quinta-feira, 18 de junho de 2015

Uma tarde com Dr. Kendall Thomas

publicado: http://www.mppr.mp.br

“O racismo transcende a questão legal”, defende professor norte-americano.
O Ministério Público do Paraná recebeu na sexta-feira, 12 de junho, o professor estadunidense Kendall Thomas, que proferiu palestra com o título “Teoria Racial Crítica: limites e possibilidades no Direito”. Na visão do professor, o racismo transcende a questão legal. “Não há nos Estados Unidos (como exemplo) leis que determinem que um negro que rouba um banco terá uma pena maior, ou que um jovem negro de 16 anos que mata um colega vai ser executado, mas, se for um jovem branco, vai ser colocado numa instituição psiquiátrica. Entretanto, é isso que acontece.”
O evento contou com a participação de convidados, como a promotora de Justiça Mariana Seifert Bazzo, coordenadora do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial do MP-PR; Mesael Caetano dos Santos, presidente da Comissão de Igualdade Racial e Gênero da OAB-PR; Denis Denilto Laurindo, presidente da Unegro-Paraná e presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Étnico-Racial de Curitiba; Bruno Meneses Lorenzetto, professor de Direito da PUCPR, entre outros. Abrindo o encontro, a procuradora de Justiça Samia Saad Galotti Bonavides, coordenadora do Ceaf, destacou a importância do estudo da Teoria Racial Crítica, tendo em vista que ela fornece elementos que ajudam a questionar o direito tradicional, de modo a possibilitar interpretações do Direito que conduzam à busca de uma cidadania que evolua igualmente para todos.
Teoria Racial Crítica – O professor Thomas explicou que a TRC foi desenvolvida, na sua maior parte, por acadêmicos de Direito e áreas correlatas a partir da década de 1980 e tem papel importante na história da luta pela democracia política global. O retrocesso nos direitos civis nos Estados Unidos com a ascensão de Ronald Reagan à presidência impulsionou a TRC. Após a guerra civil americana, a 13ª emenda constitucional aboliu a escravidão, a 14ª garantiu a igualdade racial, e a 15ª proibiu que se negasse o direito de voto com base na raça. Entretanto, isso não levou ao fim das discriminações. Durante muito tempo, vigorou nos Estados Unidos a ideia de “iguais, mas separados”: os negros tinham teoricamente os mesmos direitos legais, mas eram discriminados e tinham ambientes separados em escolas, empregos, hospitais, restaurantes, hotéis, cinemas, teatros, parques, piscinas e cemitérios. Em 1954, a Suprema Corte dos EUA proibiu a discriminação. Em 1964, com o Civil Rights Act, o Congresso Americano afirmou esse princípio. Na luta pela igualdade de direitos, o Civil Rights Act foi um marco importante, que começou a ser desmantelado pela política neoliberal de Reagan. Nesse momento histórico específico, surgiu a luta pelos direitos raciais como reação a esse desmantelamento.

Apesar do que determina o arcabouço legal, entretanto, ainda hoje, permanece a segregação racial. Nova Iorque tem as escolas com maior segregação racial dos Estados Unidos. O movimento social de negros, pardos e aliados tem lutado pelo desmantelamento do regime de supremacia branca. Ainda que tenham recebido igualdade formal, a desigualdade material continua a caracterizar a vida de grande parte de americanos negros e pardos. Mesmo com um presidente negro, as condições materiais dos afroamericanos são tão ruins quanto em qualquer outro período desde a aprovação do Civil Rights Act de 1964.

Nesse contexto, a TRC questiona como pode haver um corpo legal com leis que criam um conjunto de proteções legais, e, mesmo assim, permaneça o problema da segregação racial. A TRC rejeita a ideia de que o problema racial é moral, ideia de fundo liberal. O antirracismo de matiz liberal abraça a perspectiva moral que afirma que se deve desconsiderar a cor do indivíduo. A TCR rejeita esse entendimento, pois crê que essa concepção estreita de raça e racismo é incapaz de contornar realidade americana, caracterizada por racismo sem racistas. É preciso ir além do indivíduo e além da ideia de que a solução para o racismo é não ver o racismo. “Temos que ver a raça como estrutura social. É preciso ver o racismo como um regime político de dominação. É um modo de entender completamente diferente, uma visão pós-liberal de raça e racismo. Isso significa uma compreensão de raça não como indivíduos de cor, textura de cabelo... mas falar sobre raça nessa perspectiva de subordinação e injustiça racial. É preciso entender o lugar social do negro. O racismo é um racismo político, compreendido não como categoria biológica ou cultural, mas política”, explicou.

Tratando do racismo como categoria política, afirmou que numa sociedade de relações desiguais e racialmente não democráticas, haverá grupos raciais vulneráveis, que não têm empregos, não têm educação básica e, assim, não têm condições equivalentes à elite para o exercício da liderança política. “Para avaliar se há democracia racial, é preciso olhar em volta e se perguntar se os públicos sociais vulneráveis também são públicos racialmente vulneráveis. Se a distribuição de empregos, habitação, saúde, educação e segurança não aparece na sociedade como um todo, não há democracia racial”, declarou.

Na visão do professor, o racismo transcende a questão legal. “Não há nos Estados Unidos (como exemplo) leis que determinem que um negro que roupa um banco terá uma pena maior, ou que um jovem negro de 16 anos que mata um colega vai ser executado, mas se for um jovem branco, vai ser colocado numa instituição psiquiátrica. Entretanto, é isso que acontece.”

“Branqueamento” – Thomas criticou a ideia, internalizada inclusive em algumas comunidades negras, de “branqueamento”, pela qual se pode dar força ao negro tornando-o branco. Esse racismo internalizado, afirmou, carrega a ideia de que o que diz respeito ao negro é inferior, o que justificaria a dominação, sendo então necessário haver o “branqueamento” para se livrar dela. Ele citou o exemplo do cantor Michael Jackson, que passou por esse “branqueamento”. Em sentido oposto, a eleição de Obama como presidente dos Estados Unidos teve um efeito simbólico importante, pois tornou possível para crianças negras e pardas se imaginarem de modos que não eram possíveis antes.

Tratando das políticas afirmativas, o palestrante foi taxativo ao afirmar que sempre houve ações afirmativas – a questão é a quem elas favoreceram. “Antes, havia políticas afirmativas para brancos”, sustentou. Numa sociedade em que as políticas estão sob controle dos brancos, como no Brasil, a universidade pública gratuita é da elite, enquanto os pobres têm que pagar pelo estudo privado – essa situação causou espanto no palestrante: “Fiquei chocado com isso!” – exclamou. Segundo ele, há muitas pessoas que se opõem às ações afirmativas no Brasil por causa da ideologia do mérito, que não considera os privilégios. “Sempre haverá ações afirmativas, a questão é para quem? A favor da democracia racial ou contra?” – questionou o palestrante. De acordo com ele, os movimentos sociais pelos direitos civis dos negros têm uma responsabilidade especial em fazer essa política ser entendida e aplicada, de modo a desmantelar as velhas estruturas de privilégio. Mérito é uma questão cultural e ideológica. Raça não é coisa de cor da pele ou ascendência, mas de lugar social, de desvantagem social. Trata-se de uma raça política, não de cor ou sangue.

Normatividade branca – Ao comentar o fato de que as normas legais e sociais são estabelecidas pelo pensamento predominante da elite branca, ressaltou que a ideia de normatividade branca e muito importante, pois explica algumas visões da sociedade. Por exemplo: “mérito” não é um termo autodefinido, mas é a elite branca no poder que define mérito numa linha que a beneficia. Não existe mérito, há apenas ações afirmativas. A base normativa privilegia a liderança cultural de determinadas pessoas em relação a outras. Portanto, não é objetiva. Um modo de contestar essa ideia falsa de mérito é apontar suas contradições. Falando da realidade encontrada no seu país, questionou: como se pode dizer que uma ação afirmativa é ilegítima quando as escolas dos brancos são novas, com equipamentos novos, todos os estudantes com computador, laboratórios de ponta, as crianças têm estações de TV e rádio, podem se preparar para atuar na mídia, têm clubes de debate, vão a competições em todo lugar porque os pais dão dinheiro à escola para comprar ônibus? As crianças que ganham o “mérito” têm toda a estrutura de vantagens que não vêem. Já as escolas para negros estão com o teto caindo, livros velhos, sem computadores, sem aulas de música ou Educação Física... E aproximou essa realidade da situação brasileira: para ele, é preciso apontar essas contradições, mostrar que as crianças da Rocinha ou do Pavão-Pavãozinho não têm o que as do Leblon e de Ipanema têm.

Objetivo – O evento teve por objetivo promover a reflexão sobre os aspectos jurídicos da promoção da igualdade étnico-racial, relacionando a Teoria Racial Crítica com as práticas jurídicas no Brasil e nos EUA. Diante das estatísticas alarmantes da violência contra negros no Brasil, bem como das diversas manifestações de desigualdade étnico-racial ainda existentes, o MP-PR entendeu ser necessária a capacitação de agentes ministeriais para uma leitura e compreensão de teorias do direito que operem na perspectiva de uma interpretação mais efetiva de enfrentamento ao racismo no país.

Currículo – Kendall Thomas é cofundador e diretor do Center for the Study of Law and Culture da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Leciona e faz pesquisas nas áreas de Direito Constitucional, Direitos Humanos, Filosofia do Direito, teoria feminista do Direito, Teoria Crítica Racial, e Direito e sexualidade. É professor Visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Stanford e professor visitante em Estudos Americanos e Afroamericanos na Universidade de Princeton. Tem lecionado e feito conferências em diversos países. É também coeditor de “Critical Race Theory: The Key Writings that Founded the Movement” (The New Press, 1996) e “What's Left of Theory?” (Routledge Press, 2000).

Promoção – O evento foi promovido pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, por meio do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial, e pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (Ceaf), em parceria com a unidade paranaense da União de Negros pela Igualdade (Unegro).




Nenhum comentário:

Postar um comentário