam o passado e marcam o presente.
Rio Grande do Sul, novembro de 1844, Massacre de Porongos, último e aterrador ato da Revolução Farroupilha.
Os “Lanceiros Negros”, corpo de escravos engajados no movimento, estão acampados enquanto as forças rebeldes e do Império discutem o fim do levante. De repente, forças imperiais invadem o acampamento dos Lanceiros e massacra-os. Desarmados na véspera, pelo comando farroupilha, privados de suas temíveis lanças e clavinas os escravos defendem-se com as mãos. Mais de cem deles são assassinados.
Há quem jure pela autenticidade de uma carta do Duque de Caxias ao general David Canabarro, comandante rebelde, combinando o massacre. O extermínio dos “LanceirosNegros” evitaria contratempos.
Mortos e enterrados, não exigiriam a libertação, como lhes fora prometido pelos revolucionários; silenciados pela chacina, não ajudariam a fomentar um movimento abolicionista no país, não serviriam de exemplo para outros levantes.
Segundo historiadores gaúchos, depois da Revolução, quase todos dos os negros que participaram do levante foram recambiados ao Rio de Janeiro para serem vendidos como escravos. O sonho de liberdade terminou no mercado do Valongo.
São Paulo, outubro de 1992, quase 150 anos depois do Massacre de Porongos, o Massacre do Carandiru:
“ E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
ou quase pretos (…) de tão pobres (…)
e pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos (…) ’’.
Libertados em 1888, os negros continuaram sendo tratados como sempre o foram, pois “todos sabem como se tratam os pretos”.
A libertação não significou qualquer mudança de comportamento da sociedade em relação a eles. E tinham razão os Paulino de Souza e os Cotegipe, que se opunham à extinção da escravatura, brandindo dois argumentos: os negros ficariam ao desamparo, sem trabalho e sem sustento; e os negros seriam fator de grave perturbação da ordem.
Não era necessário ser um escravagista obstinado, como eram Paulino de Souza e o Barão de Cotegipe, para antecipar a tragédia, a catástrofe que se abateu sobre os negros libertos.
Ao contrário do que dizem até hoje alguns historiadores e trêfegos cronistas, para quem a extinção da escravatura nada extinguiu porque não havia mais negros no cativeiro, o 13 de maio de 1888 encontrou perto de um milhão de negros nas senzalas.
Os mesmos que inventam agora a “ditabranda”, tentando suavizar os terríveis anos do arbítrio, inventaram no passado a “escravaturabranda”, tentando dar cores suaves aos 300 anos do holocausto da raça negra em terras brasileiras.
Um desses ligeiros, espertos rabiscadores de bobagens, à moda da Folha de S. Paulo, chegou a dizer que a escravatura negra no Brasil foi mais branda que o trabalhão assalariado na Inglaterra, no início da revolução industrial. Até pode ser, mas o que isso adoça, ameniza o cativeiro?
Não decorreram muitos anos para que a óbvia previsão dos escravagistas sobre o infortúnio dos negros libertos tornasse história. Afinal, os abolicionistas pouco ou nada se preocuparam com o dia seguinte. Ora, encerradas as solenidades do dia 13 de maio, que os negros libertos se atirassem ao mercado de trabalho, ao maravilhoso mundo das livres relações da oferta e da procura de mão-de-obra.
Ora, não queriam ser livres? Pois eram livres, que fossem atrás da sobrevivência, que os nossos ilustres abolicionistas tinham mais o que fazer, afinal a vida seguia.
Nas últimas décadas do século 19 e primeiras do século 20, explodem por todo o Brasil as consequências da omissão, da indiferença do governo e da sociedade quanto ao destino dos pretos.
O que são Canudos, Pau de Colher, Caldeirão da Santa Cruz do Desterro, Contestado? O que são esses levantes que se espalham em sequência, país afora, dos anos seguintes à abolição até a década de 40 do século passado?
As sementes da dor e do abandono germinaram revoltas.
E todas elas, cada uma delas foram impiedosamente, sanguinolentamente sufocadas. Massacre de Porongos, massacre do Conselheiro, massacre da Serra do Araripe, massacre de Casa Nova, massacre dos Pelados. Em cada uma dessas guerras de extermínio de pobres e pretos, firma-se a nossa tradição de matar, chacinar pobres e pretos.
Capítulos dolorosos, ensanguentados da história brasileira da infâmia.
Em Pau de Colher, entre 1937 e 1938, depois do assassinato de todas as mulheres e de todos os homens, as crianças sobreviventes foram mandadas para Salvador, Bahia e reeducadas em casas de famílias, em instituições religiosas, em quartéis.
Uma dessas crianças, anota o blogueiro José Fortes, torna-se anos mais tarde um dos oficiais do Estado Maior das Forças Armadas que participa do golpe militar de chefes militares do golpe de 1964.
O que me faz retornar mais uma vez à letra de Haiti, de Caetano Veloso:
…….quando você for convidado para subir no adro
da Fundação Casa de Jorge Amado
para ver do alto a fila de soldados quase todos pretos
dando porrada na nuca de malandros pretos (…..)
É longa tradição, a bem aprendida lição de fazer dos próprios negros os capitães de mato à busca dos negros que transgridam a ordem estabelecida dos brancos.
E são negras ou quase negras ou quase pretas, de tão pobres são tratadas, as milhares de crianças que todos os anos são abatidas a tiros nas ruas de nossas cidades.
Em 2010, quando, mais uma vez, como hoje, avolumaram-se as vozes a favor da redução da maioridade penal, foram assassinadas no Brasil, oito mil e seiscentas crianças.
Ouçam, registrem, não fujam, não tapem os ouvidos: em 2010 foram assassinadas no Brasil 8.600 crianças! E, no ano passado, mais de 120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus-tratos e agressões, segundo registros oficiais, e como os registros oficiais são o que são, talvez seja lícito quintuplicar esse número.
Mas não basta. Esse massacre ainda é pouco, queremos mais: queremos emancipar essas crianças, torná-las legalmente adultas para poder prendê-las, julgá-las, condená-las, e transformá-las em bandidos. Para assassiná-las, não importamos que sejam crianças. Mas queremos mais, queremos julgar como adultos os que escaparam do massacre. Não queremos que sobre ninguém, como em Porongos, em Canudos, em Pau de Colher, no Caldeirão, no Contestado, em Carajás, no Carandiru.
(….) mas (…) são quase todos pretos
ou quase pretos ou quase brancos, quase pretos de tão pobres
e pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos
Será que não bastam esses capítulos tão terríveis dessa nossa história da infâmia? Será que a nossa impiedade vai agora acrescentar a ela infâmia da redução da maioridade penal?
Mais de oito mil crianças assassinadas no Brasil em 2010. Mas a morte delas não apareceu nos noticiários, não arrancou discursos indignados, não mobilizou campanhas na mídia e na internet.
Não, porque..
(…..) são quase todos pretos
ou quase pretos (…)quase pretos de tão pobres
e pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos (…)
Para encerrar, ocorre-me um versinho:
“ Treze de maio
é um dia muito bonito
a congada se reúne
para festejar São Benedito;
Izabel é uma santa milagrosa
libertou a escravidão
por ser muito caridosa.”
E não poderia deixar também de lembrar de outro hino:
“A 13 de maio na cova da Iria,
No céu aparece a Virgem Maria,
Ave, Ave, Ave Maria…”
A 13 de maio de 1917, dá-se a aparição de Nossa Senhora de Fátima a três crianças portuguesas. E, partir daí, por muito tempo, o dia 13 de maio, firmou-se em nosso calendário não como o dia da libertação dos escravos pretos e sim o dia da alvíssima senhora de Fátima.
Somente um homem com a capacidade de sensibilidade humana e moral como o governador Requião, um dos maiores tribunos da politica brasileira, seria capaz de pronunciar tão sabias e profundas palavras, alcançando almas e corações, este homem fez para negros e negras dos quilombos do Paraná o que a história não seria capaz de contar de outros feitores políticos em todos os tempos. José Luiz Teixeira é presidente do Instituto Sorriso Negro dos Campos Gerais
ResponderExcluir