segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Desembargadora Luislinda Valois, 1ª juíza negra brasileira

Neta de avô escravo, filha de Santo, e primeira mulher negra a entrar para a magistratura no Brasil, Luislinda Valois, 68, quer ver mais “pretos, pobres e periféricos” governando o país. A magistrada baiana, que se formou em Direito aos 39 anos, com crédito educativo, fala ao Boletim Gênero, Raça e Etnia sobre racismo, superação, cotas, Justiça e o papel de organizações internacionais, como a ONU, na promoção da equidade.
Nomeada desembargadora substituta do Tribunal Superior de Justiça da Bahia (TJ/BA) em agosto, Luislinda recebeu o Prêmio Cláudia no mês passado, por sua luta e conquistas no combate à discriminação racial. É autora de “O Negro no Século XX” e tem dois outros livros a caminho.
Racismo na Escola – “Não é fácil ser negra e pobre nessa terra”, diz Luislinda, filha de Iansã, orixá guerreira. “Quando nasci, morávamos em um casebre de palha. Só com muita luta meus pais conseguiram construir uma casa de taipa. Para estudar, eu catei marisco, tomei conta de criança, lavei muita roupa.”
Aos nove anos, o professor de Luislinda mandou os alunos levarem réguas e compassos de plástico para a aula, no Colégio Duque de Caxias, na Liberdade, bairro negro de Salvador. O pai, motorneiro de bonde, só conseguiu comprar material de madeira. O professor disparou, na frente de toda a turma: “Menina, se seus pais não podem comprar material para você estudar, saia daqui. Vá aprender a fazer feijoada na casa de uma branca que você vai ser mais feliz”.

“Eu saí da sala correndo, chorei, chorei”, conta a magistrada, voz embargada ao lembrar humilhação, há quase 60 anos. Depois se recompôs e voltou para a aula, com a resposta na ponta da língua: “Professor, eu não vou aprender a fazer feijoada não. Vou estudar para ser juíza e, quando crescer, vou te prender”.
Luislinda formou-se em Direito aos 39 anos e, em 1984, cumpriu a promessa de se tornar juíza. Voltou ao colégio Duque de Caxias, mas não para prender o professor racista. Entre 2002 e 2003, a magistrada freqüentou colégios da capital baiana com o “Projeto Inclua no Trabalho e na Educação e Exclua da Prisão”.

“Dizem que sou a primeira juíza negra do Brasil. Não sei bem se isso é verdade, o importante não é ser a primeira ou a décima. O importante é a bandeira que eu carrego”, diz Luislinda, quem em agosto foi nomeada desembargadora substituta do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA).

Justiça para tod@s – Luislinda Valois se tornou conhecida no meio jurídico brasileiro em 1993, por sua sentença condenatória a rede de supermercados, pelo crime de racismo. Os seguranças haviam acusado injustamente de furto uma cliente negra.

“Pode publicar o nome dela, é uma mulher honesta, de uma coragem impressionante, e gosta que saibam o que aconteceu”, diz Luislinda. Aila Maria de Jesus, franzina, negra, trabalhadora doméstica, foi acusada de furtar um frango e um sabonete. Cercada pelos seguranças do supermercado, ela se recusou a abrir a bolsa sem a presença da polícia. Revelada a injustiça, Aila recorreu aos tribunais.

“O acesso à Justiça é um direito fundamental”, afirma Luislinda, destacando o papel de organismos internacionais, e principalmente da ONU, “que foi e ainda é fundamental para promover os Direitos Humanos no Brasil”.

A desembargadora vê avanços no respeito à cultura e religiões afro-brasileiras. “Tenho uma boa relação de trabalho com a Igreja Católica, Igrejas Evangélicas, inclusive com pessoas da Igreja Universal [que já teve líderes acusados de intolerância religiosa]. Agora mesmo fui convidada para ser paraninfa da turma de Direito da Faculdade Batista Brasileira e aceitei, com muito orgulho. O Brasil é uma país laico, e respeito é fundamental”, diz a magistrada.

Nem sempre foi assim. O candomblé era perseguido até o início do século XX, e Luislinda ainda se lembra quando, menina, acompanhava as idas e vindas da tia para conseguir autorização para o funcionamento de um terreiro no bairro de Pirajá, em Salvador.

Para a desembargadora, a tipificação do crime de racismo e a entrada em vigor do Estatuto da Igualdade Raciail são sinais de progresso da Justiça brasileira, mas a exclusão, sobretudo econômica, permanece.

Cotas – “É preciso dar oportunidades a quem nunca teve”, diz a magistrada, favorável às cotas para o ingresso em universidades públicas. “Precisamos de mais profissionais negros qualificados. Quero mostrar ao meu povo negro que nós, pretos, pobres e periféricos, também podemos ocupar os postos mais altos do país.”

Luislinda conta que a agressão do professor racista, na escola primária, não foi a única. “Mesmo na faculdade, passei por muito achincalhamento por ser negra e pobre”, diz Luislinda, que cursou Filosofia e Teatro, antes de entrar na Faculdade Católica do Salvador (UCSAL), com crédito educativo. O depoimento de Luislinda sobre sua história foi exibido na novela “Páginas da Vida”, da rede globo.
A discriminação não cessou após a formatura. “Quando passei no concurso nacional da procuradoria do DNER (antigo Departamento Nacional de Estradas e Rodagens), em primeiro lugar, fui ‘convidada’ a ceder a vaga em Salvador, minha cidade. Curitiba me acolheu”, conta.

Família – A tristeza passa ao falar sobre a família. Luislinda não esconde o orgulho ao falar do único filho, promotor de Justiça em Sergipe, e dos irmãos, que seguiram seu conselho e seu exemplo nos estudos. “Quanto eu tinha 14 anos, minha mãe morreu. Criei meus três irmãos menores, todos honestos e trabalhadores”, diz Luislinda.

A magistrada se emociona ao lembrar-se do fascínio do pai, já idoso, diante da primeira casa de bloco da família, conquistada quando ela e o segundo irmão já tinham empregos com carteira assinada: “Meus filhos, acabou a miséria nessa casa!”.

7 comentários:

  1. Que história incrível a desta grande mulher. Luislinda é um verdadeiro exemplo de força,persistência e luta pelo verdadeiro significado da palavra "Justiça". Um grande exemplo não só para nós que sonhamos ser magistrados. Parabéns pela matéria.

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  2. Dia 18 assisti e entrevista dessa juiza que travou uma batalha acirrada e desigual, enfrentando e vencendo preconceitos e obstaculos que os poderosos colocam no caminho dos humildes.
    É uma orgulhosa lição de vida. Principalmente, nesse periodo em que o governo Lula e a Dilma tiraram 20 milhoes da miséria e guindaram 35 milhões à classe média.
    Esse é o Brasil para todos. Chô para os entreguistas, fascistas e corruptos cujos governos sempre foram voltados pra elite.

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    1. É isso ai completamente apoiado, "CUIDADO" a globo estar preparando o Aercio Neves para Presidente, é outro Color de Mello. PSDB partido dos ricos.

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  3. amigos da unegro,sou marta andrade,gestora do COMAFRO,conselho afro descendente da cidade de sao luis-ma,gostaria se possivel que voces me envie o endereço de emailda desembargadora pois gostariamos de convida-la para fazer uma palestra no nosso estado Maranhao.

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  4. Parabéns Doutora! Sou professora negra em Minas Gerais- Itabirito.Já sofri toda espécie de preconceitos desde os meus tempos de estudo em Escola Particular, com Bolsa de Estudos, na época em que eu tinha que fazer Declaração de Pobreza...até humilhações horríveis no período de magistério.Mesmo assim, aposentei dus vezes: estado e mucipio.O meu desejo mesmo é cursar Direito Criminalista-esse é meu sonho!Não me importo com minha idade aual-64 anos-estou sempre me sentindo jovem para estudar-AMO!!!E, ainda mais ouvindo depoimentos como o da Vossa Excelência.Que chá de ânimo!Minha história de vida temvárias semelhanças com a sua:perdi mãe aos 15 anos e tive que cuidar de dois irmãos mais novos que são dignos também.OBRIGADO PELO EXEMPLO.

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  5. Aproveito para dizer que estou fazendo um trabalho para uma aluna de aula particular, sobre "A SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA NO BRASIL" e fiz questão de deixar o SEU MARAVILHOSO DEPOIMENTO À REDE GLOBO,na NOVELA VIVER A VIDA e NO JORNAL BOM DIA BRASIL,como um alerta para essa sociedade famigerada que quer jogar nos "negros" a culpa pelos seus fracassos; principalmene nas escolas,onde "professores analfabetos dos direitos humanos",ainda cometem crimes de violação de direito.MUITO OBRIGADO!

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  6. Há dias em que precisamos acordar e esbarrar em noticias c0m essa siginificação, ver que existem pessoas que vem ao mundo nos mostrar a beleza da vida, mostrar que, em maior ou menor grau, as dificuldades nos acomentem e fazer a diferença depende do potencialo resiliente de cada um.
    Agradeço a Deus por vc existir, para poder num futuro me assentar, se possivel for, com minha descendencia e citar pessoas especiais como vc.
    Parabens Dr, Luislinda Valois.

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